Foto: André Larsson

Ou caminha com deus ou dança com o diabo: Igrejas Neopentecostais e o Dispositivo da Sexualidade

Introdução

Neste artigo, discutimos como as igrejas neopentecostais exercem práticas de governo da sexualidade na vida de seus jovens e fiéis. Para isso, partimos de um recorte das trajetórias de dois jovens brancos, do sexo masculino, moradores do bairro Guajuviras (Canoas/RS), frequentadores das igrejas neopentecostais locais e que participaram do Projeto de Proteção de Jovens em Território Vulnerável (PROTEJO/Casa das Juventudes), vinculado ao Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI)1.

O extinto Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) tinha por objetivo reduzir os altos índices de violência e criminalidade nas capitais e cidades de regiões metropolitanas brasileiras (BRASIL. Lei 11.530/07). Ao articular poder público e sociedade civil, este programa desenvolvia ações de inteligência, qualificação das forças policiais e execução de projetos sociais em regiões urbanas identificadas e entendidas como violentas e vulneráveis socialmente2. Nesse formato, o PRONASCI chega a Canoas/RS em 2009, tendo como principal foco de suas ações o bairro Guajuviras, localizado na região nordeste da cidade, possuindo aproximadamente 34 mil habitantes.

A partir do ano de 2010, uma série de projetos sociais passou a compor o cotidiano do bairro, dentre eles, o Núcleo de Justiça Comunitária Guajuviras, Mulheres da Paz, Comunicação Cidadã/Agência da Boa Notícia e o Projeto de Proteção de Jovens em Território Vulnerável (PROTEJO). De acordo com a lei n° 11.530/07, o PROTEJO visava a formar e incluir socialmente jovens e adolescentes expostos à violência doméstica ou urbana, bem como os que se encontravam em situação de rua, naquelas regiões geográficas onde os Territórios de Paz/PRONASCI atuariam.

No Território de Paz Guajuviras, o PROTEJO foi implementado e desenvolvido no espaço que recebeu o nome de Casa das Juventudes. Durante os anos de 2010 e 2011, desenvolveram-se, nesse espaço, atividades de sensibilização e educação para os Direitos Humanos, Inclusão Digital, Música e Teatro. Com uma equipe composta por mais de 30 trabalhadores (técnicos e educadores sociais), a Casa das Juventudes atendeu mais de 400 jovens, com idades entre 15 e 24 anos “(..) egressos do sistema prisional, que estejam em cumprimento de medidas sócio-educativas; em situação de rua, expostos às violências domésticas e/ou urbana” (Canoas, 2009, p. 2).

Através da experiência enquanto educador social em Direitos Humanos, realizando grupos de discussão e acompanhamentos de demandas individuais, foi possível indagar quanto à presença das igrejas neopentecostais na vida de alguns dos jovens participantes do PROTEJO. A partir de suas falas e posicionamentos frente a determinadas situações de trabalho, constatou-se quão intensa era a relação desses jovens com as igrejas neopentecostais estabelecidas naquele bairro.

Desde suas opiniões sobre os temas mais cotidianos até o desenho de seus projetos mais pessoais para o futuro, quando discutidos nos grupos de Direitos Humanos, esses pensamentos apareciam atravessados pela experiência de frequentarem tais igrejas. Os elementos que compõem essa doutrina religiosa, as normas e condutas morais e os ditames em relação à elaboração de gostos, interesses e desejos, participavam em algum nível enquanto organizadores e moduladores das práticas e modos de vida exercidos por esses jovens.

Diante disso, este artigo objetiva dar visibilidade aos modos como as igrejas neopentecostais concentram um olhar mais específico sobre a sexualidade dos jovens. Para tal, tomamos os efeitos da presença das igrejas na vida de dois jovens, brancos, do sexo masculino, moradores do bairro Guajuviras e participantes do PROTEJO/Casa das Juventudes. Com isso, problematizamos a maneira como, em seus percursos, essas instituições orientam as questões relativas ao exercício da sexualidade. Deste modo, apontamos, através da orientação em atividades com esses jovens, como se estabelecia um governo da sexualidade em direção a uma heteronormatividade (Costa; Nardi, 2015).

No caminho do bem: o protagonismo juvenil como prática de governo das políticas públicas e das igrejas neopentecostais

Os grupos de Direitos Humanos no PROTEJO se subdividiam em três espaços: Oficinas Temáticas, Gestão Participativa e Projeto de Vida. O primeiro se caracterizava por ser um espaço de problematizações sobre temas tradicionalmente associados aos Direitos Humanos enquanto um sistema de garantia de direitos. Assim, partindo das histórias e experiências individuais e coletivas, discutia-se juventude, família, gênero e sexualidade, democracia, Estado e sociedade, meio ambiente, violência urbana e doméstica, tráfico de drogas, escola, trabalho e emprego, dentre outros. O segundo espaço se destinava a reuniões semanais de discussão sobre a gestão e organização da Casa das Juventudes, de modo que os jovens também participassem desse processo. O terceiro consistia em um espaço para que os jovens pudessem pensar a respeito de suas trajetórias de vida e projetar perspectivas de futuro.

