Paula Uglione – Na sua experiência como pesquisadora nas escolas brasileiras, de que maneira o espaço físico das escolas é visto como um espaço pedagógico importante?
Giselle Arteiro – Quando fazemos perguntas para as professoras, para as educadoras, percebemos que o espaço ainda é entendido meramente como abrigo. Então o que seria uma sala de aula boa? Para elas seriam aquelas mesmas salas com formatos de 100 anos atrás: lousa, quadro-negro, crianças em fila. Ela vai dizer que uma boa sala de aula é aquela bem espaçosa, bem iluminada, arejada. Ok! Mas isso seria bom para qualquer espaço arquitetônico cumprir a sua função de bem-estar. Um espaço que tenha condições de habitabilidade. O que elas não percebem ainda é o quanto a configuração e as características dos espaços da escola podem ser ainda mais pedagógicos. Por exemplo, o pátio.
A escola não está dando conta de pensar outras funções para o pátio. Como a integração do interior com o exterior pode ser feita? De que maneira esses espaços podem educar também? Não é simplesmente dar o conforto básico para o usuário. Esse espaço não pode ser pedagógico também? As crianças não podem sair e ter aula no pátio? A vegetação que existe no pátio não pode educar também? As formas geométricas da escola não podem educar também? As cores não podem educar? Os arranjos espaciais não podem ser educativos? É necessário pensar todo espaço como um espaço educador. Não vejo que seja culpa das educadoras! Mas também vejo que é importante acontecer um despertar do olhar sobre a qualidade ambiental na escola. Por isso eu comentei que a interlocução entre os saberes é tão importante. Os projetos participativos são muito importantes. Fazer as pessoas falarem. O nosso papel como arquiteto é ser um mediador, conhecer os educadores, as crianças, as atividades e fazer o despertar desse olhar acontecer. É necessário ser intermediário nessas relações e criar espaços melhores.
Paula Uglione – Na sua avaliação, qual a qualidade ambiental das escolas, de modo geral no Brasil?
Giselle Arteiro – É muito ruim, justamente por conta dessa padronização dos ambientes. Vou te dar um exemplo. Recentemente surgiram as creches do Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância). São creches públicas financiadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do governo federal. São cinco modelos de creches que estão sendo implantadas em regiões de todo Brasil. Nós fizemos uma experiência em uma creche de Erechim, Rio Grande do Sul, um lugar bem frio. Essa creche tem o mesmo padrão construtivo da creche construída no Rio de Janeiro: piso frio, as circulações não são cobertas, as crianças quando precisam fazer o percurso da creche sentem frio. Então, a questão do projeto padronizado interfere muito no cotidiano das crianças, nas condições ambientais. Quando eu falo em condições ambientais não estou falando apenas do conforto em si, mas também da caracterização técnica-construtiva, a relação com toda a população. Que lugar é aquele? Que comunidade é aquela que está circundando a escola? Qual é a conversa que existe entre o modelo proposto e a comunidade? Geralmente não existe nenhuma inter-relação. Assim, a população não se apropria do espaço porque muitas vezes o espaço não conversa com eles. Então, essa qualidade ambiental padronizada precisa ser questionada.
Aqui no Rio de Janeiro existe um projeto de climatização das escolas. Em termos de conforto, as coisas acontecem. Mas, enfim, é suficiente? E a luz? Será que o ar condicionado precisará ficar o tempo todo ligado? Às vezes bastaria uma implantação um pouquinho diferente e você teria condições melhores de iluminação, de ventilação cruzada, de insolação. Então, de maneira geral, a qualidade ambiental é bem precária. Sem falar na falta de manutenção desses projetos. Muitas vezes se utilizam materiais mais frágeis, em que a manutenção não é adequada. As coisas vão se deteriorando e o improviso vai ganhando espaço. Frequentemente, acontece a troca de materiais originais por materiais alternativos e não se leva em consideração o fato de que a escola tem uma intensidade de uso muito alta. Isso acaba atrapalhando a durabilidade dos espaços.
Paula Uglione – Quais seriam os efeitos da qualidade ambiental sobre os jovens e crianças?
Giselle Arteiro – Seriam muitos. Ela vai influenciar na atenção, na irritabilidade, em diversos fatores surpreendentes. Até porque muitas vezes uma sala foi dimensionada para 30 alunos e a gente sabe que a demanda é muito maior. Numa sala com 40 alunos, projetada para 30, é claro que a circulação de ar é afetada. Já vi situações inacreditáveis em que a professora não tinha espaço para circular entre as carteiras. Alunos e professores sem espaço para guardar material, sem espaço para armazenamento. Muitas crianças dentro de uma sala de aula com a qualidade acústica defasada.
