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Desafios à circulação de jovens mulheres na cidade do Recife

Resultados e discussão

Após a transcrição de todo o material produzido durante as duas etapas da pesquisa, realizamos sucessivas leituras e o organizamos a partir de dois eixos centrais. Inicialmente, vamos tratar da circulação das mulheres pela cidade. Nesta seção, debateremos sobre questões relativas à mobilidade urbana, pobreza, gestão do tempo e o ser mulher transexual na cidade. Na segunda parte, discutiremos os desafios do direito à cidade para as jovens, abordando a questão do assédio sexual e espaços de lazer.

Deslocar-se na cidade: a saga das jovens pretas periféricas

Ao nos depararmos com o discurso de nossas participantes durante as oficinas e entrevistas realizadas, um elemento que chamou bastante nossa atenção foram as adversidades que marcam suas experiências de deslocamento na cidade. Grande parte das mulheres pobres brasileiras gasta preciosa fração de suas vidas em transportes coletivos, sendo a mobilidade urbana uma pauta fundamental no debate sobre o direito à cidade. Sobre esse tópico, destacamos os seguintes trechos de entrevistas de Ana, 19 anos e Júlia, 20 anos:

Ana: Normalmente eu venho para a federal à tarde. Aí, eu tenho que sair (de casa) 1 hora antes, por exemplo, eu tenho aula às 13:30, aí eu tenho que sair 12:30, porque tem demora de metrô e demora de ônibus. Apesar de que eu moro a 5 km daqui (UFPE) (…). Eu gasto muito tempo no trânsito, muito tempo mesmo. Até a volta pra casa à noite, que deveria o trânsito tá livre, não tá.

Júlia: …eu não tenho ônibus que passa (…), que venha pra cá (ONG) ou um terminal de integração, que integre aqui e ao Totó, não sei. É muito mais complicado vir pra cá. Eu faço parte da zona oeste, mas nem todos os lugares da zona oeste eu consigo chegar com facilidade. Eu prefiro andar até a Abdias de Carvalho e pegar o Totó/Jardim Planalto ou o Abdias de Carvalho, do que ir pra Boa Vista pra… porque pra mim, qual é a intenção? Pra que isso tudo? Eu vou gastar passagem, entendeu? Talvez eu só tenha duas passagens, a de ida e a de volta. Eu não vou pra Boa Vista ou pro Derby, pra poder pegar o Totó/ Jardim Planalto. (…). Quando eu venho pra (ONG), por exemplo, eu passo um trajeto gigantesco. Mas, eu chego praticamente em cima da (ONG), entendesse? Ele (ônibus) passa por tantos babados, mas no final das contas, a gente chega no local. Mas, o enfado que isso dá é terrível. A gente acaba perdendo várias horas dos nossos dias apenas no ônibus… (…). Eu durmo no ônibus para ter oito horas de sono completo, porque, tipo assim, eu durmo nos ônibus, uma indo e uma voltando e mais quatro horas em casa aí dá seis, pronto o sono completo.

As participantes descrevem uma cidade que não facilita seus processos de circulação, trajetos curtos que poderiam ser rapidamente executados demandam grande quantidade de tempo no transporte público, fazendo com que o cálculo de horas seja constante em suas vidas. Nas metrópoles, os sistemas viários priorizam os automóveis particulares, pouco facilitam a circulação de transportes privados de baixo custo, como bicicletas, e os consórcios não investem na melhoria do serviço de deslocamento coletivo e público. Para Villaça (2001), esses aspectos congregam o estabelecimento e a manutenção da segregação de camadas populacionais com relação aos processos de produção, consumo e ocupação do espaço urbano.

A questão da má qualidade do transporte público foi também destacada por Júlia, com a ressalva de seus efeitos na precarização da saúde em geral e, particularmente, nas condições e tempo adequados para a função mais básica da existência humana, que é o sono. O percurso de ir e vir dos lugares vira uma prova de resistência, onde quem sai perdendo é a população mais pobre. Obrigada a morar longe da escola, da universidade, do trabalho, do comércio e de outros serviços, por exemplo, a população pobre é submetida a uma situação mais sofrida de deslocamento, perde em tempo social e em oportunidades de lazer no espaço urbano.

