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Infância sob ameaça: processos de caducidade social em El Salvador

Fazer viver e fazer morrer como tensão política

As dinâmicas e processos que entram na categoria de caducidade constituem misturas biopolíticas e tanatopolíticas. Isto é, formas de poder que se exercem sobre a “população infância” que permutam constantemente entre a gestão e a produção da vida (registro de crianças deslocadas, criação de instâncias para a atenção de migrantes, a obrigatoriedade da maternidade em face da proibição do aborto em todas suas formas) e a produção, súbita ou latente, de morte (homicídios de jovens, a migração irregular com seus perigos, agressões sexuais e gravidez infantil que derivam em suicídio) (Foucault, 2009; Yate Arévalo; Díaz Rodríguez, 2015).

Embora tenha sido dito que a política – as instituições, o estado de direito, os tratados – era essencial para a proteção das crianças do mundo inóspito que as rodeia, os processos de caducidade demostram precisamente a vulnerabilidade de grande parte da infância salvadorenha e a vigência de tendências biopolíticas e tanatopoliticas. Confirma-se assim a distorção, a impotência e até a desativação da política própria de um estado de direito democrático como instrumento de garantia de bem-estar e proteção da infância. A caducidade expõe contradições abertas como contar com leis que não se aplicam, com instituições reumáticas ou discursos para parar a migração que calam frente à persistência de condições que a provocam. A biopolítica e a tanatopolítica configuram um cenário de tensão simultânea entre a inclusão e a exclusão. Um estado de exceção que dilui os limites entre o jurídico e o não-jurídico (Gil, 2010), que se (des)aplica sobre corpos com vida, porém indefesos, ao se encontrar excluídos do sistema a partir de uma inclusão marcada pela caducidade.

Reflexões finais

A caducidade retrata um conjunto de práticas sociais deletérias que, na atualidade, afetam grande parte da infância e da juventude salvadorenha além da violência, mas sem desconsiderá-la nem subestimar seus desmedidos efeitos. A gravidade de arrancar a vida a tantas crianças não deve fazer perder de vista que, embora muitos sejam devorados pelo país-Saturno, muitos mais são os que observam – e resistem, às vezes indefesos, às vezes fugindo e às vezes devolvendo as mordidas a adultos e outras crianças por igual – enquanto, a partir da fragilidade das suas existências, assistem expectantes à sólida possibilidade de chegar a ser os seguintes em experimentar a caducidade.

A caducidade revela-se por seus efeitos mas, como foi exposto, esta constitui um indício inequívoco da vigência de certos arranjos sociais: sociedades violentas, evidentemente, mas também democracias e economias de mercado nas quais o cidadão existe e vale na medida em que tem e segundo mimetize sua vida com o ciclo interminável de uso e desuso das mercadorias. Mas a caducidade também atualiza práticas sociais patriarcais e autoritárias em que a instrumentalização, a possessividade masculina e o avassalamento da existência das crianças resultam evidentes. A infância se encontra sob ameaça devido a configurações sociais e institucionais que pulverizam os horizontes da vida, mas também devido ao funcionamento de uma política que assiste silenciosa e com impotência à dilapidação das supostas “gerações de revezamento” ao “futuro da nação”, ao “dividendo demográfico” que se supõe constituir hoje um capital humano para os países (é o caso pelo menos dos países de América Central; ver PEN, 2016).

Quando a ameaça existe em uma realidade dada e, por conseguinte, são identificáveis processos multifacetados e persistentes de caducidade, o olhar acadêmico dominante costuma olhar raridades. A academia dominante – falo, sobretudo, da Psicologia do Desenvolvimento -, costuma conceber o ciclo da vida de crianças e jovens como trajetórias vitais lineares e relativamente estáveis, consonantes a condições sociomateriais que propiciam tanto esse equilíbrio como essa hegemonia na produção de conhecimento. Mas, se a circunstância é adversa (existe desnutrição, maltrato, abandono), essa recebe tratamentos marginais, “re-enquadramentos” nos textos que abstraem ou cortam o feio da construção ideal desenvolvida para reafirmar sua excepcionalidade. Porém, onde o excepcional é norma, onde o restritivo resulta prescritivo, quando se pensa em, e a partir de, sociedades inóspitas, muitas teorias e categorias na hora de serem utilizadas revelam-se insuficientes e impelem a reinventar tanto as perspectivas de análise na prática, como no posicionamento do trabalho acadêmico (Orellana, 2016).

