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Infância Mapuche: perspectivas do sofrimento psíquico perante a violência estrutural do neoliberalismo no Chile

O que se transmite entre as gerações e se oferece como referência identificatória

Em “Introdução ao narcisismo” (1914), Freud explica a ideia de uma formação do inconsciente na transmissão do próprio recalque. Quer dizer, aquilo que se transmite é sempre da ordem do reprimido quando falamos de transmissão simbólica.

Então, de qual recalque falamos quando se trata da cultura Mapuche? Que universo identificatório é aquele que o bebê captura e se lhe oferece como constitutivo do psiquismo?
Talvez voltar à linguagem possa nos oferecer pistas para seguir um caminho próprio de interpretação a respeito.

De acordo com Mora (2001), em Mapudungun (língua Mapuche), a palavra Küpal alude ao conceito de Família e tribo. Küpal é um substantivo cujo significado etimológico se define como o desejo encarnado que ordena trazer algo de trás ou de antes, ou como o atualizar o ir e vir do mandato do sangue que vem e traz algo de trás.

Seguindo a linha de definição da palavra Küpal, trazer algo de trás implica um ato de apropriação ou metabolização que, nas palavras de Aulagnier (1975), é entendido como o ato que permite fazer homogêneo aquilo que é heterogêneo ao psiquismo, trabalho psíquico que explica o fenômeno da identificação primária.

Por outra parte, a palavra Domo, que em Mapudungun quer dizer mulher, representa também o feminino, que é entendido como o meio do qual dispõe a natureza para se acrescentar e melhorar a si mesma, um tipo de instrumento personalizador da abundância e da fecundidade. Domo é aquela que oferece terra ao céu. É uma palavra ligada à mulher, terra e natureza e ao investimento libidinal que aquela categoria possui na ideologia Mapuche.

Para nos referir à Terra, a palavra correspondente em Mapudungun é Ñuke Mapu, que literalmente significa Mãe Terra, Terra Mãe, Terreno da Mãe. Ñuke Mapu é a terra, mas não se refere ao solo, é o mundo Mapuche que, através dos espíritos da natureza, entrega a vida ao seu povo. Ñuke Mapu é o Tudo, com o que se estabelece uma relação imediata e cotidiana, num espaço onde tudo está interconectado.

Seguindo a concepção Mapuche, então, o entorno, a natureza é o território do feminino e também da totalidade, a qual se encontra em relação de instantaneidade, onde não parece existir o um e o dois, não há diferenciação nem distinções que localizem sujeito e objeto. O sujeito e o outro materno, representado na natureza, se encontram num estado de fusão total e permanente. Como exemplo disso, de acordo com o Dicionário Mapuche (Minsal, 2018), toda doença, de qualquer classe, é entendida como um desequilíbrio nesse encontro, que costuma ser produzido pela interrupção que produzem as empresas florestais, barragens, etc., que colocam o Huinca (chileno) no lugar de terceiro que produz um corte irrepresentável, que se instala no psiquismo do sujeito indígena como uma ameaça de fragmentação, na medida em que vem rasgar o que, por definição, é inseparável.

A terra, longe de ser um objeto da realidade que nos provê recursos para a subsistência, no universo simbólico Mapuche, parece ocupar o lugar de um objeto no psíquico, lugar onde cabem as representações mais arcaicas associadas a fantasias de fusão, totalidade e completude. No entanto, a possibilidade de quebra, significada como desequilíbrio, alerta para a concepção de uma falta e consequente separação como algo não próprio do sujeito, mas, antes, algo que deve ser restaurado para recuperar o equilíbrio que significa a totalidade indivisível e fusionada do sujeito Mapuche e a mãe natureza.

Voltando então à noção de violência, nessa ordem cultural, parece se tratar de uma questão mais radical, já que, por um lado, está instalada uma cultura patriarcal que, sob o funcionamento do sistema neoliberal, se sustenta mediante a apropriação e exploração desmedida do recurso para conseguir um desenvolvimento econômico e tecnológico que se apodere e instrumentalize seu entorno com o fim de extrair utilidades. Dessa maneira, se impõe sobre uma cultura que situa o feminino e o materno em um lugar de preponderância particular, que organiza seu universo de referências simbólicas e subjetivantes muito longe daquela pretensão de modificar a realidade de seu entorno ou de se servir deste, mas que busca manter o que concebe como equilíbrio sustentado em um estado de fusão e completude com a terra-mãe, sem intervir, mas ser um com ela. Similar ao que Lacan situa no primeiro tempo do Édipo.

A partir desse olhar, podemos pensar a resistência e a desconfiança à cultura Huinca porque representa uma ameaça de assassinato do sujeito Mapuche, como um operador de corte traumático de seu vínculo com o materno. É assim que o universo de significações identificatórias transmitidas entre as gerações torna o Huinca (chileno) e sua cultura neoliberal sujeito da desconfiança, pois representa, a partir do seu comportamento e de sua construção cultural, uma ameaça à existência da cultura Mapuche, devido ao lugar que dá ao poder e ao consumo.

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Resumo

O presente artigo pretende expor a violência a partir de diversas perspectivas ou dimensões e analisar sua influência no processo de identificação experimentado na infância Mapuche. Para isso, abordaremos a noção de aculturação e de transmissão entre as gerações, assim como proporemos um olhar reflexivo a respeito da concepção da realidade por parte das culturas em luta como um modo de compreensão do conflito, além dos aspectos evidentes relacionados ao território e aos recursos. Pretendemos fazer uma interpretação psicanalítica do conflito a partir da perspectiva do sujeito e comunidade Mapuche.

Palavras-chave: Mapuche, infância, violência, transmissão, identificação.

Abstract

This article intends to showcase violence through its multiple perspectives or dimensions, and analyse its influence in the identification process experienced during Mapuche childhood. To do so, we will tackle the notion of acculturation and of generational transmission. We will also propose a reflexive outlook on the concept of reality by part of the struggling cultures as a means of understanding the conflict, besides the evident aspects related to territory and resources. We intend to formulate a psychoanalytic interpretation of the conflict from the perspective of the Mapuche subject and community.

Keywords: Mapuche, childhood, violence, transmission, identification.

Data de recebimento: 16/11/2018

Data de aceite: 10/02/2019

José Ignacio Schilling Richaud joseignacio.schilling@gmail.com

Mestre em Psicologia Clínica pela Universidad Adolfo Ibáñez (UAI), Chile. Psicanalista em formação pela Sociedad Chilena de Psicoanálisis (ICHPA). Diretor Clínico e sócio-fundador do Aperturas Clínicas - centro de investigación y tratamiento de la infancia con problemas.