Foto: Candido Portinari

Quando e como a proteção da infância é um valor para os adultos.

Pais ‘versus’ professora: quem cuida da criança?

Os adultos envolvidos na pesquisa acreditam que uma intervenção dos pais deve buscar solucionar “os pontos que não estão sendo bons pro desenvolvimento do Wilson”, disse Vitor, integrante do Grupo III, denotando que, na opinião dele, o padrão de desenvolvimento infantil é uma referência importante para o cuidado com a criança. Por isso, o comportamento de Wilson tentou ser contornado por todos os participantes da pesquisa.

Segundo eles, a ação dos pais de buscar proteger a criança decorre de sua capacidade de prever os perigos aos quais seus filhos estão expostos. “Sempre gira em torno da questão de proteção, né? (…) Porque eu acho que os pais têm esse tipo de preocupação. ‘Pra que eu vou deixar meu filho se queimar, se eu sei que fogo queima?’”, argumentou Judite, integrante do Grupo I. Outros participantes também alertaram para o fato de que pais preocupados com os filhos pensam antecipadamente no que pode ocorrer com eles. Desse modo, devem agir sobre o comportamento dos filhos, protegendo-os.

Os grupos dividiram opiniões quando o debate entre os participantes versou sobre o que caberia aos outros adultos do “Caso Wilson”, como a professora. Os Grupos I e III responsabilizaram mais ela e a direção da escola. O Grupo II não.

Considerando os personagens da história, os Grupos I e III exigiram mais responsabilidade das educadoras do que dos pais. A nosso ver, eles tentaram “repassar” ao menos uma parte da responsabilidade dos pais de Wilson para um profissional, no caso a professora. Os Grupos I e III, compostos por pessoas que não trabalham em educação, tentaram responsabilizar mais a professora e delegar para ela o protagonismo do trato com a criança. Por sua vez, o Grupo II, formado por adultas que são professoras, responsabilizou muito mais os pais da criança do que a personagem da professora ou a direção da escola.

Os participantes da pesquisa tentaram “empurrar” mais a responsabilidade para outros adultos que não ocupam, na história, um papel semelhante ao deles na vida real. Esse movimento dos participantes materializou o “jogo de empurra”, tão comum em nossa sociedade.

O Grupo II demonstrou identificação total com Josefa, a professora do “Caso Wilson”. “Eu acho que todo mundo já passou por isso aqui”, disse uma das participantes. Durante o trabalho de campo, este grupo defendeu arduamente Josefa – apesar de, na história, também constar sua postura eticamente duvidosa – e fez menção aos “Wilsons” com que já depararam na escola – meninos “precoces” ou mal comportados. Tais participantes elencaram inúmeros defeitos das famílias atendidas pela escola onde trabalham, mais do que os erros e defeitos da família do personagem Wilson. Seguem algumas falas transcritas: “A mãe tentava até fazer alguma coisa, coitada, mas não conseguia. Também não era uma pessoa, assim, sensata, que se dedica a criar a família não”; “(…) Com essas famílias mal estruturadas, a meu ver é isso. Porque hoje a mãe casa com um, com outro, então o menino não tem referência de pai e às vezes nem de mãe”; disseram algumas integrantes do Grupo II.

Houve certa facilidade de as profissionais julgarem a forma com que crianças são educadas por suas famílias e a maneira como essas famílias se organizam propriamente. A nosso ver, houve também grande culpabilização da família – em especial, da mãe – sobre as experiências “precoces” vivenciadas por crianças de classe popular. O trabalho de campo com esse grupo revelou a necessidade das professoras terem mais espaço para falar sobre as dificuldades do fazer profissional, especialmente sobre a relação com as famílias das crianças – visto o total descrédito demonstrado, o que dificulta a construção de parcerias com tais famílias.

No que tange ao papel da professora, os Grupos I e III, como dito anteriormente, criticaram profundamente a postura dela e da instituição escolar relatadas no caso.

Eu acho também que o menino tirou um pouco a professora da zona de conforto dela. Ela poderia ter tido uma postura de, sei lá, falar ‘não pode ficar falando isso aqui’ e não sei o quê. Realmente podia ter conversado com os pais, mas ela simplesmente falou que o papel era dar aula (…). Ela não pensou muito em nada, ela só pensou nela! (Conceição, integrante do Grupo III).

Essa e outras falas dos participantes avaliaram que a postura da professora foi errada, porque ela se preocupou mais consigo e com seus interesses do que em intervir junto à criança. Eles recriminaram o desejo da professora de querer “se livrar” do aluno. A insatisfação dos Grupos I e III existiu porque esperavam que a personagem, por ser professora, fizesse mais para com Wilson. Demandaram que ela deveria se responsabilizar pelo que estava acontecendo, apesar do problema extrapolar a sala de aula.

Os Grupos I e III foram unânimes em avaliar mal o desempenho da Josefa por ela ter se negado a assumir uma dimensão mais ampla da educação de Wilson. A professora estaria falhando com seu papel de educadora e alguns participantes afirmaram que ela deveria “estar preparada para lidar com todos os assuntos”, como argumentou um integrante do Grupo I. Aqui já começava a ficar subentendido que o julgamento sobre os pais, por parte dos Grupos I e III, não seria o mesmo que o julgamento sobre a professora. A fala transcrita a seguir ilustra bem esse entendimento: “Os pais vão aprendendo e tal, mas, pro professor, pro educador, acho que, se a pessoa escolheu essa profissão, ela tem que tá preparada pra isso”, disse David, integrante do Grupo I, diferenciando as expectativas em torno de profissionais e pais. Estes últimos não foram demandados na mesma intensidade nem nos mesmos termos que a profissional, porque estariam “aprendendo a ser pais”, e então foram facilmente “perdoados” pelos adultos dos dois Grupos mencionados.

