Foto: Talea Miller/PBS NewsHour

Infância maia guatemalteca: vulnerabilidade nutricional e políticas públicas para seu enfrentamento

Políticas de acesso à alimentação: reivindicação do maia como cidadão guatemalteco

 

O papel do Estado deve ser repensado para garantir o acesso aos alimentos, sendo mais ativo no processo de formulação de políticas públicas que respondam a essa finalidade. Como resultado do capitalismo tardio existente, concentrou-se tanto o sistema alimentar que os indivíduos ficaram sem poder de decisão, ou seja, sem a capacidade, a liberdade e a responsabilidade de escolher sua alimentação (Lang, 1999).

 

Esse poder de decisão, que determina o acesso aos alimentos, depende, em primeiro lugar, do poder de compra da população, que tem como componentes dois aspectos: os rendimentos e a flutuação de preços. Em segundo lugar, depende do conhecimento sobre o alimento, dos incentivos das lojas para a compra e do valor atribuído às coisas, ou seja,da percepção de qual produto na loja realmente vale o preço, e outros fatores, como a aceitabilidade social, raça ou etnia, gostos e preferências (Freedman; Blake; Liese, 2013; Rose et al., 2010).

 

Como exemplo dessa relação, de acordo com o referencial teórico dos antepassados e a experiência maia, existe uma classificação de alimentos. Esta se baseia na natureza do alimento podendo ser “frio” ou “quente”. Os alimentos quentes são benéficos para o organismo, porque preservam a temperatura corporal (Galindo; Chang, 2014), enquanto os frios não o são. De modo que, na formulação de políticas ou recomendações nutricionais, não devem ser menosprezados esses conhecimentos e práticas que afetam o poder de decisão.

 

White (2007) adverte que este poder de decisão também é afetado pelo incentivo ao consumo de alimentos devido à estrutura do mercado atual, que tem sido objeto de investigação para subsidiar o redirecionamento de políticas públicas reguladoras, culturalmente aceitas para a defesa do consumidor.

 

Para garantir a aceitabilidade cultural é importante conhecer os processos, os sentidos atribuídos e os hábitos alimentares das comunidades rurais. Por exemplo, Soares e Coelho (2008) mostram que as famílias, diante da incapacidade de garantir alimentos de qualidade e de seguir as orientações dos serviços de saúde, optam por produtos que possam ser facilmente compartilhados, com maior durabilidade no armário e que produzam sensação de saciedade e um eventual ganho de peso, para esconder da sociedade sua situação, ainda que possuam deficiências alimentares. De tal maneira que, nestas famílias, o correto cuidado nutricional da criança perde-se em detrimento das preocupações da vida diária. Conhecendo esses aspectos, é possível incorporar estes sentidos e significados na reeducação nutricional, por exemplo.

 

Além disso, a vulnerabilidade ao acesso dos alimentos, no caso da Guatemala, continua inserida em uma lógica de mercado, individualizando por completo a responsabilidade do ato alimentar, sem considerar fatores como o trabalho informal e a pobreza, agravados por um Estado que não privilegia as condições sociais, nem a segurança social. Em reflexo disto, a Guatemala é o penúltimo país na América Latina em gasto social, com apenas 8,1% do PIB (Acosta; Almeida; Pena, 2016). No contexto brasileiro, Silva (2014) atribui esse baixo gasto social à existência de um Estado que deixa nas mãos de parceiros do setor privado e dos que praticam filantropia aquilo que deveria garantir à população.

 

De modo que, diante da persistência da pobreza e da desigualdade social dentro do campo do acesso à alimentação, devem ser implementadas políticas alimentares que correspondam a um Estado preocupado com a inclusão social, por meio de programas de proteção social não contributiva, direcionado aos mais vulneráveis, enquanto se criam outros mecanismos de sustentabilidade, através da inserção e dignificação da população, garantindo os direitos econômicos, sociais e culturais dos cidadãos guatemaltecos (Martínez; Cecchini, 2011).

 

Um exemplo de tais intervenções são as políticas de transferência de renda, inseridas no sistema de proteção social. Este programa também é responsável pelas políticas contributivas (seguridade social) e de regulação do mercado de trabalho, com a finalidade de proteger o trabalho digno, as políticas antidiscriminação e a eliminação do trabalho infantil  (Bertranau, 2008; Martínez; Cecchini, 2011). Todas elas incidindo no direito à alimentação, por meio da melhoria da capacidade aquisitiva e, portanto, do acesso aos alimentos.

