Foto: Rogelio Marcial

“Foi o Estado”: O caso dos jovens desaparecidos de Ayotzinapa e a crise política no México

As implicações profundas

São variadas e muito complexas as implicações dos lamentáveis atos acontecidos em Iguala em setembro de 2014. No meu entender, eles têm a ver com a evidência de uma grave crise de legitimação do Estado mexicano no interior e no exterior do país10, tanto pela incapacidade e falta de vontade política do governo encabeçado por Enrique Peña Nieto para oferecer segurança aos cidadãos e resolver, de maneira transparente e eficaz, este tipo de ações provenientes daqueles que dirigem as instituições públicas no México, quanto por demonstrar aos mexicanos e à comunidade internacional que opera neste país o que Reguillo (2014) chamou acertadamente de “narco máquina”, “[…] essa terrível articulação entre os poderes proprietários (políticos, econômicos, delituais) […]”. Por um lado, e tratando de “lavar as mãos”, a equipe de Peña Nieto manteve uma posição inaceitável ao abordar nas primeiras semanas estes acontecimentos como responsabilidade única das autoridades locais11 Só era necessário capturarem e prenderem José Luis Abarca e a sua esposa, María de los Ángeles Pineda, pelo acontecido, que se originava nos vínculos destes com o crime organizado e na falta de controle do PRD sobre seus militantes e funcionários em Guerrero. Um caso isolado, de exagerada barbárie, sim, mas meramente pontual. Algo tão distante de nossa realidade.

“[…] tão somente em 2012 tinham falecido 20.658 jovens por causas violentas. A morte por agressão para homens e mulheres chegou nesse ano a 44.1%, 16.298 vidas jovens abortadas pelas violências diretas que assolam este país. Estes dados, aos quais se somavam outros, muitos dados terríveis que foram se acumulando desde 2006, deveriam ter bastado para declarar um estado de emergência nacional.  Mas não foi assim. Nestes dias terríveis, Javier Sicilia, o poeta que deixou de ser poeta por causa da dor que o atravessou sem aviso, quando o seu filho foi executado, disse que ‘o PRI achou que poderia administrar o inferno’. Nada mais certo” (Reguillo, 2014)12.

A situação de violência iniciada em 2006 pelo então presidente da República, Felipe Calderón Hinojosa (PAN)13, a partir da instauração do que ele chamou de Guerra Contra o Crime Organizado, produziu no México até 2014, segundo distintas fontes, entre 20 mil e 45 mil mortos (vítimas de matadores de aluguel, de sequestradores, de assaltantes, de extorquistas, policiais, soldados, delinquentes, funcionários, eclesiásticos e as chamadas “vítimas colaterais”), entre os quais a imensa maioria é de jovens do sexo masculino.

Por sua vez, ao procurar enfrentar o caso partindo de uma suposta preocupação performativa nos meios de comunicação pelo bem-estar dos jovens estudantes e pela imperativa necessidade de encontrá-los vivos (ou os seus restos) para tranquilizar as famílias, tentou normalizar (naturalizar) a violência institucional, paralegal e ilegal que se evidenciava na zona com cada fossa clandestina descoberta dia a dia.

“Chegamos a tal ponto que o Procurador Geral da República, o priista Jesús Murillo Karam, disse, quase aliviado, que os 28 corpos encontrados nas primeiras fossas clandestinas ‘descobertas’ em Iguala […] não correspondiam aos dos normalistas, puf, alívio? Quem são então essas 28 pessoas, desde quando estão aí, por quê? As perguntas engasgam” (Reguillo, 2014).

O modo de funcionar da chamada “narco máquina” deixou um cruel ensinamento: apesar de o discurso oficial continuar usando a ideia de que o crime organizado se infiltrou entre os funcionários de diversos níveis do governo, que ambos estão de conluio, a verdade é que já não é pertinente distinguir entre ambos. São um só: funcionários e criminosos pertencem às mesmas famílias, convivem em festas, tomam café da manhã e jantam juntos, se alternam nos postos de governo. O exemplo está no próprio caso dos estudantes de Ayotzinapa. Os pais de María Ángeles Pineda e um de seus irmãos (Salomón) foram detidos em 2009 por narcotráfico. Seus pais estão presos, o irmão foi inexplicavelmente liberado e se suspeita que ele teve participação no desaparecimento dos estudantes de Ayotzinapa. Outros dois de seus irmãos (Alberto e Mario) foram assassinados, no mesmo ano, em disputas entre cartéis da droga. Pineda e Abarca, o “casal sinistro” de Iguala, foram criminosos e funcionários públicos simultaneamente.

