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Adolescência e saúde sexual e reprodutiva no Chile

Simone Peres – Você poderia nos falar um pouco sobre a iniciação sexual e amorosa dos adolescentes no Chile? Podemos falar de um padrão predominante? Eles lançam mão da contracepção de emergência? Neste cenário, o aborto clandestino é buscado pelos adolescentes ou familiares?

Electra González – Estamos observando uma maior liberação dos comportamentos das atitudes sexuais e isso se manifesta especialmente nos adolescentes no Chile e, embora se mantenham as diferenças entre os padrões de comportamento sexual tradicional, também há uma tendência à aproximação entre homens e mulheres nesses novos comportamentos. Isso ocorre especialmente na idade de início da atividade sexual que, em alguns contextos socioculturais, tende a se igualar para homens e mulheres.

Entre os vínculos sexuais ocasionais, destaca-se a “amizade com favores”: um contexto em que as pessoas que mantêm uma amizade se envolvem em uma relação sexual, mas não em uma relação afetiva ou romântica. Ou seja, entende-se que a atividade sexual e o início sexual ocorrem em outros contextos, como o sexo casual com um amigo, desconhecido ou alguém em uma relação ocasional, sobretudo, em ambientes de festa, sob os efeitos do álcool, tanto em homens como em mulheres. Nesses contextos, não é importante a fidelidade, são relacionamentos mais curtos, sem compromisso, sem proteção e, se a gravidez acontecer nesses contextos, as responsabilidades parentais se diluem, aparecendo maiores dificuldades para a criação dos filhos.

Na saúde pública, essa é uma temática preocupante porque a atividade sexual nesses contextos costuma se dar sem proteção, aumentando a probabilidade desses jovens se envolverem com mais parceiros/as sexuais, aumentando assim os riscos de adquirir qualquer tipo de DST.

Simone Peres – As regras morais e simbólicas do relacionamento afetivo-sexual entre adolescentes e jovens se alteraram muito nas últimas décadas. Como essas mudanças têm ocorrido no Chile?

Electra González – Mudanças importantes estão acontecendo neste contexto, embora os mitos do amor romântico, da passividade erótica feminina e do amor como motivo para o início da atividade sexual ainda sigam presentes em uma grande percentagem dos adolescentes. Um novo modelo está emergindo e é o da mulher moderna que integra a sexualidade, que deve ser sexy, ativa, liberal, que pode aproveitar sua sexualidade sem culpas, que não vê como meta da sua vida somente casar e ter família. A eleição de uma carreira é uma meta importante a ser atingida antes de pensar em formar uma família.

Simone Peres – Como você vê, no Chile, o problema de que tanto a responsabilização quanto a decisão acerca dos métodos anticoncepcionais e das consequências da gravidez não prevista recaiam sobre as mulheres?

Electra González – A responsabilidade e determinação acerca da anticoncepção e da decisão sobre a gravidez deveria ser algo dividido no relacionamento.
Mas o peso ainda cai sobre a mulher porque é ela quem sofre diretamente as consequências da gravidez e o homem acaba liberado dessa responsabilidade. Quase a totalidade dos métodos anticoncepcionais é de uso da mulher, pouco esforço tem sido feito para desenvolver tecnologias anticoncepcionais para os homens. Recentemente, têm sido desenvolvidos alguns métodos anticoncepcionais para homens (gel, pílula) que ainda estão em fases de testes. Um meio de comunicação realizou uma enquete na rua com homens e muito poucos admitiram estar dispostos a usar tais métodos no caso de serem aprovados.

Simone Peres – A literatura sobre contracepção também se caracteriza por um enfoque quase exclusivo sobre as mulheres, como se gravidez e contracepção não implicassem também os homens. Como você trabalha esta questão? Como é visto, no Chile, o problema do aborto induzido/clandestino e, em particular, a questão no que tange aos adolescentes e jovens?

Electra González – Tradicionalmente, os serviços de saúde e, em especial, reprodutivos, são voltados para a mulher, no Chile. Até agora, pouco tem-se avançado na incorporação da perspectiva de gênero nos serviços de saúde. A responsabilidade da decisão de uso de métodos anticoncepcionais está mais centrada na mulher e não tem sido incorporada pelo homem. Ela é quem engravida e sofre as consequências. Por conseguinte, ela é quem tem que se cuidar. Esse é um aspecto que estamos tentando mudar, sobretudo nas novas gerações, e que a decisão sobre o uso de métodos anticoncepcionais e a decisão sobre a gravidez, quando acontecem, sejam tomadas por ambos, tanto homens como mulheres.