O estudo realizado em 2013 pelo censo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que os trabalhadores pobres fazem viagens 20% mais longas, em comparação aos mais ricos. De acordo com o Ipea, 19% gastam acima de uma hora de viagem, contra 11% dos mais ricos. A pesquisa relata que essa diferença entre ricos e pobres entra em variação conforme as regiões metropolitanas, e Recife-PE apareceu entre as capitais que registram maior variação em relação à viagem (IPEA, 2013).

A saúde não é apenas a ausência de doença, mas sim um conjunto de condições ofertadas aos cidadãos em busca de garantir seu bem-estar. No que diz respeito à mobilidade, seria a tentativa de implementar um transporte seguro, pontual e acessível, o que tornaria o deslocamento uma atividade prazerosa e saudável. Entretanto, quando um indivíduo passa por uma viagem demorada, as consequências como fadiga, cansaço e estresse são evidentes (NUGEM; SANTOS; OLIVEIRA, 2012).

Durante as oficinas, ao problematizarem suas dificuldades de mobilidade urbana, as jovens também foram estimuladas a propor soluções, como a que Bruna, negra, 18 anos, pontuou durante a atividade:

Aqui a gente colocou as ciclofaixas [Entrevistada está explicando um desenho realizado em grupo], no intuito de ter menos carros nas ruas e mais transportes sustentáveis…, mas aí a gente precisa de um transporte… que preste. (…) a gente colocou cultura dentro das comunidades, no intuito de descentralizar, porque tudo de cultura acontece no centro da cidade. E a gente optou em levar para periferia, e não a periferia se deslocar até o centro.

A bicicleta é um meio de transporte que não apresenta alto custo, além de não agredir o meio ambiente; contudo, a maior parte das cidades não investe em estruturas viárias que facilitem a utilização desse transporte, o que ocasiona grande número de acidentes envolvendo ciclistas. Segundo Galvão et al. (2013), no estado de Pernambuco, a maior parte dos acidentes com ciclistas ocorreu em vias públicas, sinalizando que essas não lhes são acessíveis.

É interessante observar a preocupação das três jovens em descentralizar os espaços de cultura e lazer, em busca de uma cidade mais justa e acessível à população periférica. Sobre essa questão, ressaltada no momento da oficina, Júlia, 20 anos, negra, destaca:

Bom, lá perto de casa, eu moro no Cordeiro, né? Lá perto de casa tem o parque Santana e só, pra onde eu vou e só pra lá. Não é uma área de lazer, eu só vou por causa da academia. Mas assim, eu saio do meu espaço, de lá onde eu moro, pra ir pra outros lugares procurar lazer, porque lá onde eu moro não tem lazer, entendeu? Tipo assim, tem lugar, tem uma praça, mas você que faz o seu lazer lá, não é que tipo tem um dia específico para ter alguma diversão, pra chamar atenção da criançada, dos adolescentes. Lá tem muito evento, entres aspas né? Mais no final do ano. Mas assim, eu procuro em outros espaços lazer. Tipo, eu venho de lá, para o (ONG) aqui no Totó. Que não é longe, mas tipo, a logística do caminho, não tem condições. Eu tenho que ir para o Derby ou tenho que vir andando até a Abdias de Carvalho e pegar o Totó. De lá da minha casa da Caxangá, até a Abdias andando e pegar o Totó na Abdias de Carvalho. Então tipo, querendo ou não eu venho buscar em outros lugares o lazer que eu quero pra mim, porque eu não tenho perto de casa, (inaudível)… Que eu fique lá pra sempre. (…) Que eu me encaixo aqui, eu venho, aí tem o C. (ONG) sonoras aqui, sabe? Tem a galera da percussão. Tem a galera do grafite, que eu faço parte. Então, tipo assim, eu me sinto bem, me sinto no meu lugar de lazer.

