Foto: Sophie Shapiro

A escuta de crianças no sistema de Justiça no Brasil: ações e indagações

Tatiana Fernandes – Estes casos dizem da importância de se pensar os desdobramentos das denúncias e processos jurídicos na vida familiar. Porque o denunciado pode, muitas vezes, pertencer à família da criança.

Leila Torraca – Muitas vezes, o que se observa nestes casos é que a criança ama e odeia o acusado. Ama e odeia ao mesmo tempo, justamente porque é alguém da família. Ela quer que o abuso cesse, mas não quer que a pessoa seja presa nem todos os desdobramentos que o caso trará. Quando a criança fica sabendo das consequências de seu depoimento, que ela foi responsável pela prisão – porque a família mostra isso – ela pode ficar mal. Então, por que essa promessa para a criança, argumentando que nada irá acontecer e que se sentirá melhor após o depoimento se no fim pode não ser assim? É claro que não estamos defendendo ninguém, muito menos negando os abusos. Apenas precisamos tomar cuidado e pensar na banalização das denúncias de abusos em que rapidamente a criança é vista como vítima, e tudo fica dividido entre acusadores e acusado.

Tatiana Fernandes – E como fica o trabalho da equipe interdisciplinar nesses casos da escuta da criança que supostamente sofreu abuso sexual?

Leila Torraca – Existem equipes que fazem o atendimento visando uma avaliação psicológica, enquanto outras optam pelo depoimento especial. São práticas distintas. Mas há casos, em alguns tribunais, no mesmo estado, em que as duas formas são feitas no mesmo processo. Temos que tomar cuidado, porque o termo “avaliação psicológica” é um termo que não pode ser desmembrado. Digo isso porque encontro profissionais que dizem entender a avaliação como uma inquirição. Então fazem algo como uma inquirição no depoimento especial, mas a avaliação psicológica é um instrumento específico que está a serviço do psicólogo, que é um profissional portador de certos conhecimentos e uma determinada ética. Não é uma avaliação simples, é uma avaliação psicológica que muitas vezes se dá no contexto de Justiça, ou que é encaminhada para a Justiça, e que deve seguir os princípios determinados pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), como a resolução que institui o manual de documentos escritos (007/2003) e, certamente, o Código de Ética profissional.

O depoimento especial é um momento na audiência em que o psicólogo se coloca como um intérprete para o juiz. Esse é um momento alheio aos da prática da Psicologia, em condições também alheias. Quando entrevistei psicólogos que trabalhavam com depoimentos especiais, perguntei sobre o referencial teórico utilizado. Muitos diziam que era a psicanálise. Isto me surpreendeu, pois no depoimento especial o que se busca é o conhecimento sobre o acontecido, uma verdade jurídica, enquanto na psicanálise se pensa na verdade do sujeito.

Podemos lembrar, por exemplo, que Freud, em 1906, publicou texto intitulado “A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos”, no qual abordou o cuidado e o perigo do emprego de técnicas da psicanálise no contexto da Justiça. Ele diz que o cliente no consultório, com seu analista, está ali porque quer descobrir algo que lhe está incomodando, é um sujeito que junto com o seu terapeuta faz um trabalho no sentido da descoberta desse incômodo. Já o sujeito que está depondo no Judiciário tem algo oculto, mas oculto apenas dos outros, dos operadores do Direito. O sujeito que está sendo ouvido no Judiciário, muitas vezes, tem consciência de por que está ali, não é algo que esteja no inconsciente, mas pode ser algo que ele esconda do outro. Então, Freud alerta sobre a diferença de utilização de um mesmo referencial teórico para o campo clínico, com determinado enquadre, e para o contexto da Justiça. Porque já nessa época, em 1906, se buscava fazer essa transposição de uma técnica da psicanálise para o âmbito jurídico, tentando obter o testemunho das pessoas. Algo muito similar à tentativa feita nos dias de hoje com o depoimento especial. Chama a atenção o fato de muitos psicólogos dizerem que utilizam a psicanálise nestes trabalhos.

Tatiana Fernandes – Na sua pesquisa, você ouviu outros profissionais envolvidos na equipe interdisciplinar, como assistentes sociais?

Leila Torraca – Sim, ouvimos assistentes sociais, mas a prioridade eram os psicólogos, pois queríamos pensar a partir de nossos referenciais teóricos, éticos, de nossas resoluções. O que nós, na Psicologia, temos como norte para orientar esses trabalhos de avaliação psicológica? Queríamos entender quais ferramentas eram utilizadas e como eram usadas. Alguns profissionais dizem que aquele que avalia não atende, ou que não pode fazer entrevista de devolução por ser uma intervenção. O nosso código de ética dispõe sobre a necessidade de devolução, temos que pensar que esta já é uma intervenção.

Tatiana Fernandes – Muitas vezes percebe-se uma importância maior para o contexto jurídico e menor para quem é atendido.

Leila Torraca – Tempos atrás, diante da discussão após um concurso público na área da Psicologia Jurídica, ficou claro que o cliente de todos que estão trabalhando na Justiça é o jurisdicionado. O cliente do juiz e do psicólogo é o jurisdicionado. O nosso código de ética nos diz que a entrevista de devolução precisa ser feita com nosso cliente, foi dele que extraímos todos os dados. Tudo isso tem que ficar claro para o profissional de Psicologia. Qual o objetivo do trabalho? Para quem vou encaminhar o material resultante da avaliação? O que devo esclarecer?

