55º CONUNE, 2017
A construção dessa noção de totalidade foi mais um dos frutos de uma pesquisa que foi adquirindo cada vez mais a forma de uma empreitada colaborativa de investigação, reunindo pessoas adultas e jovens, integrantes do Grupo de Estudos sobre a Juventude da UNIFAL-MG. Uma colaboração que se deu não apenas nas tarefas mais corriqueiras – a prática –, mas também no compartilhar das experiências durante as observações e entrevistas.
Essa colaboração se fez presente também na construção de categorias de análise, como a noção de micro-espaço público estudantil. Essa noção nasceu da sugestão de uma estudante de Iniciação Científica, a partir das ideias de Regina Novaes (2012) sobre a complexificação do espaço público. Ela ajudou a entender a dinâmica dos coletivos políticos na universidade pesquisada, mas também nos levou a entender a relação desse micro-espaço com um macro-espaço estudantil mais amplo: o nosso movimento estudantil, que se materializava em momentos como esses, os grandes eventos da UNE, em especial no Congresso da União Nacional dos Estudantes (CONUNE) (Groppo et al., 2019).
Neste artigo, o objetivo principal tem sido compreender a importância das relações entre pessoas adultas e jovens em uma pesquisa de tipo etnográfico. Na pesquisa A dimensão educativa das organizações juvenis, aqui relatada, estudantes de Iniciação Científica e de Mestrado em Educação fizeram observações participantes do cotidiano dos coletivos estudantis naquele micro-espaço público da universidade. Trouxeram seus dados, relatos e diversas experiências reveladoras, a partir de seus pontos de vista específicos, influenciados por sua condição juvenil. Essas experiências foram cotejadas com as do próprio coordenador da pesquisa, professor adulto, trazendo análises potencialmente ainda mais ricas que as do olhar inquiridor solitário relatado acima, sobre o ENUNE.
A consciência sobre a importância das relações intergeracionais foi outro achado da própria pesquisa, quando, durante a reflexão e análise sobre o movimento de ocupação da universidade mineira investigada, nos deparamos com a potência dessas relações. Potência que era política e pedagógica, quando estudantes das escolas de ensino médio públicas deram início às ocupações no Sul de Minas, em outubro de 2016, e instaram estudantes da universidade à solidariedade e à ação. A seguir, docentes e corpo técnico da universidade somaram-se à luta do corpo discente, que ocupara a instituição. Refletimos sobre os processos de autogestão e autoaprendizado durante as ocupações de escolas e da universidade. Mas também, sobre os processos de cogestão da ação coletiva e coaprendizado entre diferentes gerações, tanto nas manifestações de rua, quanto nos “aulões”, em que docentes e militantes experientes compartilhavam seus saberes com discentes (Groppo et al., 2017).
Desse modo, a assunção do caráter colaborativo entre pessoas adultas e jovens desta pesquisa foi a posteriori, um aprendizado do seu coordenador e do Grupo de Estudos sobre a Juventude diante do que os próprios sujeitos da pesquisa já faziam em seu cotidiano. A investigação pelo olhar juvenil trouxe olhares, impressões e experiências distintas daquelas do pesquisador mais velho, além do que, o corpo jovem teve acesso a outros lugares e relações humanas, tanto por sua maior tenacidade quanto por maior empatia com sujeitos igualmente jovens como ele. Essa foi a principal contribuição da combinação de olhares de gerações distintas em uma investigação de tipo etnográfico.
Desse modo, no 55º CONUNE, em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 2017, a pesquisa experimentou concomitantemente duas formas de inserção e interação: a do adulto pesquisador e a da jovem pesquisadora (estudante de Ciências Sociais em Iniciação Científica). Essa observação se deu entre 14 e 18 de junho, acompanhando o grupo de 20 estudantes pertencentes aos três coletivos políticos investigados, que saiu de ônibus da universidade pesquisada para a capital mineira. Apenas duas pessoas que estiveram no ENUNE em 2016 estavam agora também no CONUNE, já indicando a volatilidade desses coletivos.
