Foto: Moema Costa

O lúdico em questão: brinquedos e brincadeiras indígenas

Brinquedos e brincadeiras levados a sério

Brinquedos enquanto objetos lúdico-infantis oriundos de sociedades indígenas são artefatos, não necessariamente numerosos, nas coleções etnográficas de reservas técnicas de museus e universidades brasileiras. Embora não tenham sido colecionados ou coletados a partir de pesquisas que tivessem como objeto as relações sociais referentes ao mundo da brincadeira ou ao universo infantil1, espaço onde frequentemente os brinquedos se inscrevem, os artefatos encerrados nas reservas foram recolhidos dentro de propostas voltadas aos temas mais candentes da etnologia indígena no Brasil, quais sejam: os estudos sobre organização social e contatos interétnicos que marcaram as décadas de 60 e 70 do século XX.

Os artefatos sob a guarda da reserva técnica do Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo, da Universidade Federal do Pará (UFPA), não fogem à regra. O reconhecimento da dificuldade referente à “limitação produzida pela coleta” não se constitui em obstáculo para levar a sério os brinquedos e correlacioná-los às brincadeiras descritas na literatura antropológica pertinente ao tema.

O diálogo com os artefatos é feito a partir do registro das peças da reserva, que abre possibilidade de exame técnico a partir do manuseio, da fotografia e do desenho de observação em detalhe tanto do objeto em si, como de partes do objeto de acordo com a necessidade de compreensão. Portanto, a reserva técnica é o local de trabalho de campo. Simultaneamente, o “campo” é estendido à literatura antropológica em busca de descrições de objetos (existentes na reserva ou peças similares). Parte-se da obra dos profissionais que constituíram as coleções para, no momento seguinte, alcançar as referências etnográficas presentes nos registros de acervos localizados em páginas de instituições pertinentes na internet e nos trabalhos de etnologia indígena e, até mesmo, não indígena, rastreando imagens e descrições do quotidiano das sociedades que possam indicar a confecção e/ou o uso dos objetos tomados a exame ou de objetos similares.

O trabalho de campo, como reza a tradição antropológica, foi realizado entre os Xikrín localizados na aldeia Cateté, no hoje município de Parauapebas, no estado do Pará. O procedimento indiciário (Ginzburg, 1993) que se adotou permite ensaiar uma etnografia dos objetos por meio dos quais se pode fazer uma leitura da representação e sociabilidade sociocultural dos grupos geracionais, em especial as crianças, pois os brinquedos possibilitam ir além de quem produz os objetos ou brinca com eles.

Busca-se o lúdico para fins do presente exercício acadêmico a partir do acervo etnográfico sob a guarda da UFPA, onde há 22 brinquedos num universo de 1512 artefatos. Os artefatos são oriundos de quatro sociedades indígenas: oito brinquedos Anambé, quatro artefatos Suyá, uma única peça Trumai e nove brinquedos Xikrín. Produzidos em barro, madeira ou trançado em fibras vegetais, apresentam-se como miniaturas de arcos, flechas, chocalhos, faca e remo (Quadro 1). Artefatos que, segundo a classificação museológica proposta por Berta Ribeiro (1988), se inscrevem na categoria artesanal ‘objetos rituais, mágicos e lúdicos’, considerados utensílios lúdicos infantis que “… compreendem a vasta gama de brinquedos socializadores … que ensinam as crianças de cada sexo a se familiarizarem com o patrimônio cultural de cada tribo… [os] objetos [são] fabricados por adultos, ou crianças mais velhas para lazer e prazer cotidiano” (Ribeiro, 1988, p. 286).

Quadro 1. Categorias artesanais da coleção etnográfica do LAANF/UFPA

Categorias artesanais Coleção Frikel (1965) Xikrín 2 Coleção Galvão & Frikel (1966) Trumai 3 Coleção Galvão & Frikel (1967) Suyá 4 Coleção Figueiredo & Vergolino e Silva (1969) Anambé 5
Armas Brinquedo / Miniatura de arco (Nº. 188 e Nº 211). Brinquedo / Miniatura de flecha (Nº. 210 e Nº. 212) Brinquedo / Miniaturas de arcos, de flechas e de zagaias (Nº. 1110)
Cerâmica Brinquedo zoomorfo de barro (Nº. 929, 930, Nº. 931 e Nº. 932)
Instrumentos musicais e de sinalização Brinquedo / Miniatura de chocalho (Nº. 293 e Nº. 294) Brinquedo / Miniatura de chocalho (Nº. 743)
Objetos rituais, mágicos e lúdicos Brinquedo zoomorfo em envira (Nº. 214 e Nº. 215) Brinquedo de taquara (Nº. 1081, Nº. 1082 e Nº. 1083)
Trançados Brinquedo trançado (Nº. 213) Cesto paneiriforme (Nº. 1151)
Utensílios e implementos de materiais ecléticos Brinquedo / Faca de madeira (No. 1118). Brinquedo / Miniatura de remo (Nº. 1123
Utensílios e implementos de madeira e outros materiais Brinquedo / Miniatura de vassoura (Nº. 1077)

