Foto: Paul Klee

Pérolas aos poucos: o relato de uma adolescência congelada

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Que inquietante estranheza, quando as mães vacilam, elas que, só elas, ficam entre nós e a redenção (Freud em carta a Fliess).

Eu me interrogo sobre Andréa, hoje ao menos, tanta letrinha e ela me olhando, parece que não lhe interessa – ela quer falar, ela me conduz – parece cansada das minhas traduções. Quer falar das suas gravuras, de seus peixes estranhíssimos, de seu entusiasmo pela primeira exposição. Ficou para trás, ou do lado, num canto dissociado no quarto do pânico ou do segredo? Os grandes furtos, as fugas de casa, as tentativas muito mal explicadas de suicídio.

Tivemos dois períodos de encontro – primeira fase: Andréa deprimida, 17 anos, mora desde os 12 com o pai, no interior de São Paulo, a mãe (separada) a traz de volta para casa após tentativas de suicídio. Eu recebo uma moça alta, se vestindo desleixada, com uma depressão grave, com tricotilomania (mania de arrancar cabelos), continuando com tentativas de suicídio. A mãe provocava um estado de confusão na filha: ora cuidando, ora invadindo com violência: acolhe e simultaneamente acha a filha um estorvo, atrapalhada, ovelha negra, perturbada-perturbadora, desorganiza a casa, encosta, folgada, suja de sangue os sofás (com menstruação), urina atrás dos móveis (em criança); mas ama tanto, e amou desde sempre, e fica louca quando a cria some. E eu odeio essa mãe quando rejeita aos berros com todo seu ódio essa filha-peste.

Quando melhora, passa no vestibular em Artes Plásticas porque quer ir para São Paulo. A contragosto da mãe, que teme sua perdição, vai. Atendo por coincidência em São Paulo. Ela falta muito, cada vez mais arisca, não quer mais, não sente necessidade. Depois de um tempo, a bomba estoura. Viciada em cocaína desde adolescente, namora outro viciado. Diz que não tinha coragem de me falar, avisava-me que tinha um lado ‘trash’ e que eu… Eu me sinto um lixo – penso que falhei “brabo”. “Enquanto Freud explica as coisas, o diabo fica dando os toques” (Raul Seixas).

Dancei na curva.

Segunda fase: tempos depois. Sei que a mãe a recolhe de volta. Esta me liga eventualmente, me dando notícias. Está grávida do moço de São Paulo. Na gravidez e nos primeiros anos, estrutura-se minimamente, volta-se para a filha com a ajuda da mãe. O pai da criança é rejeitado por Andréa no sétimo mês de gravidez, mas continua ligado – é um bom moço, agora trabalha. Andréa, que já começara a desenhar na primeira fase, intensifica seus estudos com um professor da cidade. Torna-se sua aluna preferida. Seu caminho-salvação é a arte. A mãe aluga um ateliê. Pinta. Não pinta o sete. Por enquanto. Pelo menos.

Até que fala que descobriu um professor de “vanguarda” na minha cidade, que é algo além de seu velho professor acadêmico. Vem para cá fazer aulas – é um desafio viajar sozinha, largar um pouco a casa da mãe, quer voltar a fazer análise.

Na primeira sessão vem arrumada. Como uma mocinha. Traz seus trabalhos. Me surpreendo. Quanta produção. Quanta evolução nestes dois anos em que não nos vimos.

Inicia o curso e é um longo percurso entre os seus desenhos “ingênuos”, que são desconstruídos pelos “vanguardistas”, e um difícil caminho, o de sobreviver às críticas, desamparada e paranoica, e encontrar um novo mundo-meio de expressão que é o da gravura. Grava em metal. Deixa as marcas: as figuras assustadoras, medonhas e competentes e magistrais de quem não tinha futuro. No meio de um período de depressão, me ‘apresenta seus peixes graves’ e diz: “meus peixes não são de Ubatuba”. Sou tomada de uma vergonha estranha em relação a uns peixes estilizados da minha sala de espera, como se desrespeitassem seu mundo interno em ruínas e como se sua depressão me fizesse lembrar e cuidar de meus peixes mortos, podres, esquecidos em algum aquário. Fico possuída, abduzida. Sessão seguinte. Digo: você me disse: “Seus peixes não são de Ubatuba”. “É”, me responde sorrindo, matreira: “são de Fernando de Noronha”.

Atônita, entendo sua mãe, odeio-a naquele momento porque guardei por alguns dias, como num freezer fedorento, seus peixes abissais e eu própria me acreditara aquele dia – pelas nossas semelhanças anímicas – um ser abissal. Tive que esperar alguns dias para voltar à superfície e sonhar com o mar de Fernando de Noronha.

Terceira fase: voltando das férias, me conta de seus demônios: muita cocaína, ficante, tra-ficante, ficante “mulher”.

Volta, cuida do jeito que pode da filha, volta a namorar o pai da filha, pensam em morar juntos.

Largada, desleixada, avesso do avesso do avesso. Entretanto, seu jovem e novo professor reconheceu nessa jovem delinquente um talento promissor. Ela monta sua primeira exposição. Corre de um lado para o outro atrás das “coisas da vida comum”, que são difíceis de fazer: patrocínio e organização da exposição. Com as unhas pretas, acima do peso, telefona, faz contato com gravuristas famosos. O demônio rondando na coca, na ameaça de rupturas repentinas, na coisificação do outro. Bem, mas os peixes falam.

Qual o meu papel no cenário deste outro tempo?

Não saberia responder. Fico atenta aos demônios, mas também em não satanizá-los em demasia. Era e é um momento de voltar para o mundo e o pânico continua. Muita coisa ela não diz (verbalmente). Inúmeras vezes diz que viver é demais para ela, não dá conta.

Mas sigamos brevemente Cardoso (2002) em suas considerações sobre os enclaves psicóticos – como o mais estrangeiro, mais encravado, o mais impossível de tradução no psiquismo. Cardoso citando Laplanche: “O que é determinante, último é o demoníaco, o oculto, o inquietante (‘das Unheimliche’), o que é “de outro mundo”, o que vem originalmente do outro, sobre o modo do outro” (p. 36).

Levanto como hipótese que em Andréa, esta coleção mórbida de intraduzíveis foi o resultado do que Laplanche chama de intromissão do outro, distinta da implantação. Enquanto esta última é um processo comum neurótico, normal, a intromissão é violenta e impossibilita a tradução-recalcamento. A dupla Andréa e sua mãe vivem um jogo violento e recíproco (pela delinquência e tentativas de suicídio, Andréa tentou todos esses anos livrar-se daquela sem conseguir ir muito longe).

A gravura acolhe o informe e o autoriza e ela não precisa defender-se, responder ao “comando estrangeiro”. Ali não será julgada. Pode descansar um pouco: buscando transformar o trauma em pertencimento a um mundo que lhe faça sentido.

Não penso que deixe de ser do mar, da água dos pântanos, mas é uma luta para sentir-se menos um “Peixe fora d’água” (título de sua exposição).

1 – O nome Andréa é fictício, dada a necessidade de preservar a identidade da paciente.
Fatima Florido Cesar fatacesar@gmail.com

Psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora no Curso de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP). Autora dos livros "Dos que moram em móvel-mar”, “A elasticidade da técnica psicanalítica” e "Asas presas no sótão: Psicanálise dos casos intratáveis" e de artigos em diversas revistas.