“Três dos irmãos Pineda Villa – Alberto, Mario e Salomón –, cunhados do [então] fugitivo ex-prefeito de Iguala, José Luis Abarca, deram origem ao Cartel Guerreros Unidos. A vida dessa família se inscreve na história da luta pelo controle da “Tierra Caliente” guerrerense, disputada pelas máfias por ser rota estratégica do narcotráfico. Primeiro, a serviço de Chapo Guzmán e depois às ordens dos Beltrán Leyva, Alberto e Mario morreram em 2009. Salomón foi detido nesse mesmo ano, mas foi solto por deficiências na averiguação prévia e hoje está indiciado como um dos autores do ataque contra os normalistas de Ayotzinapa. E apesar de as autoridades o terem dado como capturado na quinta-feira, dia 9 [de outubro de 2014], na verdade, nesse momento, ninguém sabe onde ele está. […] Segundo o processo penal 101/2009, a que teve acesso este semanário, Salo […] foi detido em Cuernavaca junto com seu pai Salomón Pineda Bermúdez, a sua mãe Leticia Villa Ortuño e mais nove pessoas no dia 5 de maio de 2009, em uma operação da Secretaria de Segurança Pública (SSP) Federal, encabeçada por Genaro García Luna. Antecedentes e testemunhos ministeriais apontavam Salo e seus irmãos como narcotraficantes que operavam em Guerrero e Morelos pelo menos desde 2002, primeiro de forma independente, depois como chefes operacionais do Cartel de Sinaloa e em seguida dos Beltrán Leyva. […] Em 2005, por instruções do Cartel de Sinaloa, os irmãos formaram uma célula de matadores de aluguel chamada Los Pelones, para controlar Guerrero. […] esse grupo foi o antecedente de Guerreros Unidos, o grupo delinquente supostamente responsável pelo ataque de 26 de setembro em Iguala enquanto María de los Ángeles Pineda Villa apresentava seu segundo relatório como responsável pelo DIF municipal.” (Hernández, 2014).

O mais alarmante de tudo isso é que tanto o PRD local (Guerrero) e nacional quanto o governo mexicano estavam plenamente a par dos antecedentes familiares do “casal sinistro” e seu pertencimento direto ao Cartel Guerreros Unidos. Mesmo assim, o PRD pretendia apresentar María de los Ángeles Pineda como candidata à prefeitura de Iguala para o período 2015-2018. Como explicar isso coerentemente?

A ineficácia do governo mexicano na resolução deste caso foi apontada e questionada por diferentes instâncias dentro e fora do México. Não só pelos erros técnicos no levantamento de provas, a negativa em dar transparência à informação obtida, a manifesta falta de interesse de muitos dos seus funcionários (especialmente o já “cansado” Murillo Karam) e a instauração de um diálogo conciliatório capaz de reverter a situação de ingovernabilidade em Guerrero; além disso, foi destacado que a PGR simplesmente não quis abrir e seguir a linha de investigação sobre a bastante provável cumplicidade do Exército mexicano nos acontecimentos de Iguala mesmo quando há claros indícios disso (La Jornada, 2015c). E a tentativa do governo mexicano, desde o início das averiguações, de se solidarizar com as famílias dos desparecidos, ao anunciar que a PGR trabalharia “ombro a ombro” com eles na busca dos estudantes fracassou, já que a dita instância tinha se comprometido a informar previamente aos pais de família de qualquer descoberta ou avanço na investigação. A notícia de que a Universidade de Innsbruck tinha fracassado no reconhecimento do DNA dos restos humanos enviados pelo governo mexicano chegou a Ayotzinapa através do noticiário nacional e não com antecedência através da PGR. A “cereja do bolo” foi que, nesta ocasião, Murillo Karam declarou que “para ele” não restava dúvida de que todos os estudantes tinham sido assassinados e seus restos calcinados no lixão de Cocula sem contar com todas as provas contundentes para chegar à semelhante conclusão (La Jornada, 2015d).

Mas também deve-se considerar a capacidade do governo de Peña Nieto, em conluio com a Televisa14, de “endossar” a responsabilidade da crise política que se vive no México à esquerda mexicana, através da imagem do PRD. As notícias, reportagens, documentários etc., que esta rede de televisão tem emitido sobre o caso dos 43 (agora 42) estudantes desaparecidos de Ayotzinapa apresentam insistentemente a origem partidária do ex-governador de Guerrero (Aguirre Rivero) e do “casal sinistro” de Iguala (Abarca e Pineda). Isso tem sido usado midiaticamente para desprestigiar dirigentes desse partido, como Jesús Zambrano, Jesús Ortega e Carlos Navarrete, ao mostrarem fotografias e vídeos nos quais aparecem com José Luis Abarca, apoiando a sua campanha política como candidato à Prefeitura de Iguala; assim como também outros personagens da esquerda, como Andrés Manuel López Obrador, hoje dirigente do MORENA (Movimento de Regeneração Nacional)15 Eles foram acusados de conhecerem os antecedentes de Abarca e sua esposa e, mesmo assim, apoiarem suas candidaturas. Sistematicamente, desde os acontecimentos de Iguala e, principalmente, a partir de 2015 (com o início de pré-campanhas para as eleições de junho deste ano), a Televisa tem difundido nos seus noticiários (em especial o que é transmitido de segunda a sábado em horário nobre, às 22h30, encabeçado por Joaquín López Dóriga) uma série de notas nas quais vinculam militantes e/ou candidatos do PRD com o crime organizado. Este vínculo ocorre também com os outros dois “grandes” partidos do México (PRI e PAN) e são conhecidos16, mas a insistência dia a dia das notas que envolvem membros do PRD levaram este partido a uma profunda crise. Para piorar as coisas, Jesús Zambrano se queixou através da sua conta no Twitter desta “campanha de desprestígio” do PRD por parte da Televisa, e chamou López Dóriga de “o porta-voz do apocalipse”. Como resposta imediata, o locutor da Televisa o mencionou no seu noticiário e acentuou a divulgação de notas e reportagens sobre todos os casos de corrupção de candidatos e governos do PRD.