O adulto e a jovem procuraram ocupar lugares diferentes no ônibus e participar de atividades distintas no CONUNE. Apenas a jovem teve energia suficiente para acompanhar um dos Atos políticos, pernoitar em um dos acampamentos, enfrentar as filas do almoço e se apertar nos ônibus de translado à Plenária no Ginásio Mineirinho. Ainda assim, ela acabou sentindo grande cansaço pela dinâmica alucinante do evento e registrou: “Esse tipo de evento é de matar”. Também, seu ativismo prévio em um cursinho popular próximo a um dos coletivos políticos, que criou amizades e inimizades, facilitou seu acesso a dois dos coletivos, mas dificultou o acesso a um deles.
Se o corpo do pesquisador adulto limitou sua capacidade de circulação e inserção, entretanto, sua bem-sucedida disposição em dialogar com todos os campos do movimento estudantil facilitaram o acesso dele a todos os coletivos. Ao longo do CONUNE, pesquisador e pesquisadora se encontram algumas vezes para compartilhar registros e impressões e fizeram grande uso de mensagens via WhatsApp.
Do ponto de vista metodológico, os registros do adulto pesquisador sobre o CONUNE pouco acrescentam ao que foi dito, acima, sobre o ENUNE. Por isso, se destacam a partir daqui os registros da jovem pesquisadora. Ela conseguira envolvimento muito bom com dois dos coletivos, chegando a fazer parte dos seus grupos de WhatsApp. Um deles, que fazia parte do campo de oposição à “Majoritária”7 da UNE, chegou a convidá-la para ficar no alojamento do coletivo. Esses dois coletivos também foram bastante acolhedores ao adulto pesquisador durante o CONUNE. Militantes do terceiro coletivo, com quem o adulto tinha relações cordiais, ficaram preocupadas com o risco de subexposição de sua organização nesta pesquisa. Elas agendaram com o adulto uma reunião, uma semana depois do CONUNE, para relatarem o ponto de vista delas sobre o Congresso da UNE.
A jovem pesquisadora conseguiu registros muito ricos sobre as dificuldades de estudantes pobres conseguirem recursos para pagar a inscrição e as despesas para o evento8, bem como sobre as tensões entre base e liderança e, ainda, reclamações sobre comportamentos machistas e abusivos de homens militantes. Ela teve a sorte (ou azar) de assistir a uma mesa em que a tensão entre os coletivos estudantis virou pancadaria entre grupos rivais. Revelou mais sensibilidade para com as músicas e palavras de ordem, que parecem tê-la afetado mais do que ao pesquisador adulto, a ponto de relatar: “algumas músicas parece que entram na minha cabeça”. Ela, que era também coordenadora de um cursinho popular, em um dado momento, deixou de lado o papel de pesquisadora e atuou como ativista durante o Ato promovido pela Oposição da UNE.
Como jovem e ativista, sentiu ainda mais frustração diante do que se revelava, nas Plenárias do CONUNE, como a precedência da estratégia política sobre os ideais e a discussão franca de ideias. Ela registrou isso em sua decepção com a monotonia da leitura e debate das teses, em que ninguém prestava atenção: a única preocupação dos coletivos era saber que grupos iriam se aliar com quem, anunciando a composição das chapas para a Plenária final. Também registrou a decepção com o fato de um grande coletivo, que fez sua campanha com o lema de “tomar a UNE”, ter composto uma grande chapa com a “Majoritária”. Desse modo, a jovem pesquisadora solidarizava-se com suas colegas que faziam parte da base desse coletivo, as quais estavam muito frustradas.
Enfim, por ser mulher, era maior o seu medo de transitar em espaços e horários considerados como mais perigosos. Este temor fez a jovem pesquisadora ficar mais atenta a elementos que passaram relativamente despercebidos ao adulto, como a função das bandeiras em indicar onde estava dado coletivo no espaço do Congresso – servindo não apenas como propaganda e agito, mas também como sinalização.
Considerações finais
Há, em potencial, muitos ganhos em investigações sobre a juventude que tragam jovens como parte ativa da equipe de pesquisa, considerando que essa atuação deve estar para além de “tarefas” mais ou menos corriqueiras, ainda que necessárias – parte do que Magnani (2009) trata como a prática da etnografia. Na pesquisa aqui relatada, as e os jovens integrantes do Grupo de Estudos sobre a Juventude foram muito importantes na tomada de decisões sobre a metodologia, como a construção e o teste do roteiro de entrevista, e contribuíram com a elaboração de conceitos-chave para a análise, como a noção de micro-espaço público, que ajudou a entender as relações e disputas entre os coletivos políticos da universidade mineira.
Os resultados foram construídos a partir do debate e livre discussão dos dados – especialmente, registros de observações e transcrições das entrevistas –, respeitando os pontos de vista de todos os membros do Grupo de Estudos sobre a Juventude, fossem estudantes do Ensino Médio, da graduação ou do Mestrado em Educação, não por condescendência, mas por se acreditar que cada olhar, a partir de sua posição peculiar nos ciclos de vida, traz contribuições únicas (Moll, 2013). O pesquisador adulto, coordenador da pesquisa, exerceu muitas vezes a função de sistematizar esses resultados e discussões, redigindo a versão inicial da maioria dos trabalhos oriundos da investigação. Essa versão, que era construída com base nos relatórios, diários de campo e registros das análises dos dados durante as reuniões, retornava ao grupo para nova análise e discussão, com a reescrita do texto para sua versão final.
Ao buscar reviver a pedagogia das ocupações, em especial aquelas relações de coaprendizado entre gerações, esta pesquisa espera ser um exemplo relevante para as metodologias investigativas que reconhecem papel ativo para os sujeitos jovens pesquisadores, em todas as fases da investigação, do planejamento à redação de artigos e relatórios. Neste artigo, em particular, flagramos como a observação participante permitiu, em um primeiro momento, no 5º ENUNE, que o adulto branco pesquisador construísse experiências reveladoras sobre a condição juvenil, convivendo com as agruras e as alegrias de pessoas tão diferentes dele, jovens e negras. Já no 55º CONUNE, o que houve foi uma observação participante com dois diferentes tipos de engajamento e dois olhares distintos: o mesmo adulto, ao lado da jovem pesquisadora, vivendo experiências por vezes confluentes, em geral diferentes, ainda que capazes de se cotejar.
Do ponto de vista dos resultados da pesquisa A dimensão educativa das organizações juvenis, estes eventos da UNE não foram os acontecimentos mais profícuos no que se refere aos resultados da pesquisa. As principais contribuições da observação desses eventos foram indiretas, ainda que muito relevantes. Primeiro, foram fundamentais para conhecer, in loco, o macro-espaço público do movimento estudantil, que configura a totalidade que também referencia o micro-espaço público dos coletivos estudantis da universidade mineira. Segundo, serviram para aprofundar o contato com os coletivos pesquisados, ganhando ainda mais a confiança de seus integrantes, inclusive, conquistando importantes informantes para nossas investigações.
Na verdade, durante o processo de recrutamento de militantes como informantes, houve grande aproximação com algumas discentes, a ponto de elas virem fazer parte do Grupo de Estudos sobre a Juventude. Duas delas se tornaram pesquisadoras de Iniciação Científica e, posteriormente, mestrandas em Educação, com trabalhos que fizeram parte da pesquisa da qual, inicialmente, elas eram informantes. De um modo análogo ao que Mintz (1984) narra em seu texto-homenagem a Taso, foram elas que escolheram o autor-pesquisador mais do que ele as escolheu. Portanto, para além de informantes privilegiadas, elas também se tornaram parte da equipe de pesquisa.
A pesquisa A dimensão educativa das organizações juvenis teve muitos ganhos com a atuação colaborativa entre pessoas de diferentes gerações, ao combinar seus diferentes olhares e interpretações, frutos de suas distintas maneiras de se relacionar com o tempo e o espaço social (Mannheim, 1982), até mesmo de suas disposições físicas e psíquicas específicas. O registro feito aqui, sobre essa atuação durante o uso da tática da etnografia, visa contribuir com pesquisas e grupos de pesquisa que desejem enveredar por esse mesmo caminho, ou, como aconteceu com o Grupo de Estudos sobre a Juventude, tenham o feliz espanto de se perceber levados por jovens a esse interessante percurso colaborativo.
De um lado, jovens integrantes do Grupo encontraram o interesse pela pesquisa social e se iniciaram nela – estudantes do Ensino Médio e de graduação – ou ainda ingressaram na carreira científica – mestrandas –, com base em valores nem sempre corriqueiros no mundo acadêmico, como liberdade de expressão, iniciativa, criatividade, participação, horizontalidade e solidariedade. De outro, integrantes adultos vêm aprendendo a ouvir jovens não apenas como informantes, mas também como plenos integrantes de uma equipe de pesquisa, conseguindo relatos e registros valiosos sobre lugares e pessoas aos quais corpos adultos dificilmente teriam acesso, assim como insights, interpretações e análises que dificilmente seriam aventadas sem a intervenção de sujeitos cuja relação com o mundo e o tempo social é única – jovens que podem viver a história como devir em aberto e a dinâmica social como oportunidades de transformação.
8 – Deste modo, ajudando a compreender – em um dado contexto local – a tendência mais geral, proposta por P. G. Altbach (Luescher, 2018), de que ativistas estudantis seriam predominantemente pessoas vindas de grupos sociais mais privilegiados econômica e culturalmente. Contudo, a pesquisa sobre a universidade mineira demonstra o esforço do crescente contingente de discentes de origem popular e negra se ver representado no macro-espaço estudantil, com resultados com certa ambiguidade, como registramos em Grroppo et al. (2019).
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Resumo
A partir de pesquisa com coletivos estudantis de uma universidade do interior de Minas Gerais, Brasil, é relatado sobre o uso da observação participante como instrumento de investigação. O artigo faz uma reflexão sobre esse instrumento, que caracterizou a pesquisa como de tipo etnográfico, destacando a capacidade de a observação participante criar uma relevante relação dialógica entre os sujeitos da pesquisa. Relata-se a observação de eventos da UNE (União Nacional dos Estudantes), em 2016 e 2017. No ENUNE, se estabeleceu uma importante relação dialógica entre o adulto pesquisador e jovens pesquisadas e pesquisados. No CONUNE, para além de uma pesquisa com jovens, a observação participante combinou os olhares do adulto pesquisador e da jovem pesquisadora, o que também permitiu o cotejo de diferentes formas de interação com os sujeitos pesquisados em campo. Conclui-se com a defesa da importância de que as equipes de pesquisa tenham espaço para ativa participação de jovens, não apenas como “tarefeiras” e “tarefeiros”, mas também na tomada de decisões sobre a metodologia, na investigação empírica e nas análises, potencializando a qualidade da pesquisa e o impacto de seus resultados.
Palavras-chave: pesquisa de tipo etnográfico, observação participante, movimento estudantil, coletivos juvenis.
Data de recebimento: 15/02/2020
Data de aprovação: 28/06/2020
Abstract
Ethnographic style research with young people: a participant observation with adults and young people about the student movement
Based on research with student groups from a university in the interior of Minas Gerais, Brasil, it is reported on the use of participant observation as an investigation tool. The article reflects on this instrument, which characterized the research as ethnographic style, highlighting the capacity for participant observation to create a relevant dialogical relationship between the research subjects. The observation of events of the UNE (National Student Union), in 2016 and 2017, are reported. In ENUNE, an important dialogic relationship was established between the adult researcher and young people researched. In CONUNE, in addition to research with young people, participant observation combined the views of the adult researcher and the young researcher, which also allowed the comparison of different forms of interaction with the subjects researched in the field. The article is concluded with the defense of the importance that research teams have space for the active participation of young people, not only as “task makers”, but also in making decisions about methodology, in empirical research and analysis, enhancing the quality of the research and the impact of its results.
Keywords: ethnographic style research, participant observation, student movement, youth groups.