Foto: Talea Miller/PBS NewsHour

Infância maia guatemalteca: vulnerabilidade nutricional e políticas públicas para seu enfrentamento

A segurança alimentar é um tema que atravessa a história da humanidade e possui diferentes matizes, desde a predominância da desnutrição até o aumento da obesidade. Tais desequilíbrios nutricionais estão presentes em sociedades em que coexistem a riqueza e a pobreza, nas quais, por um lado, encontramos uma enxurrada de informações sobre os benefícios de um peso equilibrado e acesso a uma gama de alimentos hipercalóricos, enquanto, por outro lado, diversas circunstâncias socioeconômicas e geográficas comprometem a produção e o acesso aos alimentos.

 

Apesar de ser um problema antigo, somente depois da Segunda Guerra Mundial começou a ser discutido o direito à alimentação, tema que foi ratificado em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU). No entanto, a operacionalização desse direito só seria explicitada em 1966, no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) (ONU, 1948, 1966).

 

Para determinar obrigações, foi necessária uma nova interpretação da ONU sobre o direito à alimentação, estabelecida no Comentário Geral nº. 12, evidenciando o papel do Estado e as medidas a adotar para garanti-lo (CDESC, 1999). Posteriormente, foi criado o cargo de Relator Especial das Nações Unidas sobre o direito à alimentação e foram aprovadas as Diretrizes Voluntárias, ambas com o intuito de garantir este direito (FAO, 2000, 2005).

 

Especificamente para as crianças, o direito à alimentação foi instituído na Declaração dos Direitos da Criança, adotada em 1959, e reafirmado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 10 do PIDESC, e nos artigos 23 e 24 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966, 1989). Uma vez ratificados estes acordos, cada um dos países signatários, incluindo a Guatemala, deveriam procurar formular políticas e programas consistentes com a sua realidade.

 

A Guatemala é o país mais populoso da América Central, conformado por 22 departamentos, cuja população é maioritariamente indígena de ascendência maia, que constituem cerca de 60 por cento do total (Becerrill; López, 2011).  Os maias, por sua vez, são o grupo indígena mais numeroso e diversificado da América. Atualmente, a Guatemala reconhece 22 comunidades linguísticas, distribuídas entre cada um dos departamentos (IWGIA, 2016).

 

Produto da discriminação étnica na vida nacional da Guatemala, a alta concentração da riqueza e da terra conformou um padrão social altamente excludente da população maia, apesar de ela ser maioria (Sánchez-Midence; Victorino-Ramírez, 2012).  A Guatemala, inclusive, está classificada entre os países mais desiguais do mundo, ocupando a posição número 119. Quando comparados o grupo indígena e não indígena, usando o índice de Theil[1], calculado em 8.5 para este caso, a desigualdade se apresenta ainda mais perceptível (PNUD, 2016). Tal desigualdade se expressa em uma série de áreas, incluindo o direito à alimentação.

 

A Guatemala, em teoria, deveria garantir o direito à alimentação, sendo obrigação do Estado de proporcionar o desenvolvimento integral (Guatemala, 1985). Derivado desse mandato constitucional e dos tratados internacionais adotados, em 2005, foi aprovada a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional, para a formulação e implementação de planos para combater a insegurança alimentar.

 

O foco deste trabalho é descrever o estado de segurança alimentar da população e as potenciais políticas de segurança alimentar que visem garantir esse direito à população infantil principalmente, considerando que o direito à alimentação é garantido pela legislação guatemalteca.

 

Situação nutricional da infância guatemalteca

 

Em 2015, o número de crianças menores de cinco anos subnutridas nas regiões em desenvolvimento do mundo diminuiu, quando comparado com os anos 1990. Na América Latina também houve uma redução, embora com diferenças intrarregionais, sendo que a América do Sul foi a única a atingir a meta de menos de 5% das crianças em subnutrição, o que é esperado de outras causas (FAO; IFAD; WFP, 2015).