Por outro lado, no final de 2014, Cuauhtémoc Cárdenas Solórzano, fundador do PRD, filho do general Lázaro Cárdenas e pilar e referência obrigatória deste partido, deixou o PRD devido aos erros que seus dirigentes cometeram no caso do “casal sinistro”. Depois dele começaram a deixar o partido personagens bastante reconhecidos, como Alejandro Encinas Rodríguez, Eloy Cisneros e Félix Salgado Macedonio. Inclusive se fala de abandono em “série”, que continuará nos próximos meses. A isso soma-se o fato de que, no começo de 2015, o senador pelo PRD Armando Ríos Piter anunciou publicamente a sua desistência de concorrer como pré-candidato deste partido ao governo de Guerrero nas próximas eleições. Seu argumento foi que Jesús Ortega condicionou sua candidatura oficial a “pactuar” com Aguirre Rivero e, garantiu, o pacto teria a ver com não envolver no futuro o ex-governador de Guerrero em qualquer investigação referente ao caso do desaparecimento dos estudantes de Ayotzinapa (El Universal, 2015). A indignação do povo guerrerense chegou a um nível muito alto ao ser anunciado que o próprio PRD alavanca como pré-candidato à prefeitura de Acapulco Ángel Aguirre Herrera, filho do ex-governador de Guerrero, Aguirre Rivero, que foi obrigado a renunciar ao cargo depois dos acontecimentos de Ayotzinapa.

11 – Como parte desta postura, Enrique Peña Nieto aderiu a uma campanha de protesto, através do Twitter, que exigia o aparecimento dos estudantes (#TodosSomosAyotzinapa), recebendo uma multidão de críticas e uma desaprovação generalizada, que geraram outra campanha, #TuNoEresAyotzinapa, em português #VocênãoéAyotzinapa. Milhares de cibernautas queriam deixar claro que Peña Nieto não podia se apresentar assim com semelhante descaro, era melhor que se encarregasse de encontrar os jovens estudantes.

12 – Negrito e sublinhado no original.

13 – Calderón Hinojosa (2006-2012) substituiu Vicente Fox Quezada (2000-2006) na Presidência da República, sendo estes períodos os únicos da história do México que não foram governados pelo PRI.

14 – A empresa Televisa, encabeçada por Emilio Azcárraga Jean (filho do fundador), junto com a TV Azteca, encabeçada por Ricardo Salinas Pliego, são as cadeias de televisão mais proeminentes do México e se erigiram como centros de poder político destacados. Televisa sempre esteve mais próxima do PRI, enquanto que a TV Azteca esteve do PAN. Para o caso do vínculo entre Televisa e o PRI baseado no tráfico de influências, corrupção, impunidade, manipulação de audiências etc., é recomendável ver o filme ‘La dictadura perfecta’ (A ditadura perfeita), dirigido por Luis Estrada e produzido em 2014.

15 – Andrés Manuel López Obrador foi militante do PRD durante muitos anos. Com apoio do partido, foi chefe de governo da Cidade do México e candidato à Presidente da República (derrotado por Peña Nieto) em 2012. Há dois anos deixou o PRD por diferenças irreconciliáveis com o grupo Nova Esquerda (conhecido como “Los Chuchos”, apelido dado a quem se chama Jesus, devido a que seus líderes são Jesús Ortega e Jesús Zambrano) (ver Milenio, 2014). Assim, criou o MORENA, que obteve seu registro oficial em 2014.

16 – Calcula-se que o crime organizado esteja infiltrado em 72% das prefeituras do país. (Revolución Tres Punto Cero, 2014).

Rogelio Marcial rmarcial@coljal.edu.mx

Professor e pesquisador do Colégio de Jalisco e do Departamento de Comunicação Social, Centro Universitário de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Guadalajara (México).