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Os “estranhos na cidade”: a clínica e a atenção psicossocial num caso de vulnerabilidade social

Considerações finais

O sentimento de estranheza com o qual permanecemos diante desses casos – em especial, dos casos como o de L., que emerge como um caso estranho não apenas para a instituição de cumprimento das medidas socioeducativas, mas também para os próprios adolescentes que lá estão – interroga o que não conseguimos escutar em nós mesmos quando nos encontramos com suas histórias e também com cada um desses sujeitos que os fazem traçar seus circuitos, numa repetição ao longo da adolescência. Aliás, a compulsão à repetição presente em suas histórias, seja com o uso de drogas, seja nos atos infracionais, também trazem consigo uma dimensão do estranho e que Freud afirma ter um “caráter demoníaco” (Idem p. 256), sobre o qual, no trabalho clínico, devemos intervir através de nossa escuta que se refere ao estatuto do inconsciente sem cairmos nas armadilhas de um fazer estético-adaptativo.

Contudo, observamos o lugar comum no qual permanecemos fixados e paralisados numa outra dimensão do estranho, o terror das histórias que contam e que são permeadas de roubos, assassinatos, tráfico de drogas etc. Precisamos inventar com cada um desses sujeitos um outro lugar possível, menos aterrorizante (e sem nos aterrorizarmos), no campo social (no campo do Outro), sem os fixarmos nos significantes que os segregam: delinquentes; usuários de drogas; adolescentes em conflito com a lei etc. Sendo assim, podemos também, a partir desse recorte de caso, identificar as duas possibilidades distinguíveis e apresentadas por Freud em relação ao estranho: uma dimensão que se refere aos complexos infantis, como ele mesmo menciona, e que pode ser trabalhada a partir da experiência de análise, e uma outra dimensão, daquilo que advém do campo da realidade, da realidade desses adolescentes, e que fisgam os profissionais numa espécie de horror, impedindo que trabalhem a partir da escuta clínica.

No caso L., o significante alemão o retira até mesmo do grupo daqueles que são considerados “estranhos” ao meio social em seus caminhos de infração à lei. A psicose de L. o coloca no lugar da exceção institucional e do grupo, o deixa à deriva e faz repetir o seu circuito de violações de direitos. Sobre a psicose, e para finalizar, seguimos as palavras de Freud.

O efeito estranho da epilepsia e da loucura tem a mesma origem. O leigo vê nelas a ação de forças previamente insuspeitas em seus semelhantes, mas ao mesmo tempo está vagamente consciente dessas forças em remotas regiões do seu próprio ser. A Idade Média atribuía, com absoluta coerência, todas essas doenças à influência de demônios e, nisso, a sua psicologia era quase correta. Na verdade, não ficaria supreso em ouvir que a psicanálise, que se preocupa em revelar essas forças ocultas, tornou-se assim estranha para muitas pessoas, por essa mesma razão (Freud 1919, p. 260).

Referências bibliográficas

 

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Resumo

O presente artigo apresenta a formação de dispositivos de segregação que se formam na pólis a partir de saberes operados por profissionais em diferentes instituições que acolhem adolescentes em situação de vulnerabilidade psicossocial, os transformando em atores “estranhos à cidade”. Demonstraremos como um fazer clínico-político pode emergir, a partir da escuta de cada sujeito, como um dispositivo de resistência a esse processo, permitindo que cada sujeito possa se relançar no mundo e nos laços sociais através de outras marcas que não aquelas que lhes são impostas por tais saberes (delinquentes, dependentes químicos, perigosos etc.). Neste processo, ilustraremos com um caso de um sujeito psicótico acompanhado pela Equipe de Referência Infanto-Juvenil para ações de atenção ao uso de Álcool e outras Drogas (ERIJAD).

Palavras-chave: segregação, clínico-político, adolescentes, medidas socioeducativas.

Abstract

This article discusses the constitution of segregational devices developed in the polis through areas of knowledges operated by professionals in several institutions that care for adolescents in situations of psycho-social vulnerability, transforming these adolescents in “strangers to the city”. We will demonstrate how a clinical-political practice can emerge from listening to each of these adolescents, as a resource of resistance against this process, allowing each person to relaunch themselves in the world and in social ties through characterizations other than those imposed my such areas of knowledge (delinquents, chemical substance addicts, dangerous, etc.). We will illustrate this process with the case study of a psychotic subject, cared for by the Child and Adolescent Reference Team for the counsel of Alcohol and Drug abuse (ERIJAD).

Keywords: segregation, clinical-political, adolescents, socio-educational measures.

Data de recebimento: 29/11/2018

Data de aprovação: 13/02/2019

Julio Cesar de Oliveira Nicodemos jconico@yahoo.com.br

Psicólogo formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil. Psicanalista, Mestre em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e aluno do doutorado em Psicanálise (UERJ), Rio de Janeiro, Brasil. Atualmente, é supervisor clínico-institucional na rede de atenção psicossocial de Niterói e professor de Psicologia na Universidade Salgado de Oliveira, Niterói, RJ, Brasil.