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Infância em contextos de luta por moradia na Argentina e no Brasil

Beatriz Corsino – Vocês falaram desses processos das crianças e dos jovens, sem idealizar ou romantizar a pobreza, nos ajudando a ver outros aprendizados que se dão nas formas de apropriação do espaço, das redes de solidariedade, de outras formas de viver que a gente muitas vezes desconsidera, pois só vê pelo lado da falta, da desvalorização. Na pesquisa que fiz, eu via muitos usos que as crianças e os jovens faziam da favela, como brincar na rua, conhecer os outros vizinhos, os lugares, tem um saber que todo mundo ali compartilha. As crianças estavam muito mais expostas aos problemas, às dificuldades, como ver o esgoto a céu aberto, o lixo, a violência. Mas também tinham outros aprendizados, a construção desse sentimento de pertencimento e do conhecimento da sua realidade. Eu queria que vocês falassem um pouco sobre os aprendizados que se dão na ocupação justamente por elas estarem nessa situação e participarem dos movimentos sociais.

Marcia Gobbi – Embora tenha muito mais precariedade, porque falta instalação em algumas casas, eles passam por um processo muito importante de transformação manifestada na construção das próprias casas que estão deixando de ser de madeira. As crianças estão participando desse processo, elas estão vendo e vivendo tudo isso e têm um conhecimento muito grande do lugar em que estão, conhecem bem o território e as pessoas que moram lá. Elas estão na região central da cidade de São Paulo, onde temos o que se convencionou chamar Cracolândia (termo que merece questionamentos por equivaler à Terra do crack, expressando um pensamento homogeneizante sobre a região e, pior, sobre aqueles que a habitam, fazendo desconhecer a complexidade das relações ali existentes). Nesse lugar, a circulação das crianças das ocupações é regulada por suas famílias. O perigo é iminente, está do lado de fora. O dentro da ocupação é sentido e construído como local de proteção. Num dos dias em que permaneci na Mauá, percebi que recebiam crianças que vinham das ruas da Cracolândia. Eu conversei com Nete, uma das maiores referências femininas na luta por moradia em São Paulo, ela afirmava: “É melhor que eles estejam aqui brincando com as nossas crianças”. Observo que há uma circulação dessas crianças que vêm para brincar, numa relação entre o perigo de fora e a proteção de dentro. O inverso, parece-me, não vai acontecer ou não acontece, pois essa região é vista como perigosa para aquela criançada. Em entrevista com Silmara, outra grandíssima referência na mesma luta, ouvi que, com a criançada menorzinha as saídas se dão com as avós, com as mães, pois tem uma predominância das mulheres nos cuidados para levar para a creche, para levar para a escola, raramente tem um transporte público e são caminhadas em direção às escolas públicas, várias na região.

Observando a permanência dentro das ocupações, a indagação era: e aí, o que é que se faz? Brinca-se bastante nos corredores, havendo uma limitação às falas mais altas e correrias, qual seja, o silêncio. Há placas pelas escadarias, todas pedindo silêncio. Corredores e dentro dos espaços em que moram, muitos com menos de 8 metros quadrados, são preenchidos de brincadeiras. Considerando que temos famílias com cinco crianças e duas adultas, por exemplo, todos dentro desse espaço, que é bastante pequeno, temos manifestações um pouco silenciadas. Há uma diferença bastante grande nesse uso do espaço, nos sentidos dados aos espaços quando elas estão no centro e quando elas estão no Jardim da União, lá no extremo sul. A ocupação Prestes Maia criou uma brinquedoteca, o que evidencia preocupação com a infância e seu direito à brincadeira, segundo meu ponto de vista. Carece de alguns cuidados, mas existe materializada no espaço, o que não é pouco.

Paula Shabel– Na verdade, é impressionante a similitude do relato da Marcia com o que tenho para dizer, fico muito impressionada com a semelhança. Claro que um dos conhecimentos principais que as crianças desenvolvem tem a ver com o conhecimento do lugar e do espaço, das ruas, como andar de ônibus, a que horas sair e a que horas não sair, qual é a loja que fia, e qual a que não é legal, mas o que tem me surpreendido mais dos conhecimentos dos quais vão se apropriando as crianças por fora dos processos de educação formal tem a ver com o conhecimento sobre como funciona o Estado, como funciona o governo, como quando vem a assistente social, tem que fazer silêncio, tem que ir para o quarto e ficar calado, ou tem que sair para que não veja quantas pessoas moram no quarto, ou tem que deixar fora o cachorro porque na realidade não pode ter um cachorro dentro da casa, todos esses aspectos, todas essas coisas que ninguém diz, mas que todos sabemos como deve funcionar.