Muitas vezes as professoras e alguns arquitetos acham que a janela precisa ser alta porque criança não pode olhar o lado de fora. Pensam assim por acreditarem que esse estímulo tiraria sua atenção na aula. Mas é um grande equívoco! Não é o poder ou não olhar para fora que vai manter a criança atenta na sala de aula. Uma boa relação entre interior e exterior promove o aumento da qualidade ambiental. Uma sala de aula em que você tem a possibilidade de abrir as portas e janelas e ampliar o contato com o mundo externo é sensacional. Torna-se sensacional porque fica muito melhor do que uma sala de aula fechada. Nós precisamos desmistificar o modelo da criança fechada dentro da sala de aula. Se a escola é pequena, se não tem espaço suficiente para dar conta daquela demanda de atendimento que ela está pensando em proporcionar, vamos desenclausurar! Por que não há espaço? Por que não usar o pátio? Por que não usar a sala multiuso? Por que não sair da escola? Por que não abrir os portões da escola e fazer esse contato com o exterior? Por que não fazer da cidade um espaço também educativo?
Paula Uglione – Naquele documento em que vocês foram chamados para estabelecer padrões sobre a qualidade ambiental, houve a participação de diversos atores sociais?
Giselle Arteiro – Isso. Nós fomos chamados para fazer uma consultoria na viabilização do documento “Padrões de Infra-Estrutura para Instituições de Educação Infantil e Parâmetros de Qualidade para a Educação Infantil”. A ideia era oferecer padrões de infraestrutura para as escolas de educação infantil do Brasil inteiro. Esse documento era de nível nacional.
Nós fizemos uma primeira versão desse documento, muito focada nos conceitos em que o GAE acreditava. Nesses conceitos entendemos que o espaço é pedagógico, inclusivo, um espaço ecológico. Então, as questões do meio ambiente, da acessibilidade, da inclusão e da própria educação foram levadas em consideração na caracterização desses lugares. O espaço tem que educar! Isso era muito forte para a gente. Esse documento preliminar foi divulgado e foi entregue em secretarias das várias regiões do Brasil. Por isso ele contempla o Brasil todo. Dessa forma, professores, gestores, secretários de educação, todos leram os documentos e opinaram. É claro que nós sabemos que essas informações muitas vezes não chegam a todos os níveis. Mas, enfim, no modelo ideal pensamos que ele chegaria a todas as pessoas. Então esse documento foi discutido e pensado em vários seminários para discutir a educação infantil. Foram feitos seminários regionais em Belém, Belo Horizonte etc. Nós fomos de Norte a Sul, Porto Alegre, São Paulo, Goiânia. No grupo, éramos cinco ou seis e nos dividimos para cumprir essa tarefa. O documento era discutido na parte da manhã e em seguida fazíamos as correções de acordo com o que foi pensado e com as contribuições que foram discutidas em cada grupo de trabalho. Depois disso tudo nós fizemos a versão final.
Assim, o documento foi criado, distribuído e disponibilizado no portal do MEC. Inicialmente, era sobre padrões e depois tornou-se parâmetros. Por isso não tem o caráter de um documento de legislação, é um documento de recomendações e parâmetros. É um trabalho de longo alcance e continua disponível. Agora, nessas discussões a gente percebeu que a grande dificuldade disso tudo era como colocar em prática. Quem vai fiscalizar? Eram muitas questões levantadas nos grupos de trabalho que se direcionavam a esse problema. Principalmente nas escolas situadas mais no interior do Brasil. Se você me perguntar se esse documento foi implementado de uma forma abrangente, não vou saber te responder. Provavelmente, não! Por questões financeiras ou por questões de logística. Quem vai fiscalizar? Quem vai garantir que isso seja implementado?
Mas foi uma experiência riquíssima. Até mesmo em questões de terminologia tivemos que refinar o nosso “arquitetês”, para que tudo se fizesse compreendido e esclarecido. Isso porque muitos não eram da área da arquitetura. O diálogo dos campos do saber foi muito rico.
Paula Uglione – Você considera que os espaços e equipamentos urbanos da cidade podem ser integrados e participantes no cotidiano escolar?
