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“Sinto que renasci”: a inserção de adolescentes em um Programa de Proteção

Resultados e discussão

Esta investigação teve um caráter exploratório e objetivou uma aproximação com uma realidade ainda não estudada, que são os sentidos subjetivos do/as usuários/as sobre o ingresso no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). Ouvir os/as adolescentes significa assumir que eles/as não se resumem ao estado de ser-em-devir, devendo suas trajetórias serem analisadas a partir dos seus próprios discursos, visualizando-as como atores capazes, políticos e sociais (SARMENTO, 2013).

Conforme proposto por González Rey, a construção dos núcleos de significação segue as seguintes etapas: é preciso realizar uma leitura dos dados denominados “flutuantes”, bem como um ordenamento dos materiais utilizados para uma compreensão mais aprofundada do que foi coletado e, a partir dessa etapa, iniciar a fase de elaboração de pré-indicadores (AGUIAR; OZELLA, 2006). Em seguida, foi preciso analisar e elaborar indicadores centrais que foram identificados em cada relato e, assim, atingir os núcleos de significação que contemplem os objetivos da pesquisa. Na Tabela 02, aparecem os pré-indicadores e indicadores que foram identificados nos discursos dos/as participantes e que deram origem ao Núcleo de Significação “Aceito qualquer coisa” – Sentidos subjetivos sobre o ingresso no PPCAAM.

Tabela 02 – Núcleo de Significação: “Aceito qualquer coisa” – Sentidos subjetivos sobre o ingresso no PPCAAM.

Nas entrevistas, foi questionado aos/as adolescentes os impactos que eles/as identificavam ao ingressar no PPCAAM, bem como os sentimentos relacionados a estar nesse Programa. No entanto, identificou-se que essas duas perguntas eram respondidas de forma associada pelos/as usuários/as, sendo citado como impacto a tristeza, angústia, medo, revolta, alívio, desejo de vingança e saudade de onde viviam e de seus respectivos familiares. Os sentidos identificados estão relacionados principalmente à privação, ao medo e ao choque do ingresso no Programa. O surgimento das experiências singulares no Programa foi mesclado com os sentimentos que definem aquilo que são os sentidos dessa experiência. Isso pode ser identificado a partir do relato de Maria:

Foi chocante, sabe, um baque. Só que a gente pensa assim, às vezes me dá uma tristeza […] se não fosse por ele (filho) eu podia tá no lugar onde eu cresci […] eu podia tá lá com meus amigos […] só que…daí eu de repente venho pra um lugar que a comida é diferente, o lugar é diferente, sotaque é diferente […] muda tudo. Não me sinto nem eu mesma, sabe? Só que quando me vem a tristeza assim de pensar em desistir, eu penso não, eu vou ficar aqui, porque aqui eu tô segura, a minha vida tá segura e principalmente a do meu filho. Eu vim pra cá por causa dele, se fosse por mim eu ficava lá […] na entrevista foi um choque quando vi o que eu precisaria fazer para entrar…é um baque, mas era preciso pra nos proteger […].

De acordo com Rosato (2013), pessoas que se encontram em um Programa de Proteção necessitam realizar alterações em todo o seu cotidiano (retirada do convívio familiar e comunitário, inserção em novos espaços de convivência e dificuldade de adaptação às regras). Além disso, a autora pontua que, mesmo sendo algo provisório, é preciso nesse período não só elaborar as mudanças objetivas e subjetivas na própria trajetória de vida, mas também evitar falar sobre suas vivências por questões de segurança, o que pode promover um sofrimento psíquico e uma fragilidade nas representações que os/as protegidos/as elaboram em relação à própria identidade. Em especial, no caso do PPCAAM, que protege crianças e adolescentes, essas mudanças se tornam ainda mais complexas.
Os sentidos elaborados por Maria, mesmo com as dificuldades que foram citadas por ela, permitiram com que ela compreendesse a importância de aceitar ingressar e permanecer no Programa, compartilhando o significado de proteção. Para elucidar o conceito de sentido, González Rey (2007) aponta como hipótese, a partir das contribuições elaboradas por Vygotsky, que o sentido deve ser contemplado para além da linguagem, afirmando que este possui um caráter formativo e deve ser analisado através da sistematização da psique em sua totalidade. A fala é associada em conjunto com diferentes componentes psíquicos que emergem no consciente a partir do uso das palavras, com as emoções e circunstâncias que envolvem o sentido (GONZÁLEZ REY, 2007). Para Glória, Matilde e Pedro, os sentidos atribuídos ao Programa referem-se à possibilidade de sobrevivência, como uma oportunidade de vida ou de recomeço.