A constância e a desproporção da infância sem vida, perseguida ou coisificada, refutam qualquer atribuição de excepcionalidade. Mais ainda quando é somada à cifra obscura que evita os registros para terminar no esquecimento, em uma constatação de que, em países como El Salvador, a realidade costuma ser pior do que parece. Um país-Saturno constitui uma fábrica de infância anômala – crianças assassinadas e assassinas, crianças “não acompanhadas” que se acompanham entre si e migram de forma irregular, infância e juventude LGBTI forçada a fugir por ter identidades proscritas, meninas que parem meninas -, fruto da metástase própria da anomalia primeva de um mundo adulto infanticida e antropófago. Se a anomalia é generalizada, pelo mesmo motivo, deve ser assumida como uma fonte epistemológica, como matéria prima de desconstrução crítica, assim como de questionamento às análises que persistem em tratá-la como uma extravagância fenomenológica.

A noção dominante que sustenta que o ciclo vital de uma pessoa acontece em etapas e segundo o sucesso relativo que consiga em cada uma delas não parece se adequar a ciclos de vida massiva e predominantemente desvantajosos como os que capturam os processos de caducidade. Nessas condições, o mais provável é identificar processos de interrupção (por exemplo, morte) ou de colapso (por exemplo, adultização) e, portanto, de demarcação difusa entre etapas de desenvolvimento e suas supostas tarefas associadas. Quando a anomalia social é frequente e persistente, como ocorre em El Salvador, a reflexão acadêmica enfrenta o desafio de pensar o que se supõe que deveria ser transitório como permanente como objeto de estudo. Da mesma maneira que é comum em El Salvador o fato de nunca se obter documentos de propriedade, a escola ficar suspensa indefinidamente, ou o trabalho precário informal se perpetuar sem possibilidades de aposentadoria, também o é para muitas crianças o definitivo homicídio, o tortuoso deslocamento forçado que implica um prolongado limbo material e legal, assim como a prisão perpétua existencial das sequelas do abuso sexual. A faminta caducidade que consome a infância salvadorenha exige olhar além da violência, mais perto das visões progressivas e homeostáticas, e situadas na vida social que emerge, sucumbe e resiste sob ameaça.

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Resumo

O artigo utiliza a metáfora da ameaça para aludir ao efeito combinado e persistente de processos que minam a vida e o bem-estar da infância em El Salvador. Esse conjunto de processos se identifica como processos de caducidade ao forçar a interrupção da funcionalidade existencial da infância. Identificam-se e oferecem-se indicadores de pelo menos três formas de caducidade: aniquilação, expulsão e exploração. A identificação destes processos sugere que a política que realmente se aplica nessas condições responde, simultaneamente, a uma biopolítica e a uma tanatopolítica. Conclui-se com reflexões que, considerando condições adversas de vida bastante inamovíveis como as que experimentam milhares de crianças em El Salvador, exigem considerar a anomalia como fonte de conhecimento e o supostamente provisório como permanente.

Palavras-chave: violência, infância, biopolítica, política, caducidade.

Data de recebimento – 30/05/2018

Data de aprovação – 05/08/2018

Carlos Iván Orellana

ivan.orellana@udb.edu.sv / psi.ciorellana@gmail.com
Doutor em Ciências Sociais, FLACSO - Programa Centroamericano. Formação acadêmica e profissional em Psicologia Social e Política, Universidad Centroamericana (UCA), El Salvador. Pesquisador da Universidad Don Bosco, El Salvador.