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Institucionalização da juventude pobre no Brasil: questões históricas, problemas atuais

Introdução

A questão que norteia a escrita do presente artigo engendrou-se a partir de dois estágios distintos, realizados no campo da infância e da adolescência: em um conselho tutelar e em um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSi), ambos localizados no Rio de Janeiro. Nesses espaços, foram possíveis encontros com diferentes histórias de meninos e meninas que foram marcadas pelo choque com o poder público – com algo que “os arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer” (Foucault, 2012, p. 203). Tais encontros produziram inquietações acerca do abrigamento e da internação psiquiátrica da juventude, fazendo com que a institucionalização desse público, nos tempos de hoje, fosse interrogada.

Nas experiências de estágio no conselho tutelar e no CAPSi, foi possível notar que, muitas vezes, as justificativas para o abrigamento ou para a internação psiquiátrica são atravessadas por uma mesma expressão: o risco social. Mas cabe indagar: que forças fazem operar uma forma de cuidado que precisa retirar meninos e meninas do território onde vivem e submetê-los às ordens de uma instituição fechada? Assim, essa se torna a questão política principal deste artigo: que construções históricas atravessam o uso presente da estratégia de abrigamento e de internação psiquiátrica dirigida à juventude pobre?

Sobre trilhos e barreiras: traçando caminhos de cuidado

Orientados por políticas no campo da infância e da adolescência, ambos os serviços que servem como campo experiencial para as questões deste artigo são lugares destinados ao cuidado de crianças e adolescentes. Esses espaços foram forjados a partir da conjuntura de redemocratização política no País, na segunda metade da década de 1980, e trouxeram um novo modelo de atenção à infância e à adolescência.

Composto por cinco conselheiros tutelares eleitos pela comunidade, equipe técnica e equipe administrativa, o conselho tutelar é o órgão responsável pela garantia de direitos de crianças e adolescentes. No cotidiano de trabalho, o equipamento recebe diversas demandas, dentre as quais, conflitos familiares, conflitos escolares e situações variadas de violência. A função do conselho tutelar é buscar, junto às famílias, conduções adequadas para essas ocorrências. Quando necessário, encaminham-se essas situações a uma rede composta por serviços de saúde, de assistência e pelo judiciário. Todavia, nem sempre é possível contar com essa rede. Nos caminhos cotidianos das políticas públicas, as barreiras vão se mostrando incessantemente: rede de proteção sucateada, precarização do serviço, lugares nos quais o conselho não consegue entrar… As fragilidades da rede vão, assim, definindo os caminhos percorridos pelo conselho tutelar para garantir a proteção das crianças e dos adolescentes com os quais trabalha.

Assim como o conselho tutelar, o CAPSi também é um serviço apoiado em uma rede intersetorial. Amparado nas direções da Reforma Psiquiátrica, o CAPSi se distancia politicamente da ideia de que o cuidado em saúde mental deva dar-se em instituições fechadas. No CAPSi, portanto, as estratégias de cuidado são traçadas também a partir de uma série de parcerias que se aliam para trabalhar integralmente sobre as questões das crianças e dos adolescentes atendidos no local.

Ambos os estabelecimentos encontram suas condições de possibilidade a partir de lutas políticas dos movimentos sociais no Brasil. Foi em um cenário de enfrentamento ao regime militar que surgiu, durante os anos 1970 e 1980, uma série de críticas dirigidas ao sistema privado de saúde vigente na época e aos modos de lidar com a loucura e com crianças e adolescentes. Nas discussões de trabalhadores, de equipamentos de saúde e de assistência, emergem o Movimento pela Reforma Psiquiátrica Brasileira, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – fundamentais para pensar novas estratégias de cuidado à loucura, à infância e à adolescência.

Sob a doutrina da proteção integral e em forte oposição ao Código de Menores, promulgado em 1927, o ECA sustenta que crianças e adolescentes têm direitos fundamentais que devem ser garantidos não só pela família, mas pela população em geral e pelo poder público (Nascimento; Scheinvar, 2010). A doutrina de proteção integral, portanto, corresponde à principal diretriz do Estatuto que, em um de seus artigos, afirma que é

[…] dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (Brasil, 1990, art. 4).