As estratégias criadas pela jovem novamente demostram o gasto de tempo, a necessidade de um plano elaborado para ter acesso ao direito de lazer. O trajeto do ônibus se mostra difícil, já que pode consumir um tempo considerável para chegar ao local, o que também interfere no tempo de permanência, pois precisa garantir o mínimo de segurança para seu retorno. Observamos no discurso de Júlia que, para a jovem, o lazer vai além da existência do espaço físico, as praças e parques não são consideradas por ela locais de lazer quando não ofertam atividades recreativas. De acordo com Zingoni (2009), o lazer é considerado como parte relevante na vida das pessoas, construído a partir de momentos agradáveis, que se encontram ligados a alguma atividade que geralmente não está direcionada ao trabalho. Em uma perspectiva interseccional, podemos destacar a importância do lazer para a juventude, mas também o quanto o direito à fruição é diferenciado pelo racismo, classismo e sexismo (AKOTIRENE, 2018).

Segundo Matijascic e Silva (2016), é importante combater a desigualdade social a fim de garantir a melhoria da vida e do bem-estar dos/das jovens. O que, consequentemente, poderia gerar maior panorama de justiça social e equidade, que deveria ser desejado pelas sociedades alicerçadas na democracia. A localização dos contextos e colisões de fluxos entre estruturas, frequência e tipos de discriminações interseccionais (AKOTIRENE, 2018) permite-nos compreender que operar mudanças nos contornos da cidade implica enfrentar o debate sobre os privilégios e segregações de territórios geográficos e de corpos que (não) importam.

Segundo Barros e Mattedi (2006), as praças, os parques e os espaços públicos que têm mais investimento na cidade estão localizados nos bairros nobres. Entretanto, os jovens da classe média quase não utilizam esses equipamentos, já que eles preferem sair para boates, shoppings, bares, entre outros. O trânsito das jovens negras periféricas em locais de consumo da cidade como o shopping center expressa bem o deslocamento social e desconforto de estar em um lugar que não foi feito para gente como elas. Sobre essa situação, durante a entrevista, Ana, 19 anos, negra, relata que:

Só que quando eu vou para o RioMar2 é super fora do lugar, é muito incomodante assim, é muito ruim, muito ruim… (…) Acho que, primeiro, quando você chega de ônibus, você vai para o estacionamento, aí você já vê a quantidade de carros luxuosos, aí você já fica humm… parece que aqui não é o meu lugar. (…) Aí você entra, são lojas que provavelmente você não compraria com dinheiro, a maioria das coisas. E aí, eu não me sinto confortável lá, porque, o público lá, todo… acho que 95% do público, são pessoas do que a gente chama de elite né? (…) dá pra perceber claramente quando você passa ‘as olhadas’, você percebe claramente e o espaço não é feito para você, não, dá pra perceber isso, pelas lojas. Eu fui (risos), tava passando assim e aí tinha um vestido muito bonito, e eu fui ver o preço assim tinha lá 15.000. (…) Aí você fica esse não é o meu lugar, e eu procurando blusa de 25,00 reais. (risos) (…) Entendesse a disparidade? Enorme, enorme, enorme. Você não se sente confortável lá, pelo menos eu não me sinto, né?!

Reiteramos o lazer como elemento fundamental da vivência juvenil, fazendo parte da construção das identidades, valores, referências e na relação com os espaços na cidade (MARTINS et al., 2017). As experiências que as jovens passam nesse momento biográfico que é a juventude articulam-se com outros marcadores, como: classe, gênero, raça, território, entre outros. Para Ana, a classe influencia bastante os lugares que ela frequenta na cidade e a sua maneira de se sentir acolhida nos espaços. Portanto, estudar as questões que perpassam o lazer e a juventude nos ajudam a entender os mecanismos de pertencimento que as jovens elaboram, a maneira como elas se inserem na dinâmica social e os laços que são concebidos nessas trocas.