As crianças sabem o que deve ser feito quando a polícia chega, sabem o que fazer quando chega a assistente social, sabem o que fazer, inclusive, quando chega um referente importante do movimento social e como, quando os adultos estão de mau humor, significa que alguma coisa grave aconteceu, então, nesse dia, fazem mais silêncio e se comportam melhor. Inclusive, para as crianças, nas ocupações, nos corredores, são os espaços onde a informação é compartilhada. Então eu tenho muitas fotos de cartazes que dizem “tal família deve x dinheiro” ou “tal dia tem marcha, esperamos todos em tal lugar”. Então eles vão observando isso e falam “ah, claro, tem marcha, então alguma coisa aconteceu com o governo” e conversam entre eles: “Ei, o que aconteceu com o presidente, ele fez alguma coisa?”, “temos que ir à marcha, bom, vamos” ou “não iremos, melhor ficarmos”.

A verdade é que o conhecimento de como funciona o aparelho governamental que têm as crianças desde muito pequenas, isso tem me surpreendido muito. E por outro lado, o conhecimento de como funciona a organização: do que significa fazer uma reunião, do que significa fazer uma assembleia. Enquanto eu ouvia a Marcia falar, me lembrava de um dia que eu cheguei numa das ocupações e as crianças estavam fazendo um cartaz onde convocavam a uma “reunião de crianças” porque estavam cansadas pois não deixavam elas brincarem em lugar nenhum.

É um pouco o que Marcia dizia sobre o silêncio, se podem gritar ou não podem gritar, não deixavam as crianças brincar em lugar nenhum e, também, seus quartos são muito pequenos e moram seis ou sete pessoas lá dentro, não têm espaço, então eles vão para os corredores, nos corredores fazem muito barulho, quebram coisas, são muito pouco cuidadosos com o espaço e os adultos ficam bravos, gritam com eles, os mandam voltar para os seus quartos, e um dia as crianças se chatearam tanto que fizeram uma “reunião de crianças”, e chamaram os dirigentes da ocupação para que chegassem lá para reclamar por um espaço para brincar para as crianças onde ninguém os perturbasse. E pediram que fosse assinado o caderno que os adultos têm, que é o livro de atas, e eu não sei como as crianças sabiam que nas reuniões havia um livro de atas, porque geralmente eles não vão nas reuniões, mas sabiam perfeitamente como convocar, onde colocar o cartaz, a que horas convocar. Tiveram uma discussão sobre como convocar no sábado, “não, mas no sábado não tem ninguém, melhor convocar na sexta-feira”, e discutiram que horas era melhor convocar para a reunião porque ia ter mais gente, e esse dia passaram pelos quartos para buscar as crianças, e falavam para os adultos: “Você não pode vir, somente as crianças podem vir nessa reunião”. O conhecimento de como se organizar para reclamar por algo que eles consideravam justo para eles é algo que nunca ninguém ensinou formalmente para eles e que, mesmo assim, sabem muito bem.

Beatriz Corsino – Como é que vocês acham que a brincadeira ou o jogo de futebol podem se tornar uma ação política das crianças nesse contexto? Revelam, também, de alguma forma, as diferenças, os conflitos intergeracionais?

Paula Shabel – Sobre os conflitos intergeracionais? São muitos. O tempo todo. Um pouco é o que falávamos antes sobre não romantizar esses espaços e não achar que, porque estão todos juntos, os vínculos são necessariamente amigáveis ou pacíficos, mas também partir de uma análise materialista, entender que quando o espaço é escasso, os conflitos são muitos. Uma das minhas principais considerações é que o espaço é fundamental em todas as etapas da vida, mas que, na infância, adquire uma relevância realmente impressionante. Um pouco, a qualidade dessa etapa da vida tem a ver com as possibilidades de andar pelo espaço e de contar com um espaço. Portanto, a escassez do bem precioso que significa, nas cidades tão populosas como São Paulo ou Buenos Aires, o espaço condiciona muito as formas de vinculação, das crianças entre si e com os adultos.

Os conflitos intergeracionais têm a ver com quais são os usos do espaço: se pode correr, se pode pular, se pode estar sentado fazendo o dever com um colega ou se os adultos vão estar utilizando o espaço para alguma reunião, se pode pedir o espaço para comemorar um aniversário, se as famílias não podem ter silêncio para poder conversar. A verdade é que as relações intergeracionais estão mediadas por esse bem. Acho que, também, para entender os conflitos intergeracionais, temos que ir a uma coisa que Marcia falou antes e que escreveu em um e-mail também, que é o lugar das mulheres nesses espaços: são as mulheres que ordenam um pouco as relações intergeracionais, as que estão lá, na cabeça das criações, e, portanto, habilitam canais de diálogos, e quando as mulheres não estão, realmente é muito mais difícil para os homens, nestes espaços, se aproximar das crianças a partir de um lugar que não seja o da violência.