Glória: O PPCAAM teve de impacto que… o impacto foi que aquela angústia, aquela coisa, tudo que eu tava sentindo, aquele medo, aquele pesadelo, tudo acabou. No instante que eu vim pra cá, acabou, entendeu? O impacto foi que mudou minha vida demais. Porque eu saí de um lugar tão longe, tô tão longe de casa pra recomeçar a vida, pra tentar de novo […] graças a Deus existe esse programa porque se agora eu não tivesse no PPCAAM eu hoje não estaria conversando contigo […] tu nem me conheceria porque eu estaria morta.

Matilde: Foi assim, um meio de sobreviver. Porque eu acho que se o PPCCAM não tivesse ‘abrido’ as portas pra mim, eu não imaginaria onde eu ‘estivesse’. Então eu creio que Deus tocou no coração de cada um ali pra abrir as portas pra mim, e eles olhar dentro dos meus olhos e ver que eu estava falando a verdade, que eu precisava de ajuda […] e por isso que eu estou aqui hoje.

Pedro foi o único adolescente que não vislumbrou a proteção como algo positivo. Para o adolescente, o “correto” é que ele se vingasse e não que fugisse para outro lugar.

Pedro: […] minha atitude de sair de lá e vim pra cá foi covardia… malandro que é malandro não foge, mata […]. Eu vou matar ele.

Em relação aos sentimentos que surgem ao ingressar no PPCAAM, 12 adolescentes citaram emoções negativas como tristeza, raiva, ódio e medo, associadas ao distanciamento do que era conhecido e das relações de afeto que ali existiam. Também foi evidenciada a dificuldade de sair de suas residências para a entrada em instituições de acolhimento.

Tomás: Tristeza. Tem dia que não tenho vontade nem de levantar da cama.

Glória: O ruim é que não precisava de tudo isso, que se a revolta e o ódio por eu não ter tido infância, e de um abandono eu hoje não estaria aqui. […] Essa é minha revolta. […] nunca roubei uma boca […] se você rouba uma boca você morre na boca. Ninguém é doido de fazer. […] Essa é minha revolta, porque eu tô aqui nesse sofrimento, me escondendo, nesse dia não era nem pra eu tá usando a droga, não precisava disso. Isso me revolta.

Felipa: É uma tristeza porque tem que abandonar a família, tudo, ficar longe das pessoas que você mais gosta […] quando eu vim de lá pra cá, no avião, eu fiquei pensando assim, meu Deus, pra onde é que estão me levando, sei lá… ninguém me disse pra onde eu tava indo […] Depois que chegou no portão do outro abrigo, eu pensei, pronto, tô no presídio […] eu pensei pronto, isso vai dar merda isso, pensei, meu Deus, o que é que vai ser, aí depois foi tudo tranquilo. Aos poucos você aprende a lidar com tantas mudança…

A fala de Felipa pode ser articulada ao que é proposto por Bernardi (2010), ao afirmar que ingressar em um espaço desconhecido é sempre intimidante para uma criança ou adolescente, que muitas vezes não relata suas percepções e receios de imediato. A autora aponta que muitas crianças e adolescentes associam as instituições de acolhimento a prisões e que, somente ao longo do tempo, após se ambientar ao novo espaço, elas permitem a aproximação da equipe técnica e estabelecem vínculos no local de proteção. A sensação de cuidado e segurança é algo que muitas vezes o/a adolescente em situação de vulnerabilidade não possui em sua trajetória. Nesse sentido, o acolhimento da equipe técnica do PPCAAM e os vínculos construídos com os profissionais corroboram para o bem-estar psíquico dos/as usuários e para sua continuidade no programa.

Após o ingresso no PPCAAM, os/as adolescentes identificam os/as profissionais como única referência, como pessoas que conhecem suas histórias e com quem podem compartilhar suas angústias, sendo referido pela maioria dos adolescentes que gostariam de ter contato mais frequente com a equipe. Entretanto, é válido salientar que a equipe do Programa no Estado é bastante reduzida (9 profissionais) e a Bahia é o 4º maior estado do Brasil, com 417 municípios em sua região territorial, o que dificulta pôr em prática estas visitas de forma mais sistemática.

Foi questionado aos/as adolescentes se eles/as identificavam mudanças em si mesmos depois de entrar no PPCAAM. Onze usuários/as citaram mudanças positivas, sendo mencionado desde a mudança na forma de falar, se comportar, até em alterações no caráter:

Maria: Eu acho que antes eu era muito largada assim da vida, só queria curtir, mesmo quando eu tive o X. (filho).