Em relação ao aborto, essa opção estava totalmente proibida no Chile até o ano passado, mas atualmente está disponível somente diante de três motivos: risco de vida da mãe; inviabilidade fetal e gravidez produto de um estupro. Mas ainda não está implementada nos serviços de saúde. Por conseguinte, a opção que as mulheres tinham era recorrer ao aborto clandestino, as que tinham os meios econômicos podiam recorrer a serviços provados de relativa maior seguridade sanitária, mas as mulheres pobres somente podiam ter acesso a serviços clandestinos privados de péssimas condições sanitárias, o que as expunha a altíssimos riscos para sua saúde e, também, para sua vida. Inclusive, elas estavam expostas a abusos sexuais por parte dos prestadores, aos quais não podiam denunciar. E isso continuará acontecendo com as mulheres que querem acessar a possibilidade de aborto, mas que não cumprem aquelas três condições. As adolescentes têm ainda menos recursos para acessar a esses serviços. E podem estar mais expostas a pessoas inescrupulosas que lhes vendem medicamentos através das redes sociais.

Simone Peres – Como você analisa as repercussões da paternidade e da maternidade ocorrida no período da adolescência para a trajetória biográfica de rapazes e moças? Por aqui, alguns estudos mostram que a aceitação da paternidade ajuda o jovem na consolidação da imagem de homem “maduro”, “responsável”, “adulto”. Para as mulheres, é também um evento importante em suas trajetórias biográficas. E no Chile?

Electra González – Minha longa experiência em atenção e investigação na temática tem me permitido visualizar, pelo menos na população que atendemos, que a paternidade e a maternidade que acontece na adolescência definitivamente produz uma quebra na maioria das trajetórias biográficas de homens e mulheres, embora a maior intensidade dessa quebra seja produzida nas meninas. No entanto, essa quebra não é visualizada claramente pelos adolescentes no início dos acontecimentos, mas a longo prazo. As adolescentes, passados vários anos da experiência da maternidade, me diziam “se eu tivesse podido deixar para depois e não me tornar mãe naquela idade, tinha feito isso, porque sinto que perdi minha juventude, que não aproveitei como devia, embora não esteja arrependida de ser mãe: de fato, amo muito meu filho”.

Simone Peres – Para finalizar, você poderia nos falar sobre o trabalho feito no Centro de Medicina Reproductiva y Desarrollo Integral de la Adolescencia (CEMERA) da Facultad de Medicina de la Universidad de Chile, onde você atua nos últimos anos?

Electra González – Minha experiência de mais de três décadas como Assistente Social na atenção de adolescentes em saúde sexual e reprodutiva no CEMERA tem me permitido, primeiramente, crescer tanto como pessoa quanto como profissional, desenvolver diversas investigações e publicações nessa temática, tem me permitido, além disso, realizar docência com estudantes de graduação e pós-graduação de distintas disciplinas. Para mim, tem sido muito gratificante e, embora eu reconheça não ser pioneira nessa temática, pude contribuir na formação de profissionais de diferentes disciplinas para que eles possam ter uma visão ampla do ponto de vista da perspectiva social, sobre as diversas problemáticas que apresenta a população adolescente na saúde sexual e reprodutiva e, dessa forma, contribuir também na melhora da qualidade de vida dos nossos adolescentes.

Resumo
A gravidez na adolescência tem sido objeto de amplo debate, no Brasil e demais países latino-americanos. Pesquisadores e especialistas em políticas de saúde reprodutiva têm buscado compreender os condicionantes sociais que contribuem para a maternidade precoce. Nesta entrevista, foram abordados aspectos importantes sobre programas de saúde sexual e reprodutiva e educação sexual. De modo delicado, conversaram também sobre a iniciação sexual e amorosa entre adolescentes, sobre liberdade feminina e aborto.

Palavras-chave: saúde sexual e reprodutiva, gravidez na adolescência, programas de educação sexual, políticas públicas de saúde.

Data de recebimento: 15/01/18
Data de aprovação: 26/03/18

Electra González electra.gonzaleza@gmail.com
Assistente Social. Mestre em Pesquisas sobre Populações pela University of Exeter, Inglaterra. Curso Avançado em Aspectos Sociais da Saúde Reprodutiva, Colegio de Mexico. Sub-diretora e professora associada do Centro de Medicina Reproductiva y Desarrollo Integral del Adolescente (CEMERA) da Universidad de Chile.
Simone Peres simoneoperes@gmail.com
Psicóloga e Pedagoga. Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IP-UFRJ) e do Programa de Pós-graduação EICOS-UFRJ, Brasil.