Tatiana Fernandes – A criança é informada das consequências de seu depoimento? Do porquê de estar ali? Que o depoimento será filmado?

Leila Torraca – Eu tive contato com casos de depoimentos de crianças de três anos, será que elas eram informadas? O que sei é que o procedimento diz que sim, que elas devem ser informadas. Devem saber que a câmera está ali, que serão filmadas. Mas também encontrei profissionais que diziam que muitos detalhes não precisavam ser esclarecidos para a criança. Mas será que as crianças têm ideia da dimensão do que está acontecendo com as filmagens? É uma pergunta difícil porque as filmagens estão banalizadas em nossa sociedade, em todo lugar encontramos placas “sorria, você está sendo filmado”!

Já observei casos de crianças com nove anos que apresentaram resistência ao fato de serem filmadas, e não queriam prestar depoimento. Então, os profissionais insistiam, dizendo que seria melhor o depoimento, que muita coisa no processo dependia disso. Existe uma relação desigual entre as crianças e os profissionais, adultos. A criança se sente pressionada com o argumento de que muitas pessoas estão na sala com o juiz por causa dela, esperando o depoimento. Então, existe uma certa pressão, porque ela sabe das filmagens e que existe uma transmissão, mas não sabe quem são as pessoas que estão lá. Quais são as fantasias que envolvem essa pressão?

Tatiana Fernandes – Qual é o argumento das pessoas que buscam manter essas práticas do depoimento especial?

Leila Torraca – É a proteção da criança. Não é que as pessoas e os profissionais sejam mal-intencionados, de forma alguma. Precisamos refletir sobre o fato de que essas práticas têm como justificativa a defesa dos direitos da criança, mas o que seria essa defesa? A justificativa é de que os depoimentos estão aumentando o número de condenações e que são mais práticos, mais rápidos e eficientes, ou mesmo o fato de que isto também é feito em outros países. Temos que pensar quais são as técnicas utilizadas, quem são os profissionais que realizam estas práticas em outros países. Pois sabemos de países em que o depoimento é feito por policiais preparados para realizar a tomada do depoimento. Então, se é uma inquirição, ela deve ser feita por um outro profissional que não o psicólogo! Temos que analisar isso: quem são os profissionais envolvidos? Quais são os procedimentos?

Sabemos de países em que o depoimento requer uma espera, como ocorre também em alguns estados aqui no Brasil. Enquanto isso, a criança continua residindo na mesma casa que o acusado. Então perguntamos: se é uma política de proteção à criança, como isso acontece? Casos em que há demora de quatro a sete anos para uma conclusão do processo. Há ainda trabalhos publicados que mostram que, em certos países, a criança não pode ser atendida por psicólogos se ainda não prestou o depoimento especial. Isso porque se pensa que um atendimento anterior ao depoimento prejudicaria o trabalho. Pergunta-se, então, qual é a prioridade? A criança?

Tatiana Fernandes – E quais seriam os argumentos dos que contestam os depoimentos especiais?

Leila Torraca – Existe toda uma contra-argumentação deste trabalho, questionando, principalmente, se é atribuição do psicólogo realizar este depoimento e se isto implicaria realmente em proteção da criança. No primeiro item, busca-se verificar o que fugiria da ética profissional, dos instrumentos da Psicologia. Isso porque o manual de elaboração de documentos vai dizer que os instrumentos precisam ser próprios da Psicologia, o que não acontece nesses depoimentos. Essa contra-argumentação vai no sentido de questionar se essa seria uma das atribuições do psicólogo e se seria uma prática de proteção à criança. O que seria esta proteção? Não estaríamos atribuindo uma maioridade jurídica à criança, no sentido de que a palavra dela, prioritariamente, será a prova definitiva dos processos? Qual seria o lugar em que estamos colocando a criança no contexto Judiciário? O de alguém que vai trazer a principal prova que será levada em consideração?

Em nosso levantamento, observamos casos na jurisprudência em que a criança passava por exame médico-legal, havia a prova médica, mas essas provas eram as últimas levadas em consideração, pois mais importante era a palavra da criança. Percebemos então uma certa inversão, pois entendemos que a prova que vinha do Instituto Médico Legal (IML) deveria ser considerada nos termos do processo. Muitas vezes, a prova do IML era a última a ser mencionada.

Essas contra-argumentações caminham nesse sentido. O que seria isso para a criança: seria colocá-la em proteção? Seria considerá-la como sujeito de direitos? Estaríamos, na verdade, valorizando a fala da criança, ou obrigando-a a verbalizar algo? Pois uma coisa é a criança querer falar sobre o assunto, ser ouvida; outra é ela ser pressionada a se pronunciar diante de determinadas expectativas. Além do que, ser ouvida, em termos psicológicos, é totalmente diferente de ela ter que verbalizar sobre situações específicas. Porque quando se escuta em termos psicológicos sua escuta é ampliada, se escuta o silêncio, os gestos, o que não é dito. Não são perguntas diretivas e objetivas sobre a verdade do fato, é bem distinto.

Leila Maria Torraca de Brito torraca@uerj.br
Doutora em Psicologia. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Desenvolve trabalhos e pesquisas sobre Psicologia Jurídica, guarda de filhos, adolescentes em conflito com a lei, adoção, autoridade parental, direitos infanto-juvenis, medidas socioeducativas.
Tatiana Fernandes tatipsijf@hotmail.com
Mestranda em Psicologia no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil, Psicóloga e Especialista/Residência em Saúde Mental. Trabalha na Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos de Magé/Rio de Janeiro, Brasil.