Mafalda: Ah, percebo que eu mudei assim, em relação ao caráter. Que quando a gente tá no meio errado só fica no assunto de tráfico, de droga, eu não podia tá em paz, que vinha algum colega e falava […] bora fumar […].

Tomás: Tipo, antes eu… (pausa longa), não pensava. Hoje eu penso mais, tô mais calmo. Já planejo o que eu vou fazer… tipo, se for pra dar errado, já sei o que vai dar, sacou? Tento fazer o máximo certo possível.

Romeu: a diferença é que eu não uso mais droga né… Acho que isso é bom.

Essas mudanças podem ser associadas a partir da possibilidade de vivenciar experiências fora dos contextos de risco e vulnerabilidade no qual estes/as adolescentes estavam inseridos/as antes da proteção. De acordo com Pereira (2013), é importante que seja proporcionado a adolescentes espaços que promovam o desenvolvimento da sua autonomia, porém, com o estabelecimento de regras e limites definidos por figuras de referência, sem deixar de escutar suas demandas e necessidades.

Através do que foi mencionado pelos/as adolescentes, é possível identificar que, mesmo com as dificuldades vivenciadas durante a proteção, os sentidos elaborados por eles/as em relação ao Programa representam uma segurança que até então desconheciam e uma oportunidade de vivenciar novas perspectivas que não eram possíveis em sua trajetória.

Uma das dificuldades apontadas em relação à permanência são as regras do Programa. Estas incluem seguir as orientações dos profissionais para evitar novas situações de risco, comprometimento em relação ao processo de inserção social no novo local, respeitar as normas de segurança em relação ao uso consciente da Internet, evitando a exposição em veículos de comunicação (telefones, rádio, televisão, Internet etc.), em especial, a publicação de fotos e identificação do local de proteção nas redes sociais, já que isso poderia colocá-los/as em situação de risco. O cumprimento de tais regras aparece como um dificultador para a permanência no Programa de acordo com 14 entrevistados/as, especialmente o acesso à Internet. Um exemplo desta questão pode ser citado a partir da experiência de Felipa, que precisou mudar de pouso por ter adquirido um celular e entrado em contato com o pai sem autorização da equipe:

Felipa: Foi que assim, não podia usar telefone aí eu fui e inventei de arranjar um celular (risos) […] aí descobriram, entraram na minha rede social, no meu face (Facebook) e tudo […] eu tava entrando em contato com meu pai e tudo, aí eles pegou e me transferiu pra cá…

Com isso, foi preciso realizar a transferência para novo local de proteção e repactuação do termo para continuidade no Programa. O relato de Felipa demonstra que, mesmo sendo esclarecido sobre os riscos, o desejo de acessar a rede social e se comunicar com familiares foi mais relevante do que as questões relacionadas à segurança. Além disso, os/as adolescentes comumente apresentam o pensamento mágico de que são imbatíveis e imunes a qualquer risco (FEIJÓ; OLIVEIRA, 2001). Sabe-se que os ambientes digitais possuem uma importante função na socialização e na construção da identidade de adolescentes. Em uma situação de ameaça, o local de proteção pode ser facilmente identificado através de imagens e sistemas de georreferenciamento associados a esses serviços. Em decorrência dessas questões, no momento da entrevista, a equipe técnica sensibiliza o/a adolescente e sua família sobre a importância de cumprir esta regra. Ao longo da trajetória do Programa, as equipes buscam tornar todo o processo o mais sigiloso possível com todas as medidas de segurança indicadas (PPCAAM, 2017).

A partir dessa realidade, tem sido avaliado pela Coordenação Nacional do Programa a possibilidade de acesso de forma segura e responsável da Internet, entretanto, é preciso que os/as protegidos/as tenham a orientação da equipe para garantir a sua segurança, de seus familiares e do local de proteção. Colocar em prática essas estratégias em relação ao uso das tecnologias no PPCAAM é uma tarefa árdua e complexa e requer o estabelecimento de vínculos de confiança entre usuário/a, família e equipe. Estes vínculos devem ser construídos desde o início, através de um acolhimento das demandas do/a adolescente e um diálogo claro sobre a implicação do/a mesmo/a em relação a sua segurança (PPCAAM, 2010).

