Foto: Rogelio Marcial

“Foi o Estado”: O caso dos jovens desaparecidos de Ayotzinapa e a crise política no México

O contexto

A Escola Normal Rural de Ayotzinapa faz parte de instituições similares fundadas nos anos 20 do século XX em todo o país. Posteriormente, o então presidente da República, o emblemático general Lázaro Cárdenas del Río, fortaleceu o seu funcionamento. Este general, que expropriou os bens da indústria petrolífera do país, de empresas trasnacionais, e os colocou nas mãos do governo e da sociedade (apesar de que hoje, com a Reforma Energética, foi dado fim a isso), se caracterizou por exercer o poder a partir de uma visão popular de apoio às massas trabalhadoras. Ele é o grande “progenitor” do atual PRI. Foi em 1938 e sob o seu governo que o PNR (Partido Nacional Revolucionário, fundado em 1929 por Plutarco Elías Calles, que aglutinou os militares que encabeçaram o movimento armado de 1910 contra o ditador Porfirio Díaz) tornou-se o PRM (Partido da Revolução Mexicana), que, em 1946, mudaria para PRI e apresentaria como candidato à presidência da República Miguel Alemán Valdez. O importante trabalho do general Cárdenas, neste sentido partidário, foi que sob a sua tutela o PRM estruturou uma organização de bases sociais, integradas pela central operária CTM (Confederação dos Trabalhadores do México), pela central camponesa CNC (Confederação Nacional Camponesa) e pela central urbana CNOP (Confederação Nacional de Organizações Populares)7. Estes pilares deram força ao partido que governou o México por mais de 70 anos ininterruptos e que hoje voltou ao poder com Peña Nieto, depois de 12 anos de governo do PAN (Partido Ação Nacional). Com isso, conseguiram fazer frente aos embates das forças sociais de um partido conservador (PAN), que nasceu como inconformidade cidadã dos empresários, comerciantes e das classes médias e altas ante o “eterno” triunfo do PRI; e aos embates da esquerda mexicana, que se institucionalizou com o PCM (Partido Comunista Mexicano), que durante os anos 1960 e 1970 se configurou como um forte adversário representante das classes populares, e mais tarde com Cuauhtémoc Cárdenas Solórzano (filho do general Lázaro Cárdenas) e Andrés Manuel López Obrador através do PRD, que não conseguiu, como o PAN, vencer as eleições presidenciais8.
Mas, voltando às escolas rurais, o general Cárdenas fortaleceu-as durante seu governo (1934-1940), a partir de uma visão de empoderamento dos camponeses e suas famílias. São formadoras de professores em nível básico (primária) e desde que foram fundadas até os dias de hoje, estas escolas representam a única possibilidade de os filhos de camponeses conseguirem estudos de nível médio e superior e, assim, contarem com mais elementos para tirar as suas famílias da pobreza e da exclusão. Posteriormente, como já é conhecido, a proposta educativa de Cárdenas se baseou em uma visão de esquerda, e inclusive ele procurou instaurar o que chamou de “educação socialista”, que pretendeu formar as grandes massas populares do México com os objetivos de ajudar a superar as diferenças sociais e equiparar o bem-estar social a partir de uma distribuição mais justa da riqueza nacional. Apesar de, em diferentes âmbitos, o currículo escolar baseado na educação socialista ter sido paulatinamente abandonado, as escolas rurais se mantiveram fiéis a ele. Isso propiciou a vinculação de estudantes destas escolas rurais com movimentos camponeses e populares, e inclusive com movimentos guerrilheiros, durante os últimos 80 anos.

A Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos de Ayotzinapa foi fundada em 2 de março de 1926 pelo próprio Burgos (homenageado em seu nome) e com o apoio de centenas de camponeses da região. Ela conseguiu formar 88 gerações de professores provenientes das zonas mais pobres de Guerrero e de outros lugares similares do México (Oaxaca, Chiapas, Morelos, Tlaxcala e Cidade do México) (UNIVISIÓN Noticias, 2014). Os guerrilheiros Lucio Cabañas Barrientos e Genaro Vázquez Rojas foram egressos das salas de aula desta instituição e os seus movimentos armados estiveram sempre vinculados aos estudantes da Normal Rural de Ayotzinapa. Estes estudantes se enfrentaram em diferentes ocasiões contra o Estado mexicano e as suas políticas. Por exemplo, em 1941, tiveram um grande conflito com o então presidente da República, Manuel Ávila Camacho (PRI), que mandou prender vários alunos da escola sob a acusação de “insurreição”, depois que eles decidiram começar uma greve para exigir do governo o orçamento de ajuda que ele quis negar. A acusação se baseou no fato de os alunos terem decidido tirar a bandeira mexicana içada no mastro do pátio central da escola para colocar no seu lugar a bandeira vermelha e preta, anunciando assim o movimento de greve, com a exigência de não retirá-la enquanto o governo não cumprisse o seu compromisso9. Em 1975, o Exército mexicano entrou e tomou as instalações desta escola por ordem do presidente Luis Echeverría Álvarez (PRI), depois de o grupo guerrilheiro de Lucio Cabañas ter sequestrado o então governador de Guerrero, Rubén Figueroa Figueroa. Com a chegada do século XXI, os estudantes de Ayotzinapa centraram a sua luta contra os cortes cada vez mais drásticos de orçamento (que, inclusive, repetidas vezes, ameaçaram a escola de desaparecer) e, especialmente, para exigir outro dos compromissos que o Estado mexicano tem com estas escolas rurais: a dotação de vagas para os seus egressos como professores em escolas primárias públicas da região. Em 2005, 2007 e 2011, os estudantes bloquearam a Autopista del Sol (autoestrada que conecta a Cidade do México com Acapulco, o principal centro turístico do país) e sitiaram a sede do Congresso de Guerrero em repetidas ocasiões, o que provocou grandes enfrentamentos, com detidos, feridos e inclusive mortos (UNIVISIÓN Noticias, 2014). Atualmente, os estudantes de Ayotzinapa têm sido vinculados pelo Estado mexicano, o governo estatal e as forças armadas com o movimento guerrilheiro ERPI (Exército Revolucionário do Povo Insurgente), organização que, dizem, forma seus quadros com estes jovens. Além disso, o vínculo direto dos seus estudantes com a CNTE através da CETEG, organização docente mencionada, que tem sido muito combativa, especialmente na zona mais pobre do país (Chiapas, Oaxaca e Guerrero) e na capital da República, posicionaram estes estudantes como parte dos “inimigos públicos” mais “perigosos” do Estado mexicano.

7 – Sabe-se que o plano inicial do general Cárdenas incluía também uma central militar, mas ante o temor de que as forças armadas interviessem, a partir do partido, no Estado mexicano, a ideia foi deixada de lado. A integração se deu, pelo contrário, com privilégios e autonomia exagerada para seus integrantes, principalmente para seus altos mandatários.

8 – Estes são os três grandes partidos que lideram as preferências dos mexicanos, entre outros mais modestos: o PRI, de centro-direita, o PAN, de extrema direita, e o PRD, de esquerda.

9 – Uma característica destas escolas rurais é que, desde a sua fundação, elas têm a obrigação não só de instruir os futuros professores do primário (nível que atende a crianças de 6 a11 anos aproximadamente), mas, além disso, devem oferecer lugares para eles viverem, para alimentação e assistência médica gratuita.

Rogelio Marcial rmarcial@coljal.edu.mx

Professor e pesquisador do Colégio de Jalisco e do Departamento de Comunicação Social, Centro Universitário de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Guadalajara (México).