Giselle Arteiro – Meu projeto de pesquisa atual trabalha com o território educativo[2], ficando, assim, muito em cima da proposta do “Mais Educação”. Nessa perspectiva, pensa-se que, a partir do momento que se tem educação integral, é também necessário se pensar que essa escola pode ter uma conversa com a cidade. Abrir a porta da escola para que as crianças possam ter experiência da cidade. Se a escola não está dando conta mais, com seus próprios espaços, de educar as crianças, por que não fazer com que a cidade seja educadora, por meio não só de visitas a lugares que seriam interessantes, como museus e parques, mas também a própria cidade ser educadora. Porque não ter aula numa praça? Qual é o percurso que a criança faz? Porque esse percurso não pode ser interessante para auxiliar na sua aprendizagem? Isso é difícil de fazer porque dá trabalho, depende muito da força de vontade. Da vontade política, vontade dos gestores.
É necessário que exista uma intersetorialidade para que essa relação entre escola e cidade aconteça. Não tem como fazer esse trabalho se não tiver o auxílio de outros setores, além da Secretaria de Educação. Esse trabalho precisa de parcerias para funcionar muito bem e por isso precisa do diálogo entre os diversos setores (esportes, cultura). Como fazer essa intersetorialidade? Pode-se fazer, por exemplo, oficinas em que as crianças divulguem suas experiências para todos os atores e setores da sociedade. Assim se constrói uma via de mão dupla entre a escola e o bairro. É a escola na cidade e a cidade na escola! É necessário que exista esse contato com a cidade para que as crianças possam enriquecer o seu desenvolvimento, a sua formação, entender o seu papel como cidadãos. A proposta exige que se veja a criança não como um cidadão em formação, mas como um cidadão pleno! O cidadão que tem direito de falar. A criança não é uma pessoinha em desenvolvimento que não tem fala. Vamos fazer a criança falar. Qual é o papel dela? Como ela vê a cidade? Como a cidade pode melhorar? Como a criança se apropria dos espaços? Entender os espaços de que ela tem medo, os espaços em que ela não se sente segura.
Um grande passo nessa proposta é reconhecer que existem os “territórios do medo”. Como você trabalha com uma escola que está situada em um lugar de guerra? Esse tipo de intenção funciona bem em cidades menores. Agora, como fazer esse projeto ganhar potencialidade numa cidade como o Rio de Janeiro? Por isso não adianta a escola sozinha tentar dar conta. Ela não pode brigar com aquele contexto, com aquele entorno. A escola precisa ser reconhecida como equipamento social. Nós precisamos tentar entender quais são as lideranças de cada lugar. Quais são os jogos de força em questão. Não adianta só os professores terem vontade, os diretores gostarem da ideia, porque os pais não vão aceitar tirar os filhos da escola. Eles vão dizer: “Deus me livre! Eu coloco meus filhos na escola para eles ficarem protegidos!” Aí a gente fica pensando: será que eles estão protegidos? Aqui no Rio, recentemente, teve uma menina que morreu dentro da escola! Que proteção é essa? A gente pode tomar uma bala perdida em qualquer lugar! Será que a solução seria blindar as escolas, como queria o prefeito? Eu acredito que não é por aí! Nós precisamos pensar que de alguma maneira impõe-se uma questão social forte, e o fato de que a arquitetura sozinha não dá conta. Não é a arquitetura que vai responder a tudo. É um diálogo que precisa envolver todos os atores.
Será que adianta cercar a escola e fazer um muro alto? Isso é muito complicado. Eu já vi situações de escola pública em que nós fazíamos avaliação e encontramos esse estado de coisas. Escola com o muro alto, uma escola toda cercada. Mas basta ficarmos atentos para ver um menino subir no muro e ficar pegando coisas lá de fora. Quando eles querem pegar, quando eles querem fazer alguma coisa, isso vai acontecer! De fato, não adianta o muro alto. O muro acaba sendo simbólico, na verdade. Esse território do medo está em toda parte e não adianta se proteger colocando grades, cadeados e muros altos. Não é assim que a escola vai dar conta de manter a violência fora dela. O que é o equipamento escola dentro do bairro? Os moradores e as lideranças reconhecem esse equipamento com o social? Não adianta a escola se fechar totalmente e dar as costas para comunidade. Ela faz parte daquela comunidade. É necessário que exista conversa da escola com o bairro.
[2] Pesquisa integrada, intitulada “Do espaço escolar ao território educativo: a conversa da escolar de educação integral com a cidade do Rio de Janeiro”. Projeto desenvolvido em parceria com o grupo SEL-RJ, coordenado pela professora Vera Tângari e com o ProLUGAR, coordenado pelo professor Paulo Afonso Reingantz, grupos de pesquisa vinculados ao PROARQ-FAU-UFRJ.