Foto: Moema Costa

O lúdico em questão: brinquedos e brincadeiras indígenas

Brinquedos e brincadeiras: seriedade que reclama direitos (d)e relativização

A reciprocidade analítica entre crianças e brincadeiras delineia o ato de brincar como direito, ou seja, condição situacional que contribui para o desenvolvimento infantil e obriga os agentes sócio-institucionais a promovê-lo ou assegurá-lo.

O direito à brincadeira (ou ao ato de brincar) está presente, na legislação internacional, desde a promulgação da Declaração Universal dos Direitos das Crianças (DUDC) de 1959, reconhecido para garantir o acesso das crianças aos jogos e às brincadeiras de caráter educativo, com a promoção do exercício ligada à exigência de materialização pela sociedade e autoridades públicas.

Na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988, o direito à brincadeira/ ao ato de brincar ganha ‘status’ de direito fundamental a partir da inserção no artigo 227 da absoluta prioridade de crianças e adolescentes terem assegurados o direito ao lazer, gênero no qual a espécie brincadeira pode ser alojada, ao menos juridicamente. Da mesma forma, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei No. 8.069/90 – ECA) também recepciona, no artigo 15, o ato de brincar e de se divertir como partes constitutivas do direito à liberdade.

Sem dúvida, os conceitos jurídicos contemplam a universalidade dos destinatários em alusão ao princípio da igualdade presente no aspecto político da cidadania. No entanto, fica em suspenso, ou invisível, justamente o aspecto da diversidade dos modos de produção das brincadeiras e dos brinquedos, ou seja, a definição dos contextos particulares de onde emerge a alteridade dos modelos de representação e socialização humana. Logo, o desafio de reconhecer as situações de fato para efetividade dos direitos perpassa, no âmbito das diferenças socioculturais, pela própria capacidade de relativização das normalidades conceituais para a realização do “olhar distanciado” e compreensão das significações nativas que organizam a realidade do “saber sobre a criança” e do “saber da criança” que resultam na construção do “saber tornar-se criança”.

O arcabouço teórico desenvolvido no presente trabalho deixa nítida a orientação da possibilidade de sustentação do direito de relativização às brincadeiras e brinquedos indígenas a partir do questionamento da própria forma como ocorre a construção sociocultural da pessoa e as múltiplas agências que estruturam o corpo. O lúdico indígena se entrelaça com outras dimensões sociocosmológicas nativas e também se modifica, tendo em vista os contatos interétnicos, mas o caráter universal (ou homogeneizado) dos conceitos jurídicos ocidentais e das imagens sociais estereotipadas dos povos indígenas impõe espaços de tensão que se convertem em verdadeiras barreiras para o entendimento do “outro” lúdico em termos de igualdade de condições e de valorização das diferenças, o que reclama aquilo que Warat (2000) denominou de “simbolização democrática”, ou seja, a dinâmica do descentramento dos lugares comuns de significação pela resistência permanente ofertada contra os centros estabelecidos de homogeneização autoritária dos sentidos e instituição de um campo social que busque evidenciar o plural com que se formam as significações.

Mais do que criticar negativamente o etnocentrismo pós-moderno, é preciso compreender as funcionalidades e finalidades que estruturam/legitimam os paradigmas hegemônicos ocidentais, utilizando como ferramenta de leitura os referenciais teórico-metodológicos que situam brincadeiras e brinquedos na perspectiva sociocultural da formação e socialização da pessoa e do corpo. Por outro lado, a consolidação das marcas sociais da diferença entre indígenas e não-indígenas é potencializada pelas ferramentas jurídicas nacionais e internacionais relativas aos direitos coletivos dos povos indígenas, nas quais a autonomia político-cultural e cidadania diferenciada passam a representar a projeção ética da ‘igualdade na diferença’ e ressaltam que as lacunas das normalidades conceituais, sobretudo em relação aos direitos das crianças e dos adolescentes, são possibilidades de inscrição da “simbolização democrática” do ‘ser criança indígena’.

Para tanto, as coleções e os relatos etnográficos recuperam o importante papel de ‘mapeamento geopolítico das diferenças’, disponibilizando o acesso a acervos e interpretações comprometidas com o ponto de vista do “outro” e a resistência aos valores hegemônicos. Sem dúvida, nem todos os relatos etnográficos se pautam nesta perspectiva, haja vista a crítica de Nunes (2002b) à historicidade do lugar epistemológico das crianças indígenas nas pesquisas antropológicas, mas a contribuição da etnologia indígena no encontro com a antropologia do direito seria justamente a de revelar as vidas que existem para além das cegueiras modernas, fazendo deste processo o termômetro da reivindicação pelo respeito à livre-determinação no diálogo (tenso) com os mecanismos de inclusão e participação social.

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Resumo

O trabalho versa sobre brinquedos, ou melhor, utensílios lúdico-infantis, encontrados no acervo etnográfico do Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo, da Universidade Federal do Pará, e também no relato etnográfico sobre as brincadeiras de crianças pertencentes ao povo Xikrín. Os brinquedos são tomados como modos particulares de apropriação de objetos utilizados pelas crianças no quotidiano de cada sociedade, desempenhando muitas vezes uma tripla tarefa: divertir, educar e construir as representações e os modos de socialização das crianças. Por outro lado, o ato de brincar evidencia a liberdade das crianças indígenas no processo de (re)apropriação dos valores culturais, entre os quais, o “saber da criança” mescla-se ao “saber sobre a criança” para construir a noção nativa do “saber tornar-se criança”, condições antropológicas que reclamam a tradução intercultural dos direitos voltados às crianças indígenas.

Palavras-chave: Brinquedos, brincadeiras, crianças indígenas, coleções etnográficas, direitos.

Data de recebimento: 22/07/14
Data de aceitação: 15/10/14

Rita de Cássia Domingues-Lopes ritalopes31@yahoo.com.br

Antropóloga, mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Tocantinópolis.

Assis da Costa Oliveira assisdco@gmail.com

Advogado, mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), professor da Faculdade de Etnodesenvolvimento da UFPA, Campus de Altamira.

Jane Felipe Beltrão janebeltrao@gmail.com

Antropóloga e Historiadora, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e Direito (PPGD) da Universidade Federal do Pará (UFPA).