Os conflitos são permanentes porque a pobreza é conflitiva e, claro, nesse ponto, o eixo da classe e da idade se entrecruzam, como se entrecruzam também com o gênero. Mas, outra vez, voltando talvez à primeira pergunta, mesmo que sejam particulares as formas em que acontecem as relações intergeracionais, não acho que sejam mais positivas nem mais negativas que em outros espaços, porém, diferentes, e que têm conflitos diferentes e também têm momentos de muito encontro. De novo: estar numa manifestação, comemorar que deu certo um aluguel ou que o governo cedeu a propriedade, e o lugar que as crianças têm nessa ocupação, porque as famílias sabem que as crianças fazem parte fundamental dos processos de luta. É uma alegria compartilhada que gera um vínculo muito forte que não sei se podemos entender inteiramente, mas que podemos, sim, dar conta disso.

Marcia Gobbi – Percebi alguns conflitos entre as crianças, ora pelo próprio uso do espaço dentro da ocupação, ora por querer brincar e ter o desejo combatido e invalidado pelo outro. Surge uma discussão, conflito físico, confronto dentro dos próprios espaços no desejo de brincar e de ocupar os espaços, mas não avalio como diferente de outros espaços de convivência entre muitas crianças. Retomando o que a Paula mencionou, observa-se que a presença dessas crianças faz com que determinadas áreas sejam desocupadas para que elas possam ficar e brincar. Outras lutas são implicadas à luta por moradia, extravasando-a. Luta-se pelas doações ou tentativas de compras de brinquedos para as próprias crianças, ou seja, há um condicionamento pela própria presença. Repito o que fora dito quanto à Praia Urbana no Largo do Paissandu. Sons diferentes passam a dominar e a construir o lugar, os brinquedos em desuso têm sua função cumprida, a areia da “Praia” passa a ser revirada e motivo de brincadeiras. Enfim, alterações no espaço e suas transformações a partir das próprias crianças que nos levam a considerar, nesse espaço, especialmente, a presença de diferentes temporalidades. Por exemplo, brincadeira do balanço junto à Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos, do século XIX se não me engano, tem detalhes de outras épocas, a relação própria ao que é possível conceber como cidade, ou urbano. Embora seja pouco usada, as crianças, ao movimentarem-se, forçam a existência desses espaços.

O grande desafio é não romantizar esse espaço, ou a própria infância, pois há sofrimento numa forma de vida de ausência de direitos, mas de fato, a presença delas vai implicar outro uso dos espaços e certa dose de pulsação da vida, que, como venho perseguindo, ou sendo perseguida pela pesquisa, observa-se que isso expressa formas de luta, particulares formas de luta envoltas em brincadeira e reivindicações, ainda que entre as falas, entre pedidos e descobertas. Ainda considerando as observações, nota-se que, ao mesmo tempo que o silêncio que é imposto, em algumas ocupações está implicando também um jeito de corpo que é diferente. Ter que ficar em silêncio traz implicações às relações. Como uso os desenhos como recurso metodológico, observo certas peculiaridades naqueles criados pelas meninas e meninos da Mauá e Prestes Maia. Embora possamos ter crianças numa mesma faixa etária, o fato é que esse corpo ocupante-morador é um corpo silenciado e que, curiosamente, desenha. Um corpo silenciado e que desenha de modo singular. Tenho como hipótese que essa manifestação expressiva ganha espaço, mas também serve como mecanismo disciplinador, lamentavelmente. Há uma lógica nessa relação, em que o silenciamento grita em traços e os faz belamente. Expansão e contenção constantes.

Paula Nurit Shabel paulashabel@gmail.com
Doutora em Ciências Antropológicas pela Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina, onde também é docente. Suas pesquisas tratam o tema da infância e organizações sociais, bem como a construção do conhecimento social por parte das crianças. Trabalha no Consejo Nacional de Investigaciones Científicas (CONICET), Argentina.
Marcia Aparecida Gobbi mgobbi@usp.br
Cientista Social, Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Mestre e Doutora em Educação (área de Ciências Sociais e Educação), pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil. Investiga e orienta pesquisas relacionadas à infância, em especial na produção de imagens em contextos urbanos e escolares, e ensino de Ciências Sociais.
Beatriz Corsino Pérez biacorsino@gmail.com
Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF)/ Campos dos Goytacazes, Brasil. Investiga e orienta pesquisas sobre infância e juventude, em especial sobre os temas: participação, política, suas relações com a cidade e o campo, educação e psicologia escolar. Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC/UFRJ) e do Núcleo de Pesquisa Infâncias, Juventudes e Políticas Públicas (NIJUP/UFF).