Foto: Leo Lopes

Crianças, jovens e suas famílias nas esquadrias da epidemia do HIV/AIDS

Institucionalização e desinstitucionalização

Realizei uma pesquisa na qual busquei cartografar histórias de vida, conhecer o percurso que levou crianças e jovens à institucionalização e desinstitucionalização4. Observei que, no decorrer da epidemia da AIDS, dificuldades familiares, concepções de família e infância das instituições envolvidas, falecimento dos pais, abandono e adoecimento são fatores que levaram crianças e jovens à institucionalização.

A desinstitucionalização esteve ligada à adoção das crianças ou jovens, à busca que algumas instituições fizeram por membros da família, ao oferecimento de suporte à família que pretendia ficar com a criança e à chegada dos jovens à maioridade (este fator foi preponderante para que a questão da desinstitucionalização ganhasse destaque).

Relato a seguir duas histórias que foram cartografadas ao longo da pesquisa. Uma a partir dos prontuários de uma casa de apoio5, e outra a partir de entrevistas com profissionais de casas de apoio, com a criança e com sua mãe.

Danilo e Geraldo6

Os irmãos Danilo (2 anos e 4 meses) e Geraldo (19 dias) foram abrigados em 2006, em decorrência da seguinte história: N., mãe dos garotos, é uma mulher que vive com HIV/AIDS. Ela deixou sua amiga A. levar o filho bebê ao banco e a mesma não voltou com o bebê por quatro dias. Preocupada, N. foi à delegacia da mulher registrar o boletim de ocorrência.

A amiga A. retornou com o bebê no mesmo dia e a delegacia chamou o conselho tutelar, que abrigou as crianças e destituiu a mãe do direito à guarda (ou seja, ela foi buscar ajuda porque o bebê desapareceu e perdeu o direito de ficar com os dois filhos).

No prontuário da instituição, observamos relatos do conselho tutelar tal como seguem abaixo.

[…] A Sra. A. foi para a praia levando a criança. A. diz que não teve a intenção de ficar com a criança, pois voltaria no mesmo dia, mas aconteceu alguns problemas e não foi possível retornar. A. também relata que a genitora, antes do nascimento do filho tinha a intenção de doar a criança. A genitora não nega esta intenção, mas diz que depois do nascimento do filho descartou a possibilidade.
A avó materna (sra. Xx) estava acompanhando a filha e os netos. Segundo a avó a genitora cuida bem dos filhos. Questionamos-a quanto a possibilidade de estar levando N. e os filhos para sua casa, mas a mesma diz que trabalha fora, mora com a sogra e que não tem condições. Conversando com a genitora a mesma nos informou que é Soro Positivo (HIV +) e que o bebê já está tomando coquetel (AZT), pois pode também ser Soro Positivo.

[…] este conselho tutelar… vem mui respeitosa recambiar os infantes […]

[…] A delegada nos informou que a genitora N. emprestou seu filho para a amiga […]

[…] O bebê até o exato momento não tem Certidão de Nascimento e a família reside […] sendo que a genitora nos forneceu dois números o número 133 no Conselho Tutelar e 183, na Delegacia da Mulher.
O conselho tutelar conduziu a família para nossa sede onde abrigamos o recém nascido e D. para proteção das crianças devido a passar das 17 horas […] (anotações extraídas dos prontuários)

Alguns juízes temem a chamada adoção à brasileira (na qual os pais adotivos registram a criança como se fossem os pais biológicos). Pela ausência de registro da criança e pelo fato de a amiga ter dito que a mãe pensou em doar o bebê, o conselho tutelar e a delegacia podem ter suspeitado desta história. Uma das entrevistadas é advogada e explica a lógica da Justiça.

[…] a juíza barra por entender que trata-se de uma tentativa de adoção à brasileira e enganação da genitora, que é pessoa humilde e com poucos esclarecimentos. Logo, na dúvida, coloca a criança a salvo no Abrigo-CCI e investiga melhor com o acompanhamento da instituição […] (trecho da entrevista com advogada).

Podemos entender a preocupação da Justiça, mas é preciso notar que uma pessoa procurou a delegacia para recuperar seu filho desaparecido e, como resultado, obteve a perda da guarda de seus filhos. Apesar dos “erros” cometidos pela mãe, tais como informar dois números de moradia e depois de 20 dias não ter registrado o bebê, haveria motivo suficiente para retirar a guarda das crianças? Será que, em casos como este, o abrigamento era realmente necessário? O conselho tutelar não poderia apoiar por um período as crianças e a mãe, certificando-se que a mesma iria registrar a criança?

4 – A pesquisa é um estudo qualitativo realizado no período de 2009 a 2011. Os procedimentos metodológicos envolveram: a) 15 entrevistas (crianças, jovens, adultos); b) análise de 22 prontuários; c) três visitas domiciliares. A maioria dos trabalhos acadêmicos nesta área aborda a institucionalização e me interessa pensar também elementos que contribuíram para a desinstitucionalização de crianças e jovens, tomando como referência duas casas de apoio de São Paulo.

5 – A pesquisa foi realizada em duas casas de apoio em São Paulo. Fiz um estudo mais detalhado dos prontuários disponíveis numa delas, localizada num município adjacente à cidade de São Paulo. Atende crianças e jovens infectados pelo HIV ou familiares de pessoas com HIV/AIDS. Algumas crianças faleceram, outras foram adotadas e outras permaneceram na instituição até os 18 anos (tempo de permanência de mais de dez anos). Isto levou a instituição a pensar alguns projetos de profissionalização e apoio para estudos. Entretanto, também é desafiadora a construção de horizontes após longo período de institucionalização e fragilidade de vínculos familiares. Na época da pesquisa, a instituição atendia em média 25 crianças e jovens.

6 – Os nomes são fictícios.

Elizabete Franco Cruz betefranco@usp.br

Psicóloga, Mestre em Psicologia Social, Doutora em Educação. Professora do Curso de Obstetrícia e do Mestrado em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, Brasil.