Também foi possível identificar que três usuários/as foram transferidos de pouso ou estavam na iminência de transferência para outra instituição em decorrência da quebra das regras do Programa. O uso de substâncias psicoativas, de celulares ou a venda de supostas drogas para trocar por roupas e acessórios foram algumas das contravenções citadas pelos/as usuários/as. O Termo de Repactuação torna-se um instrumento fundamental para registrar a oportunidade de continuar no PPCAAM e para fazê-los aprender a tecer novas atitudes e comportamentos em suas trajetórias.

Os/as adolescentes foram questionados sobre sugestões de aprimoramento do Programa e, em geral, suas respostas tinham relação com a alteração das regras. Uma das sugestões refere-se à possibilidade de contato telefônico e/ou presencial com familiares. Alguns/as adolescentes relataram o desejo de ligar para os/as pais/responsáveis com mais frequência. De acordo com o relato de Tomás, os encontros familiares presenciais podem ser mais dispendiosos, entretanto, as ligações poderiam ser realizadas mais vezes:

Tomás: Não mudaria nem tanto a parada da visita, entendeu… tipo encontro familiar… mas sim pela ligação. Ligar pra família duas, três vezes no mês… tem hora que eu fico injuriado… uma vez no mês, cinco minutos. Rapaz… tem hora que não dá pra falar nem um oi direito […].

Maria: […] eu sei que eu falo com a minha avó de vez em quando, todo mês na verdade eu falo com ela […] eu peço pra ela ‘vó, vem pra cá’, porque eu tenho muito medo de que o pai do meu filho faça alguma coisa com ela, de tentar tirar alguma informação da onde eu estou, que queira saber do filho dele, aí eu fico com medo […].

A importância de reestruturar os vínculos familiares no período da proteção é fundamental para provocar mudanças na estrutura da família do/a adolescente e permitir que este/a seja reinserido em seu convívio familiar. Para isso, é preciso ouvir as necessidades dos/as usuários/as, bem como ter contato com os/as responsáveis para assim coletar informações sobre o que é possível ser feito antes do período de desligamento (ROSA et al., 2012). A convivência familiar deve ser um dos principais pontos no desenvolvimento do Plano Individual de Atendimento (PIA), pois é a partir dele que é avaliado novas perspectivas para suas trajetórias.

Seis usuários/as relataram que não mudariam nada em relação ao Programa. Isso pode ser avaliado a partir da compreensão do significado do PPCAAM enquanto um espaço de proteção, e que mesmo que existam algumas renúncias, eles/as não visualizam melhoras, pois estão marcados/as pelo medo da desproteção e sensação de insegurança. Foi identificado no discurso dos/as protegidos/as sentimentos de gratidão por estar vivo/a e receio de sair do Programa e voltar a ter contato com o/a ameaçador/a. Neste sentido, estes/as adolescentes podem não visualizar uma mudança positiva para o Programa em decorrência desses sentimentos.

Foram também mencionadas pelos/as usuários/as algumas das atividades desenvolvidas durante a proteção. Quatro participantes citaram cursos profissionalizantes oferecidos pelo Programa ou pelas instituições onde estavam inseridos/as. O Projeto Adolescente Aprendiz, gerenciado também pela instituição que assume o PPCAAM, tem como objetivo realizar uma formação para adolescentes ingressarem no mundo do trabalho. O projeto garante a aprendizagem teórica para os/as adolescentes colocarem em prática em alguma empresa parceira. Para isso, é preciso que o/a adolescente esteja matriculado/a e frequentando a escola, além de ter um bom rendimento escolar. Entretanto, a maioria dos adolescentes estava em atraso na escola, o que dificulta a entrada no Projeto. Ao ingressar no Programa, é providenciado pela equipe em conjunto com a Porta de Entrada a documentação pessoal e escolar dos/as usuários/as para que estes/as sejam matriculados na escola. Após esse passo, na fase de inserção social, é realizado o acompanhamento escolar de forma sistemática dos/as protegidos/as.

A defasagem idade/série, que se encontra presente para a maioria dos participantes entrevistados (15), reforça as desigualdades sociais vivenciadas por estes/as adolescentes, já que, assim como apontado por Soares et al. (2015), existem fatores internos e externos que afastam crianças e adolescentes da escola, como questões socioeconômicas, necessidade de inserção precoce no marcado de trabalho, falta de interesse na escola, questões familiares (falta de acompanhamento dos responsáveis e nível de escolaridade dos pais), sendo estas algumas das principais causas de evasão e abandono escolar. Para essas situações em relação à defasagem idade/série, existe, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96)3, especificamente no artigo 24, inciso V, a verificação de que o rendimento escolar observará alguns critérios, e para casos de atraso escolar, é indicada uma proposta de aceleração, que possibilita recuperar o tempo de atraso na trajetória escolar dos/as alunos/as. A importância dessa estratégia é fundamental para possibilitar aos usuários do Programa outras perspectivas para além das atividades ilícitas. Isso pode ser evidenciado a partir da fala de Vicente:

Eu não sei ler e escrever, moça, só conheço as letras […]. Eu preciso voltar pra escola, fui matriculado hoje porque tava sem histórico, se quiser mudar de vida, tô com 17 anos, se não o que sobra pra mim é o tráfico, cadeia e caixão […].

A Organização das Nações Unidas afirma que, para alcançar um progresso social, é necessário um desenvolvimento humano resiliente, e um dos fatores considerados relevantes para esse avanço é o aumento das taxas de escolaridade para além do ensino primário. O relatório afirma que existem fatores relacionados à desigualdade econômica e social que impedem a continuidade nos estudos para o ensino médio e superior (ONU, 2014). Para a maioria dos adolescentes que ingressaram no Programa, a situação de vulnerabilidade social não permitiu que a escola fosse uma prioridade em suas trajetórias. De acordo com Marcolan, Frighetto e Santos (2013), é através da instituição escolar que a criança e adolescente também aprende valores fundamentais para suas relações sociais, realizando uma preparação para a vida adulta, e para que possam se tornar cidadãos aptos para a sociedade.

Em relação aos planejamentos após o desligamento do Programa, sete adolescentes mencionaram a continuidade nos estudos, em especial o ensino médio, com uma perspectiva de ingressar na universidade. É necessário destacar que todas as meninas citaram o desejo de terminar os estudos, sendo citadas por algumas as profissões que desejavam seguir:

Maria: […] agora que eu vim pra cá eu vejo que eu preciso ter um futuro, eu não posso só ficar aqui dependendo do abrigo, eu penso em trabalhar ano que vem […] penso em fazer faculdade, terminar meus estudos, tentar o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), pra ser alguém na vida, porque hoje em dia só os estudos… eu acho que o PPCAAM vai me ajudar muito nisso, já me ajudou né, mudando de lugar, me botando aqui que é uma cidade boa até […].

Mafalda: eu sonho é ser delegada ou advogada, eu tenho fé que eu vou estudar, fazer minha faculdade de direito pra ser advogada. Mesmo eu traficando, mesmo eu na rua, eu pensava, eu sou traficante, mas eu vou ser delegada, e eu acho lindo quando eu vejo alguém vestida de policial, boina, metralhadora, acho lindo […]. Se eu não fosse delegada ou advogada, eu queria ser como tia R., trabalhar com o PPCAAM.

Na fala de Mafalda, fica explícita a importância dos técnicos de referência na construção de projetos de vidas para os adolescentes, seja no suporte e incentivo a conclusão dos estudos, seja como modelo possível de profissão a seguir. Para outros/as usuários/as, a perspectiva de desligamento foi associada a outras formas de trabalho, como caminhoneiro, mecânico, empacotador de supermercado, entre outras.

De acordo com Oliveira e Robazzi (2001), a escola muitas vezes é vista como desinteressante para alguns/as adolescentes que não vislumbram a continuidade dos estudos como uma estratégia de ascensão econômica e social. As autoras apontam que, para alterar essa realidade, seria necessário que a educação básica promovesse como parte importante do currículo a formação profissional no contexto da educação. Dessa forma, é crucial que a escola consiga fornecer também elementos para uma formação profissional que promova a esses/as adolescentes uma perspectiva de trabalho para além das necessidades de sobrevivência.

3 – Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
Bianca Orrico Serrão bianca.orrico@gmail.com

Psicóloga, mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade de Coimbra, Portugal. Aluna de doutorado no Centro de Investigação em Estudos da Criança no Instituto de Educação da Universidade do Minho, Braga, Portugal.

Juliana Prates Santana julianapsantana@gmail.com

Psicóloga, Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. Doutora em Estudos da Criança pela Universidade do Minho, Braga, Portugal.

Maria Jorge Santos Almeida Rama Ferro mariajorgef@fpce.uc.pt

Psicóloga, Professora Auxiliar na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Portugal. Mestrado e Doutorado em Psicologia na Universidade de Coimbra, Portugal. Suas linhas de investigação envolvem as áreas de Multiculturalismo, Teoria Crítica e Modelos de Aconselhamento.