Obviamente, o Grupo II, composto por profissionais da educação que trabalham com crianças, produziu posicionamento totalmente diferente sobre a personagem da professora. Na análise do Grupo II, houve tentativa de justificar a postura da personagem, apesar de as participantes reconhecerem que ela agiu errado. O motivo mais forte listado para a negligência da professora foi a sobrecarga de trabalho. “É porque muitas vezes os pais deixam, assim, a dificuldade na mão da escola e querem que a escola resolva, mas a escola não tem condições. Sem os pais, não tem condições, né?”, disse uma das participantes. Segundo elas, as professoras atualmente estão muito sobrecarregadas e por isso não conseguem se ater com demandas “extras”, como elas julgam que foi a de Wilson. Usaram vários exemplos do cotidiano para mostrar que são convocadas a fazer tarefas que não deveriam fazer – se tivessem apoio das famílias dos alunos – e assim justificam a sobrecarga de trabalho.

Não conseguimos fazer nosso trabalho bem feito e ainda nos sentimos, assim, um pouco frustradas, porque poderia ser melhor, mas a sobrecarga é tão grande que a gente não consegue o resultado que a gente almeja. É tanto projeto, é tanta cobrança, avaliação de desempenho em cima da gente (Joana, integrante do Grupo II).

As dificuldades do exercício profissional soaram como justificativas para impedir que elas se envolvessem no caso de Wilson, por exemplo. Com a participação do Grupo II na pesquisa, foi possível refletir sobre quais os custos que os adultos têm para proteger as crianças.

Conclusões

O trabalho de campo realizado com adultos refletiu na pesquisa o “jogo de empurra”, observado comumente em nossa realidade, por adultos que tentam repassar para outrem uma parcela da responsabilidade que têm para com a criança. Desse modo, a pesquisa nos permitiu escutar os discursos e, principalmente, os incômodos dos adultos acerca do exercício do seu papel diante da geração da infância. Apesar de reconhecerem a relevância de a proteção ser provida cotidianamente, os participantes destacaram a dificuldade de fazê-lo. Com isso, eles apontaram as dificuldades dos adultos darem conta da educação, de proverem proteção, gerando em parte dos participantes uma vontade de demandar de outro adulto tal compromisso.

No que tange à ideia de proteção, pelo menos para uma infância próxima da “idealizada”, ela apareceu na relação adulto-criança por meio da regulação adulta sobre a vida das crianças e por meio da instrução fornecida a elas sobre os assuntos e as experiências aos quais elas têm acesso. A proteção, portanto, estaria diluída no cuidado doméstico que adultos têm com crianças. Para essa infância, a noção de proteção compartilhada pelos participantes da pesquisa é da proteção como um valor que pauta a forma como eles pensam que devem se relacionar no cotidiano com essas crianças. Essa posição dos participantes da pesquisa aponta dois relevantes aspectos para se pensar a proteção da infância hoje: 1) para as crianças que correspondem a uma visão “idealizada” da infância, a proteção se concretiza fluidamente por meio do cuidado e da educação, seja no contexto doméstico ou escolar; 2) a proteção provida pelo adulto depende fundamentalmente da relação que há entre eles; portanto, percebe-se a diferenciação dessa noção de proteção da sua definição mais normativa e institucional garantida pelas regulamentações nacional (BRASIL, 1990a) e internacional (BRASIL, 1990b) dos direitos da criança.

Assim, a proteção não foi vista pelos adultos como um conceito pronto e fixo a ser aplicado por eles, mas sim como um valor que vai se adequar às situações específicas envolvendo eles e as crianças; especificamente ao ‘tipo’ de relação que mantêm com as crianças. A pesquisa indicou que os adultos compreendem que seu papel perante as crianças, enquanto membros de uma geração, guarda especificidades da relação parental ou profissional que não dizem respeito a um compromisso geracional propriamente. Assim, o fator geracional aparece circunscrito aos papéis profissionais ou parentais dos adultos, apontando limites do lugar geracional de adultos perante a infância no contemporâneo.

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Resumo

Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa sobre proteção da infância e relações intergeracionais, partindo dos estudos da infância e da abordagem geracional para pensar tal problemática. Considerando especificamente a realidade das crianças que correspondem a um modelo de infância “idealizada”, refletimos sobre a relação adulto-criança e como ela é impactada pela ideia de proteção. Participaram da pesquisa três grupos de adultos, com os quais foram realizadas reuniões inspiradas na metodologia dos grupos operativos, em duas cidades do sudeste do Brasil. A partir do trabalho de campo, foi possível perceber que a proteção não foi vista pelos adultos como um conceito pronto e fixo a ser aplicado, mas sim como um valor que será adequado às situações específicas envolvendo adultos e crianças. O fator geracional aparece circunscrito aos papéis profissionais ou parentais dos adultos; apontando limites do lugar geracional de adultos perante a infância no contemporâneo.

Palavras-chave: infância; proteção da infância; relações intergeracionais.

Data de Recebimento: 28/02/2016

Data de Aceite: 30/04/2016

 

Suzana Santos Libardi suzana.libardi@gmail.com

Psicóloga, Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil.