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Feminismo teen e youtubers: feminismo na adolescência em tempos de redes sociais

Ana Carolina Vila Ramos dos Santos
Instituto Federal de São Paulo (IFSP), São Paulo – SP, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-7270-2448

DOI: https://doi.org/10.54948/desidades.v0i31.44425

Desde, pelo menos, 2016, os processos eleitorais têm anunciado que o uso de redes sociais é um ponto de inflexão na ação política das democracias contemporâneas; a rua e a assembleia, antes espaços privilegiados para o confronto das diferenças e para a elaboração de consensos, se esvanecem diante da facilidade e rapidez das redes sociais; se assumo como suposto que a ação política é uma ação comunicacional e informacional (CARDON, 2012), é preciso refletir de que forma transformações na ação comunicativa resultam em mudanças na ação política. Assim, a pergunta que este trabalho propõe é: como as redes sociais produzem mobilização política?

A literatura tem apontado as consequências do uso das redes sociais nas mobilizações, especialmente de grupos da extrema direita que propalam valores e ações que colocam em xeque a democracia (CESARINO, 2020). Esta pesquisa compartilha com essa literatura a percepção de que não se faz mais política como se fazia antigamente e de que as redes sociais têm um forte impacto na mobilização para a participação política. Meu objeto de estudo, no entanto, não é a vaga conservadora, mas mobilizações políticas que têm como referência a democracia, a igualdade e o respeito às diferenças. Olho para o modo como o feminismo, no discurso e prática de jovens, tem se tornado uma referência para percepção dessa nova forma de se fazer política ao inserir grupos sociais invisibilizados pelas dinâmicas clássicas da democracia na ágora amplificada pelas redes sociais.

O acesso de jovens às novas tecnologias de informação e comunicação (especialmente smartphones) nos convoca a produzir um “giro analítico” (FERNANDES, 2019) que leve em conta que a juventude, no século XXI, está imersa em uma experiência cultural na qual tais novas tecnologias, principalmente as redes sociais, são elementos que compõem suas identidades. Por meio dessas novidades tecnológicas, a categoria juventude tem sido “alargada” (TAVARES; CAMURÇA, 2006) ao garantir e amplificar a presença e ação dos jovens no mundo público: ao falaram por si mesmos, os jovens enriquecem as experiências de público e colocam questões renovadas para a teoria sociológica. Um elemento importante que indica tal renovação, como aponta Fernandes (2019), é que a manifestação pública da juventude tem tomado novas referências que iluminam o questionamento e esvaziamento da prática política institucional (partidos, movimentos sociais) como referência da ação política.

Neste trabalho, proponho que o discurso feminista de adolescentes, o qual chamo de feminismo teen, ilumina essa novidade. Por feminismo teen, entendo o ativismo político de meninas adolescentes em idade escolar (14 a 18 anos) autoidentificadas como feministas e que têm a internet como plataforma importante de construção da identidade feminista. Este trabalho tem como objetivo investigar o modo como as motivações, reflexões e experiências de adolescentes identificadas como feministas são impactadas pelas redes sociais, especialmente o YouTube.

Os resultados têm como base entrevistas semiestruturadas, realizadas em 2018, com oito adolescentes do sexo feminino entre 14 e 17 anos, sendo cinco brancas e três negras1. Eram meninas em idade escolar, moradoras da periferia de São Paulo, estudantes do ensino médio e que se identificavam como feministas. A escolha das entrevistadas teve como critério a autoidentificação como feminista e foi feita a partir de uma observação nas redes sociais e na escola na qual as meninas estudavam. As meninas, embora fossem colegas na escola, não conformavam um coletivo ou construíam qualquer ação coletiva a partir da bandeira do feminismo (as meninas não tinham nem mesmo um laço de amizade íntimo entre si).

Com base nos resultados, sugiro que uma singularidade do feminismo teen é uma ruptura com as gerações anteriores de feministas no que toca ao processo de formação da identidade feminista que não se dá via institucionalidades tradicionais da luta política (movimentos sociais, partidos políticos ou organizações da sociedade civil), mas tem as redes sociais como referência; assim, não há solução de continuidade ou transmissão direta de experiências e valores entre as “feministas veteranas” e as feministas teen, pois estas se tornam feministas a partir de uma variedade de experiências, dentre as quais as redes sociais têm protagonismo. O feminismo teen recobra a bandeira clássica dos feminismos, “o pessoal é político”, e o alarga do ponto de vista geracional (meninas cada vez mais jovens se descobrem feministas) e do alcance da ação política (o tornar-se feminista se dá fora das institucionalidades clássicas de ação política e se ancora no cotidiano).

Por conta dessas peculiaridades, sugiro que as feministas teen constituem uma referência de transformações mais amplas na sociedade contemporânea no que toca especialmente ao lugar da mulher no espaço público. O conceito “feminização da cultura”, proposto por Margareth Rago (2004), descreve esse fenômeno que é o resultado histórico das lutas travadas pelas feministas e que tem como indicador principal o fomento de uma sensibilidade “mais feminina e feminista, libertária e solidária ou, em outras palavras, filógina, isto é, amigo das mulheres e do feminino, o que resulta decisivamente do aporte social e cultural das mulheres no mundo público” (RAGO, 2004, p. 281-282). Entendo que o feminismo das meninas indica que há uma mudança cultural tomando forma nas redes sociais e no cotidiano que se dá pela disputa política pela vida, dignidade e sonhos de mulheres e meninas que produzem formas renovadas de prática feminista.

Para análise do material coletado foi utilizada a ferramenta analítica enquadramento (GOMES, 2017; SNOW; BEDFORD, 1992). Trata-se de um instrumento analítico utilizado pelos estudiosos de movimentos sociais e pode ser conceituado como “um esquema interpretativo que simplifica e condensa o ‘mundo lá fora’ através da pontuação e codificação seletiva de objetos, situações, eventos, experiências e sequências de ação em determinado ambiente presente ou passado” (SNOW; BENFORD, 1992, p. 137).

O objeto de estudo desta pesquisa não se constitui como um movimento social organizado nos moldes clássicos descritos pela literatura (GOHN, 2011), mas os enquadramentos demonstram que valores e práticas mobilizadas pelas meninas na conformação do feminismo têm implicações cotidianas e políticas claras, o que indica que as institucionalidades clássicas da política não mais operam o monopólio da mobilização e ação política no mundo contemporâneo.

Uma importante referência para a análise das entrevistas são as reflexões de Michel Foucault [1969]/(2007)3 sobre as relações entre discurso, poder e produção de subjetividades na experiência da modernidade. Foucault (2007) propõe o discurso como um campo de disputas a que corresponde uma rede de relações de poder que ilumina processos de conformação de instituições sociais e subjetividades. Neste trabalho, a análise do discurso será mobilizada com o objetivo de desvelar o modo como os sujeitos se constituem como tais, isto é, compreender como meninas se constituem como feministas a partir da referência das redes sociais.

Os enquadramentos foram construídos a partir da análise do discurso das entrevistadas e são divididos em três grupos: diagnóstico, motivações para a ação e prognóstico. O primeiro enquadramento é o diagnóstico que se conforma como o ponto de partida para a construção da identidade feminista das meninas; associada à experiência de violência que tem o corpo feminino como arena, as meninas se percebem como feministas ao rejeitar o lugar determinado historicamente a elas. O segundo enquadramento se refere às motivações para ação que dizem respeito a valores, palavras de ordem ou bandeiras que articulam a experiência do feminismo para as meninas; identifiquei três principais bandeiras nos discursos das meninas: 1) feminismo é ser dona de si; 2) feminismo é igualdade entre os gêneros; e 3) feminismo é acolher as diferenças. O terceiro enquadramento é o prognóstico definido como estratégias de ação, o “como fazer” para levar à frente as motivações para ação; a noção de afronta surge como ideia-força que explica a prática feminista das meninas guiada por uma ética que toma cada esfera da vida como espaço e oportunidade de ação4.

No discurso das meninas, as redes sociais, especialmente o YouTube, foram apresentadas como elemento crucial em suas experiências feministas. As meninas citaram algumas youtubers como referências (Ellora, Natály Neri, Maíra Medeiros e Nina Secrets), mas Julia Tolezano5, do canal JoutJout Prazer, teve destaque nas entrevistas. Assim, associado à análise das entrevistas, este trabalho também focaliza o discurso elaborado pela youtuber Julia Tolezano em seus vídeos do canal JoutJout Prazer de modo a investigar pontos de encontros entre os discursos das entrevistadas e o da influenciadora digital em relação ao tema feminismo. As reflexões elaboradas têm como objetivo aproximar o conteúdo e a forma dos vídeos publicados pela youtuber a partir dos enquadramentos utilizados para compreensão do fenômeno que chamamos de feminismo teen. A hipótese é a perspectiva proposta por Margareth Rago (2019) no conceito de “feminização da cultura”, isto é, tanto Jout Jout quanto as adolescentes compartilham os mesmos valores de igualdade entre os gêneros, respeito às diferenças e liberdade; longe de estabelecer uma relação determinista entre influenciadoras digitais e seguidoras, minha leitura supõe o compartilhamento de uma mesma visão de mundo que toma as redes sociais como espaço de produção e reprodução de um novo olhar sobre si e sobre o outro. Assim, espero demonstrar que youtubers e adolescentes compõem uma zeitgeist afinada com o que Rago (2019) chamou de “feminização da cultura”. Ao final do trabalho, considero os limites desta leitura quando cotejada com a dinâmica das redes sociais marcadas pela exclusão da diferença na reprodução de bolhas de interações.

1 – Os nomes das entrevistadas foram alterados assim como foram subtraídas quaisquer informações que comprometessem o anonimato.
2 – A pesquisa foi conduzida com o apoio de três pesquisadoras de iniciação científica: Gabriela Aguiar de Souza, Gabrielle Melo da Silva e Giovanna de Souza Almeida. Agradeço pela inspiração e pelo trabalho, sem os quais esta pesquisa não teria sido desenvolvida.
3 – A data entre colchetes indica o ano de publicação original da obra. Nas citações seguintes será registrada apenas a data da edição consultada.
4 – Para detalhamento dos enquadramentos do feminismo teen, ver Santos (2019).
5 – Nascida em Niterói, Rio de Janeiro, em 14 de março de 1991
Ana Carolina Vila Ramos dos Santos carolina.vila@ifsp.edu.br

Doutora em Sociologia e Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), campus São Paulo-Pirituba, São Paulo, Brasil.