Durante as entrevistas, a temática racismo também foi abordada. Ao serem questionadas sobre a possibilidade de terem sofrido ou presenciado algum episódio de discriminação, as jovens Bruna, 18 anos, negra, e Júlia, 20 anos, negra, relataram as seguintes situações:

Entrevistador/a: Tu já sofreu ou presenciou algum tipo de discriminação nos espaços?
Júlia: Eu posso dizer que sim, por tipo, acho que não gostarem da minha pessoa ou por eu estar ‘molambenta’. No sentido… é porque quando eu volto do treino, quando eu volto de uma grafitagem, entendeu? Que a gente volta mais sujo de tinta e tal. A galera fica com um olho assim… ninguém fala né? Mas tipo, deixar de sentar do meu lado, isso é comum. Até se eu tiver dormindo, tiver cochilando assim… às vezes as pessoas deixam de sentar. Eu não sei por que não, mas, vai saber, né?
Bruna: Sempre acontece, não só de forma tão explícita das pessoas falando, como os olhares, as vezes os olhares dizem muito, é melhor você até não falar nada. E aí, quando eu fui fazer minha matrícula, na verdade, eu já estava matriculada na universidade, como eu estudo em uma universidade privada. Eu fui fazer minha matrícula na biblioteca, meu cadastro na biblioteca e um dos atendentes veio perguntar se eu era prounista. Aí eu fiquei parada assim, e não entendi na hora. Eu: ‘oi?’. Ele: ‘você conseguiu entrar pelo PROUNI, foi?’. Eu: ‘não, minha renda não é compatível ao PROUNI, eu sou aluna, fiz vestibular, passei e entrei’. Aí: ‘não tem nenhuma outra bolsa, não?’. Aí eu: ‘não, por quê?’. Aí, enfim, ele desconversou e perguntou meu curso e desejou boas-vindas, eu fiquei na hora sem digerir bem. Caramba, eu não sou nem tão retinta assim, sabe? É um negócio bem, e é um ambiente, eu tô falando isso no caso acadêmico, é um ambiente que não foi, eu já falei isso também, não foi pensado pra mim. Não foi pensado pras roupas que eu uso, não foi pensado pro meu cabelo. Então, tem todo aquele estigma, estereótipo que meus pais não devem ter condições de pagar uma universidade pra mim, com os valores altos que ela tem. Mas a gente passa todo dia.

Essa maneira de agir e tratar com violência a população negra tem feito parte da estrutura do país, que dramatizou um violento processo de colonização. Apesar da Lei Áurea ter concedido o status de cidadania aos negros, ela não estabeleceu diretrizes para o enfretamento da condição de pobreza e discriminação. Não existia nenhuma medida protetiva e não foram oferecidas condições dignas para que a população negra pudesse viver com equidade de oportunidade social. Nessa perspectiva, esses resquícios da violência colonial ainda reverberam no cotidiano da juventude negra, pois eles/as ainda são as pessoas mais expostas à precarização das condições materiais de vida e de trabalho (SILVA, 2020).

2 – O RioMar Shopping é um centro comercial de grande porte, localizado na cidade do Recife, capital de Pernambuco. Inaugurado em 30 de outubro de 2012, trata-se do maior empreendimento comercial do Norte e Nordeste em área bruta locável, e o maior do país fora do eixo Rio-São Paulo (Disponível em: . Acesso em: 30 jan. 2021). Precisamos também destacar que esse Shopping foi construído em uma das regiões de maior disputa na cidade, a conhecida bacia do Pina e ilha de Joana Bezerra, onde se localiza uma das maiores favelas da cidade, o Coque, alvo constante das mais variadas formas de violência, inclusive a da especulação imobiliária.
Jaileila Araújo Menezes jaileila.santos@ufpe.br

Docente vinculada ao Departamento de Psicologia e Orientações Educacionais e ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (GEPCOL/UFPE).

Débora Carla Pereira Calado debora.estudante@gmail.com

Graduanda do Curso de Psicologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil, bolsista de iniciação científica financiada pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (GEPCOL/UFPE).

Juliana Catarine Barbosa Silva jucatarine@gmail.com

Professora adjunta do Curso de Psicologia da Universidade de Pernambuco (UFPE), Brasil. Doutora em Psicologia pela UFPE. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (GEPCOL/UFPE).