Desse modo, definir aqueles com menos de 18 anos como sujeitos de direitos retira da legislação o termo menor, amplamente difundido desde o final da década de 1920, que era produtor e produto de práticas policialescas classistas e racistas. O ECA abre caminhos para que outras políticas sejam elaboradas para esse público. Inicialmente ausente das conferências de Saúde Mental realizadas desde 1987, tal temática foi incluída como pauta pela primeira vez em 2001, na III Conferência Nacional de Saúde Mental (Delgado, 2011). Após essa conferência, é aprovada a Lei 10.216, que, entre outros pontos, estabelece as modalidades de Centros de Atenção Psicossociais. É somente a partir desse momento que pode produzir-se a criação dos Centros de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil. Nas palavras de Couto; Delgado (2015), o CAPSi

[…] visa à superação do cenário anterior, no qual, a rigor, crianças e adolescentes com necessidades em saúde mental ficaram desassistidas ou submetidas a processos de institucionalização externos ao sistema psiquiátrico asilar, que, por décadas, foram invisíveis até mesmo ao vigoroso movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira (Couto e Delgado, 2015, p. 19).

Apesar de os movimentos da saúde mental e da infância e adolescência não caminharem juntos desde suas formulações, o ECA e o campo aberto pela Reforma Psiquiátrica foram fundamentais para a inclusão desse tema nas políticas de saúde mental. Sobre esse assunto, Couto; Delgado (2015) pontuam que

[…] essas condições advieram de acontecimentos diretamente ligados ao campo da saúde mental, os quais ampliaram substancialmente sua institucionalidade; e de outros, externos a ele, que inscreveram uma nova concepção de criança e adolescente no ordenamento jurídico, político e social brasileiro, com consequências para a qualificação das ações públicas dirigidas ao seu cuidado e proteção (Couto; Delgado, 2015, p. 20).

Com isso, é possível afirmar que o ECA traz uma nova perspectiva sobre a infância e a adolescência para o campo específico da Saúde Mental. Além disso, tal inclusão traz a ideia de que crianças e adolescentes também sofrem e, por isso, necessitam de cuidado. Sendo assim, tornam-se simultaneamente sujeitos psíquicos e de direitos (Couto; Delgado, 2015).

Seguindo, portanto, as mesmas diretrizes da Reforma Psiquiátrica e do CAPSi no que diz respeito à sua base territorial e ao protagonismo dos sujeitos, o CAPSi deve conhecer o contexto social e a demanda do lugar onde está inserido, bem como oferecer atendimento a crianças e jovens quando necessário. A partir dessas novas políticas, é possível constatar que novos modos de cuidado puderam emergir. Portanto, tanto o conselho tutelar quanto o CAPSi são espaços que convocam a pensar linhas de cuidado, estratégias de trabalho e modos de estar junto dessas populações por eles atendidas de uma maneira contraposta à da internação.

Ao lançar mão de uma prática que não encerra as vidas de crianças e jovens em categorias de inferioridade, vemos que suas histórias atravessam os muros das instituições e ganham outros contornos. Contudo, o que se percebe é que os jovens considerados em risco são aqueles que provocam algum incômodo – e esse incômodo talvez faça com que persistam forças que supostamente não seriam mais vigentes. Sobre isso, Silva (2013) alega que a

[…] resposta que nossa sociedade tem dado ao que escapa à norma, aos atos dos adolescentes que transgridem ou perturbam a norma social, tem condenado e conduzido parte de nossos jovens ao encarceramento precoce. Uma realidade que pede denúncia e reivindica oferta de dispositivos capazes de acolher o estrangeiro que habita esses pequenos corpos (Silva, 2013, p. 64).

Se há uma clara determinação legal das políticas públicas, tanto no que tange à Assistência Social, quanto no que tange à Saúde Mental, causa estranhamento que a direção territorial e conectiva muitas vezes não seja posta em prática – ambas operando recorrentemente aos moldes do abrigamento e da internação. É a partir de fragmentos da experiência de estágio em um conselho tutelar e em um CAPSi que a efetividade da direção histórica conquistada recentemente no campo das políticas públicas será interrogada, a fim de que a questão que norteia o presente artigo possa se mostrar em toda sua força imagética, tensa e inacabada.

Marianne de Camargo Barbosa mariannecamargo@id.uff.br

Psicóloga, graduada pela Universidade Federal Fluminense, Brasil; aluna  do Programa de Estágio Multiprofissional em Saúde Mental  nível de Residência, de Niterói – Fundação Municipal de Saúde Niterói – Rio de Janeiro – Brasil.

Danichi Hausen Mizoguchi danichihm@hotmail.com

Doutor em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense; professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia, da Universidade Federal Fluminense – Brasil.