A partir desses encontros, um pequeno grupo de jovens tomou a iniciativa de criar uma espécie de agremiação juvenil. Após a formação de chapas, levantamento de demandas e propostas para a Casa das Juventudes e da realização de debates com todos os participantes do projeto, um dos jovens foi eleito presidente. Surgia, assim, a Força Jovem do PROTEJO.

Esse movimento de participação dos jovens nos remete à noção de protagonismo juvenil, elemento constitutivo de grande parte das políticas públicas de juventude desde 2005, na medida em que opera como uma estratégia de produção de um sujeito jovem “envolvido por iniciativa própria na busca de solução de problemas e que, em decorrência desse envolvimento, venham a ser formuladas e construídas ações relevantes e significativas no campo social” (Gonzales; Guareschi, 2009, p. 50).

A expressão Força Jovem também apareceu, certa manhã, escrita em um panfleto entregue por uma senhora ao educador, quando este se deslocava para o trabalho. O panfleto com a inscrição Força Jovem Universal, em destaque, tinha por objetivo convidar jovens da cidade a participar desse espaço da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) destinado à juventude. Tal braço da IURD desenvolve diversas ações destinadas ao seu público jovem, desde atividades culturais, shows de música gospel, campeonatos esportivos e gincanas até projetos sociais e cursos em parceria com universidades.

Ainda que seja diferente da Força Jovem formulada pelos jovens do PROTEJO, a Força Jovem Universal também se aproxima da noção de protagonismo juvenil quando associa, aos jovens, características como autoestima, interesse, força de vontade, garra e capacidade, colocando-os como agentes fundamentais das ações e campanhas que realiza.

Da mesma forma, essa ideia de força formulada por algumas teorias enquanto latente e própria da juventude (Coimbra, 2003) também é tomada como possibilidade de resistência frente aos riscos, taras e vícios para os quais o mundo moderno supostamente conduziria nossos jovens, como as drogas, o crime, a bebida, a preguiça e a prática de relações afetivas e sexuais anteriores ao casamento e não heteronormativas. Integrar a Força Jovem, ao mesmo tempo, protegeria e encaminharia a juventude para projetos e modos de vida individuais e coletivos, econômica, política e socialmente bem-sucedidos, seguros e assegurados pelos caminhos de Deus:

O Força Jovem Universal (FJU) existe desde a fundação da Universal e conta com milhões de jovens em todo o Brasil. O objetivo é alcançar a juventude que se encontra perdida nas drogas, nos vícios, na criminalidade ou que sofre com um permanente vazio interior e sem perspectiva de vida. Para isso, como meio de chegar até essas pessoas, o grupo desenvolve diversas atividades culturais, sociais, esportivas e espirituais (Igreja Universal do Reino de Deus, 2015).

Com o próprio lema da Força Jovem Universal, ser jovem é ser visionário, é possível questionar em que medida o discurso que passa a circular por entre os jovens da IURD não visa a empreender escolhas de vida sustentáveis dentro de um determinado modelo e a longo prazo. Se o termo visionário é uma característica atribuída aos jovens, no sentido de que ser jovem é olhar para frente e além, confiante de que o futuro com Deus promete a felicidade e o sucesso, por mais tortuoso que possa ser o caminho – afinal de contas, o futuro a Deus pertence –, as escolhas pregressas e presentes devem ser boas o suficiente e, para isso, feitas de boa fé e desejo verdadeiro.

Assim também fizeram os marinheiros de Jack Kerouac em o Mar é meu irmão, ao abrirem suas Bíblias e rezar na medida em que o navio deixava o porto para trás rumo à distante Groenlândia. E assim também fazem os homens de negócios, para os quais o sucesso de suas empresas e empreitadas depende da sua vontade, esforço e empenho, dos cálculos meticulosos e das boas projeções.

A questão aqui não se trata de determinar se a Força Jovem do PROTEJO recebeu esse nome tendo como inspiração a Força Jovem Universal, quando o que permite realizar tal associação e trazê-la para a discussão é problematizar que tanto o modelo de subjetividade do jovem protagonista quanto aquele do homo oeconomicus não começam nem terminam nas políticas públicas juvenis ou no setor privado e empresarial, mas perpassam e performam todos os domínios, na medida em que remetem a um modo de tomar as coisas do mundo e nele se posicionar desde uma racionalidade neoliberal (Guareschi; Lara; Adegas, 2010).

1 – A discussão do presente artigo emerge a partir da experiência de trabalho de um dos autores, que trabalhou neste projeto como educador social em Direitos Humanos nos anos de 2010-2012.
2 – As regiões alvo das ações do PRONASCI eram denominadas Territórios de Paz.
Rodrigo Kreher guigo.roots@gmail.com

Doutorando e mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Integrante do Núcleo E-polics – Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação.

Neuza Maria de Fátima Guareschi nmguares@gmail.com

Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenadora do Núcleo E-politcs – Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação. Bolsista Produtividade CNPQ nível 1.