Considerações Finais
Um grupo de crianças está brincando de massinha. Ao me aproximar, uma delas me chama para me mostrar o que ela está fazendo e rapidamente travamos um diálogo.
─ Olha, tio! Estou cozinhando uma comidinha pra gente comer.
Ela mexe com a massinha até transformá-la em um objeto amassado, como uma massa de pão.
─ Humm, está cheirando muito bem! Posso experimentar? – pergunto.
As crianças olham umas as outras, surpresas, e riem.
─ Pode, mas ela ainda não está pronta. Espera um pouquinho.
Ela mexe a massinha mais um pouco com as mãos, depois ela junta as duas mãos em formato de concha com a massinha no meio:
– Pronto, agora está pronto!
─ Mas como eu vou comer? Com as mãos? – indago. Elas começam a rir.
─ Vou pegar um talher! – diz outra criança.
Em seguida ela volta com uma colher de plástico. – Toma!
Eu seguro a colher de plástico, encosto na massinha e levo próximo à boca.
─ Está maravilhoso!
As crianças riem muito e começam a preparar as bebidas. (Nota de campo, 29/04/2013).
Infelizmente, há um movimento de matriz conservadora que vem ganhando força na sociedade, no sentido de escolarizar a brincadeira e o currículo da Educação Infantil. A atividade imaginativa, livre e criativa da brincadeira seria confinada a determinados tempos e espaços das instituições que recebem crianças. No entanto, não é possível pensar em um currículo de Educação Infantil que não seja atravessado por atividades de brincadeira em todos os momentos.
Essa atividade assume uma forma bastante diversa quando se chega à fase adulta, quando o desempenho de um “personagem” só acontece dentro da nossa imaginação. Essa é uma das tantas especificidades que caracterizam as crianças como grupo social diverso dos adultos, o que abre para a etnografia e para a antropologia a possibilidade de compreendê-las, em sua diversidade e heterogeneidade. As crianças têm maneiras próprias e particulares de compreender o mundo e de se relacionar com ele. São dotadas de culturas particulares, em constante tensão/diálogo com a cultura adulta.
No presente artigo, pretendi apontar algumas ideologias e questionar preconceitos inscritos nas pedagogias para a infância que são praticados, material e discursivamente, nas instituições que acolhem crianças. Trouxe à tona algumas questões e tensões que podem contribuir para a superação da condição de desigualdade e opressão de meninos e meninas nas escolas das infâncias. É preciso abrir caminho para a construção de pedagogias descolonizadoras, nas quais seja possível problematizar discursos sexistas, racistas ou heteronormativos, em sua maioria naturalizados como verdades absolutas e incontestáveis.
Pensamos que os espaços de educação, no futuro, devem ser pautados pelo cuidado, pelo afeto, pelo carinho, independente das questões de gênero. As relações sociais, sobretudo as educacionais, devem buscar com mais profundidade o respeito à diversidade, à liberdade e à igualdade social, à alteridade, problematizando e superando os preconceitos e as múltiplas opressões que ainda nos impedem de ser mais, como nos ensina Freire (2011).
Nesse sentido, defendemos que a escola pode ser um espaço, lugar e território de acolhimento de meninos e meninas, com professoras e professores, e que certos segredos, curiosidades, medos, dúvidas, questões não precisem mais ser escondidos e silenciados. Pelo contrário, que as questões anunciadas por meninos e meninas pequenas e seus professores/as possam ser como possibilidades de conhecimento de si, do outro e do mundo que nos atravessa e desafia a conhecê-lo todos os dias.
Além disso, apesar de suas limitações e lacunas, acredito que o texto possa ajudar a quem deseja fazer pesquisas com crianças e precisa se debruçar de forma introdutória sobre os referenciais teóricos antropológicos. Assim, conseguiremos alcançar resultados mais satisfatórios em direção à compreensão de nossas crianças, que ainda são tão excluídas dos processos decisórios da sociedade.
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Resumo
O trabalho em tela pretende discutir a aproximação entre a Antropologia e a Educação e suas contribuições para o estudo da infância, com base em uma pesquisa realizada a respeito de questões de gênero na Educação Infantil. Apresento uma breve contextualização sobre os métodos etnográficos e sua aplicação para o estudo das culturas escolares e infantis. No caso da pesquisa com crianças, evidencia-se a importância do treinamento do olhar etnográfico para a apreensão da linguagem corporal, das mudanças nas feições, dos sorrisos e silêncios elaborados pelas crianças. Em relação às questões de gênero, a pesquisa evidenciou que as educadoras reforçam os papéis de gênero esperados pela sociedade, por meio da repreensão, da piada e do riso. Dessa forma, deseja-se provocar uma reflexão sobre a Educação Infantil de modo que ela se comprometa com a liberdade e a diversidade acima de tudo.
Palavras-chave: relações de gênero, etnografia com crianças, Educação Infantil, gênero na infância.
Data de recebimento: 04/04/2017
Data de aprovação: 21/05/2017