 

Atualmente há uma transição do termo “transferências condicionadas de renda” para “transferências de renda com corresponsabilidade”, que concede dinheiro às famílias, sob a condição de cumprir certas obrigações, e responsabiliza o Estado por assegurar condições que garantam a inclusão no mercado de trabalho e o acesso aos serviços básicos, como reconhecimento da desigualdade existente nas estruturas econômicas, laboral e social, para, de forma equitativa, garantir o pleno desenvolvimento dos cidadãos (Bertranau, 2008; Cohen; Franco, 2006).

 

A primeira experiência de transferências de dinheiro na Guatemala remonta a 2008, durante o governo de Álvaro Colom, através da criação do Conselho de Coesão Social, que também seria responsável pelo programa Restaurante Solidário, como um mecanismo de acesso a alimentos, por um custo acessível, para as pessoas em situação de rua (Guatemala, 2008).

 

Estes programas deram um primeiro passo na concessão de renda e alimento para os mais pobres. No entanto, foram implementados de forma focalizada, errática, com atrasos e critérios que excluíam departamentos altamente vulneráveis no campo nutricional, sem interligação com outras políticas voltadas para a emancipação de seus beneficiários (PDH, 2009), ao contrário do caso Bolsa Família, que, de acordo com Rego e Pinzani (2014), permitiu reduzir a pobreza e dignificar a população historicamente marginalizada, com a possibilidade de serem autônomos.

 

Outro programa de acesso aos alimentos com potencial significativo para a comunidade infantil maia é o Programa de Alimentação Escolar. Na Guatemala, o projeto de alimentação escolar começou em 1959, com cooperação internacional. No entanto, só foi incorporado, sem interrupções, a partir de 1985. Embora o programa esteja implementado, são poucos os estudos publicados avaliando o impacto que tem e, em parte, as múltiplas formas adotadas são o que torna impossível saber a eficiência e a eficácia que possui (Alvarado, 2014).

 

Devido às suas características calóricas deficientes e à sua inconsistência na entrega, principalmente, tem-se constituído como um programa de merenda escolar, longe da proposta ideal: ser um alimento com objetivo de evitar a sensação de fome no momento da aprendizagem, melhorando a concentração e o desempenho escolar. Também tem um valor social, devido ao seu caráter estratégico, ao envolver-se no processo ensino-aprendizagem, adquirindo caráter de prática pedagógica, ao promover a segurança alimentar e nutricional, e reduzindo as privações vividas no lugar (Brasil, 2007; Freitas et al., 2013; Libermann; Bertolini, 2015). 

 

Experiências positivas de alimentação escolar existem. Por exemplo, o caso brasileiro, que, embora começasse com a participação da comunidade internacional e como um simples lanche (Brasil, 1955), conseguiu evoluir. Assim, foi incluído como um direito constitucional em 1988 e, posteriormente, nas diretrizes e bases da educação nacional. Atualmente, o programa se estende universalmente, inclui um nutricionista como o técnico responsável pelo programa, e utiliza produtos locais da agricultura familiar, dando prioridade aos alimentos orgânicos e agroecológicos. Além disso, restringe alimentos ricos em açúcar, gordura e sal, incentivando a participação da comunidade (Barbosa, 2012).

 

Políticas de utilização biológica dos alimentos

 

A utilização biológica dos alimentos refere-se à capacidade do organismo de utilizar os alimentos consumidos para convertê-los em nutrientes posteriormente assimilados. Para que isso aconteça, a qualidade dos alimentos deve permanecer desde a colheita, compra e manipulação, até o consumo, o que assegura que eles sejam inócuos e realmente possuam propriedades nutricionais (FAO, 2006).

 

Talvez uma das áreas mais desafiadoras e imprescindíveis na implementação de políticas públicas de segurança alimentar seja a de utilização biológica, não pela dificuldade de formulá-las, e sim por causa da sua abrangência. Esta cobertura inclui, sem exaustão, medidas de saneamento ambiental, prestação de serviços públicos de saúde, educação alimentar culturalmente adaptada e uma adequada vigilância sanitária dos alimentos, todas sob a corresponsabilidade do Estado.

 

Estudos apontam (Jesus et al., 2014; Kavosi et al., 2014; Sobrino et al., 2014) que a ausência de saneamento ambiental, a precária assistência pré-natal, as condições de moradia inadequadas, a morbidade infantil e a ausência de fonte de água potável aumentam o risco de deficiência nutricional em crianças. Contrariamente a essas condições, estudos de coorte (Hoddinott et al., 2013; Horton; Steckel, 2013; Victora et al., 2015) mostram que aqueles com controle de pré-natal, aleitamento materno, acesso a educação e melhores condições socioeconômicas na idade adulta conseguem melhores oportunidades de emprego e salário.