Na maior parte, os desenhos e artefatos lúdicos representam miniaturas de objetos culturais de comprovada importância social. A designação de miniaturas não assume a feição terminológica de reprodução fiel e passiva das formas ‘normais’ dos utensílios, mas da capacidade de ilustração e/ou apreensão de objetos elaborados em total respeito às especificidades infantis e para uso privilegiado por este grupo geracional. As miniaturas possibilitam a compreensão, ainda que parcial, dos materiais utilizados para a socialização e caracterização dos elementos que constituem os traços identitários da infância nativa.

É importante registrar que a expressão nativa “brincadeira” esbarra numa querela de definições, como quer Dumazedier (1979), ou numa festa de conceitos (Vianna, 1997). Nas sociedades ocidentais, brincadeira não é uma categoria rígida, tampouco é uma categoria definida de comportamento6. Ao usar a expressão, pode-se referir tanto à brincadeira em si, como ao trabalho profissional que, apesar da contradição, pode ser prazeroso. Prosseguindo, vê-se que ela abrange uma gama enorme de situações, passando, inclusive, por obrigações, como o cumprimento às obrigações familiares (visitar parentes), ir a ofícios religiosos, espaço de sociabilidade onde se encontram os amigos. Brincadeira é o termo usado para indicar interrupções na faina diária, pequenas ou longas, mas faina não indica necessariamente trabalho, pode ser estudo ou, até mesmo, a interrupção da brincadeira.

A ligação conceitual entre brincadeira e lazer, estabelecidos como antônimos do trabalho/labor, é, nas sociedades ocidentais, situação que surgiu no período moderno, com a mudança da função do ócio. Era, na Grécia e na Roma antiga, assim como também na Idade Média, uma condição privilegiada para a realização das ações políticas e militares, sentido deslocado, com a ascensão do modelo socioeconômico do capitalismo e a difusão das indústrias, para a ideia de trabalho, entendido como ação contínua de produção de determinados bens de uso/consumo com valor em si e valor de troca.

No caso das sociedades indígenas, sabe-se que não necessariamente as atividades referentes ao brincar e às brincadeiras se circunscrevem aos momentos de interrupção da rotina, posto que, como não há espaço formal para aprendizado, antes ou depois da chegada dos brancos, a aldeia e o território são espaços de sociabilidade e de educação, com os eventos sociopedagógicos acontecendo, por exemplo, a caminho do roçado, na mata, no rio; enquanto se praticam as atividades rotineiras, pois se aprende fazendo.

1 – Infância é aqui apreendida como noção diferente do conceito de criança. Assim, enquanto infância é a concepção ou representação social de um determinado período inicial da vida, as crianças são os sujeitos inseridos nesta condição (Ferreira, 2008).Infância é aqui apreendida como noção diferente do conceito de criança. Assim, enquanto infância é a concepção ou representação social de um determinado período inicial da vida, as crianças são os sujeitos inseridos nesta condição (Ferreira, 2008).

2 – Recolhidos pelo antropólogo Protásio Frikel, entre 1961 e 1962, junto aos Xikrín do Cateté, cuja entrada na Reserva ocorre em 1965. Sobre o assunto, consultar: Frikel (1968).

3 – Coletado por Eduardo Galvão e Protásio Frikel em 1966.

4 – Os artefatos Suyá foram recolhidos pelos antropólogos Eduardo Galvão e Protásio Frikel na década de 60 do século passado no Parque Nacional do Xingu. São brinquedos que entraram na Reserva Técnica em 1967. Sobre o tema, consultar: Galvão (1996).

5 – Coletados pelos antropólogos Arthur Napoleão Figueiredo e Anaíza Vergolino e Silva, entrados na Reserva Técnica em 1969. Sobre o assunto, conferir: Figueiredo (1983 e 1984).

6 – Na concepção do folclore, brincadeira é entretenimento, acompanhado ou não de melodia ou coreografia. Sobre o assunto, consultar: Câmara Cascudo (2000).

Rita de Cássia Domingues-Lopes ritalopes31@yahoo.com.br

Antropóloga, mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Tocantinópolis.

Assis da Costa Oliveira assisdco@gmail.com

Advogado, mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), professor da Faculdade de Etnodesenvolvimento da UFPA, Campus de Altamira.

Jane Felipe Beltrão janebeltrao@gmail.com

Antropóloga e Historiadora, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e Direito (PPGD) da Universidade Federal do Pará (UFPA).