 

Quando mostrado o progresso da desnutrição na América Latina, de alguma maneira, se tornam invisíveis casos dramáticos. Por exemplo, segundo a FAO (2015), na Guatemala, 48% das crianças com menos de cinco anos encontram-se em desnutrição crônica e 4,9% em obesidade (FAO, 2015).  Ademais, segundo dados da Encuesta Nacional de Condiciones de Vida (ENCOVI) (Guatemala, 2015), esses números se agravam considerando que 70,2% das crianças de 0-9 anos vivem na pobreza, sendo a população indígena 1,7 vezes mais pobre do que a não indígena. Além disso, os 27,1% da população maia que vive em situação de pobreza extrema aumentou para 39,8% em 2014 (Guatemala, 2015).

 

Além do mais, as diferenças entre comunidades linguísticas abrangem outros aspectos além da pobreza: as crianças com o espanhol como língua materna têm menor prevalência de desnutrição crônica quando comparados com aqueles cuja língua materna é o maia. Por exemplo, as comunidades linguísticas Chorti (80,7%), Akateco (79,1%) e Ixil (76,9%), localizadas principalmente no oeste do país, são as mais afetadas, apresentando situação de vulnerabilidade, enquanto a cidade de Guatemala, de predominância ladina, possui 26,3% de desnutrição crônica (ODHAG, 2011).

 

Para Dilley e Boudreau (2001), a vulnerabilidade é a capacidade de responder à possibilidade de algum dano. Por conseguinte, através dos dados mostrados, pode-se ver que a capacidade de enfrentar a insegurança alimentar da população maia da Guatemala é limitada pelas condições socioeconômicas adversas. Logo, isso afeta não só a sua capacidade imediata para a aquisição de alimentos, mas também compromete a sua capacidade futura.

 

Para Freitas (2003), como produto da subordinação social, a fome está concentrada nos condenados à incerteza de sobreviver desde a mais tenra idade. Nessa perspectiva, a população maia guatemalteca é a mais afetada por ter sido atacada e subordinada historicamente das mais diversas formas, seja indiretamente, pela falta de políticas públicas inclusivas, ou diretamente, como no caso do conflito armado interno.

 

Portanto, a segurança alimentar e nutricional não corresponde apenas à simples relação de ter ou não comida, mas depende de uma série de fatores que tornam a segurança alimentar e nutricional um fenômeno complexo, multidimensional e contínuo, que pode piorar por causa da sua relação com as condições econômicas (Bezerra et al., 2015; Gubert; Santos, 2009).

 

Ou seja, para um fenômeno de tal natureza não há receita única como solução. No entanto, tem-se discutido a necessidade de políticas econômicas e sociais como o primeiro passo decisivo para resolvê-lo; além disso, mecanismos de institucionalização que criem uma base sólida para proteger os avanços alcançados e superar futuros obstáculos (FAO, 2015; Kepple, 2014; Valente, 2003).

 

Para fins operacionais, é possível dividir as políticas públicas de segurança alimentar de acordo com o objetivo que se deseja alcançar: garantir o acesso aos alimentos, sua disponibilidade, a utilização biológica adequada dos mesmos e a estabilidade alimentar. Considerando a vulnerabilidade infantil das comunidades maias em relação à desnutrição e conhecendo o potencial futuro que representam, se exploram as políticas nessas áreas e alguns desafios.

 

[1] O índice de Theil é utilizado para medir a diferença entre os grupos ou estratos.

Cristian David Osorio Figueroa crisgibb@hotmail.com

Médico clínico geral pela Universidade de San Carlos de Guatemala (USAC), Guatemala. Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Brasil. Membro do Núcleo de Pesquisa em Saúde Coletiva (NUSC/UEFS), na área de políticas, planejamento e gestão em saúde.

Thereza Christina Bahia Coelho tcuide@yahoo.com.br

Médica pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil, mestre em Saúde Comunitária (UFBA), doutora em Saúde Pública (UFBA) com pós-doutorado em Saúde Pública pela University of Essex, Inglaterra, e pela Universidad de Lanús, Argentina. Professora titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Brasil, onde coordena o Núcleo de Pesquisa em Saúde Coletiva (NUSC).