 

Apesar da importância de tais serviços, no entanto, de acordo com a última Pesquisa Nacional de Condições de Vida (ENCOVI), realizada em 2014, apenas 77,8% da população possui uma fonte melhorada de água para beber[2], sendo maior o acesso nas áreas urbanas, atingindo 89,0% do total, ao contrário da área rural, onde apenas corresponde a 64,4% das famílias com esse acesso. Por outro lado, 58,3% da população tem condições de saneamento ambiental adequado, sendo que, ao considerar a área de residência, a situação nas zonas rurais é crítica, ao atingir apenas 28,9% das famílias (Guatemala, 2015).

 

A situação permanece crítica nas áreas rurais, apesar da aprovação da Política Nacional do Setor de Água Potável e Saneamento, em 2012, que teve como objetivo melhorar a infraestrutura existente e ampliar a cobertura nos municípios priorizados, utilizando suas taxas de desnutrição, pobreza e mortalidade infantil. No entanto, não se explicitam os mecanismos para implementar a política, priorizando apenas áreas geográficas, desconsiderando a situação familiar específica. Políticas semelhantes priorizam famílias de baixa renda segundo critérios universais, além da finalidade da utilização da água, seja para consumo ou para produção (Brasil, 2011).

 

O acesso à saúde na Guatemala enfrenta grandes desafios, desde o baixo financiamento, 7,1% do PIB, que não tem apresentado mudanças na última década, até a infraestrutura praticamente estática, considerando que 90% das despesas de saúde vêm do bolso do usuário (OMS, 2011). Além disso, 70,9% do pessoal de saúde encontra-se concentrado na capital, deixando vulneráveis as regiões mais remotas do país (URL, 2008).

 

Enquanto isso, as pessoas, em muitas partes do país, encontram sua mobilidade aos serviços de saúde dificultada pelas características geográficas, já que mesmo o atendimento no serviço de saúde gratuito envolve despesas de transporte e medicamentos.  Portanto, preferem buscar uma farmácia que vai dar o atendimento na língua local, respeitando as crenças e cultura, sem medo dos maus tratos e da discriminação encontrada na medicina tradicional (Hautecoeur; Zunzunegui; Vissandjee, 2007).

 

Por outro lado, a educação alimentar ganhou espaço, especialmente com as guias alimentares como ferramentas. Estas guias focam tanto na deficiência nutricional como na desnutrição e obesidade, com o objetivo de recomendar a quantidade e a qualidade dos padrões alimentares adequados, com base em argumentos científicos de cada faixa etária, para que suas recomendações tenham maior aceitação de acordo com os alimentos típicos de cada grupo. Deve ser dada uma atenção especial às diretrizes para crianças menores de dois anos, atendendo às características ambientais, culturais e educacionais da população (Barbosa; Salles-Costa; Soares, 2006).

 

A utilização biológica dos alimentos é uma área multidimensional muito importante, mostrando que a segurança alimentar não depende de um único aspecto. Por exemplo, garantir às famílias o poder de compra sem a educação alimentar apropriada e pertinência cultural, em condições insalubres e falta de acesso à educação, não garante melhorar o estado nutricional das famílias e, pior que isso, não garante o rompimento da cadeia intergeracional da desnutrição.

 

[2] Inclui água canalizada para uma habitação, terreno ou quintal; torneira pública ou tubo vertical; nascente protegida; e recolha de água da chuva (Guatemala, 2015).

Cristian David Osorio Figueroa crisgibb@hotmail.com

Médico clínico geral pela Universidade de San Carlos de Guatemala (USAC), Guatemala. Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Brasil. Membro do Núcleo de Pesquisa em Saúde Coletiva (NUSC/UEFS), na área de políticas, planejamento e gestão em saúde.

Thereza Christina Bahia Coelho tcuide@yahoo.com.br

Médica pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil, mestre em Saúde Comunitária (UFBA), doutora em Saúde Pública (UFBA) com pós-doutorado em Saúde Pública pela University of Essex, Inglaterra, e pela Universidad de Lanús, Argentina. Professora titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Brasil, onde coordena o Núcleo de Pesquisa em Saúde Coletiva (NUSC).