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Infância em contextos de luta por moradia na Argentina e no Brasil

Beatriz Corsino – Mas elas respeitam, então, o silêncio? Elas não rompem com ele? Porque poderia haver um “faz silêncio! Cala a boca!” e as crianças continuassem aos berros e estarem nem aí. Uma obediência a essa autoridade.

Marcia Gobbi – Nós, eu e o grupo de estudantes em seus diferentes níveis de pesquisas que compõem o grupo de pesquisa coordenado por mim, inventamos uma brincadeira, que era uma caça ao tesouro em todos os andares, isso foi na Mauá. E aí, nós éramos usados para que o barulho acontecesse. Ao passar pelos corredores, percebia-se uma orientação: “Aqui é para ficar mais quieto”. Para fazer silêncio, então eles mesmos falavam: “A gente não pode correr tanto aqui, sabia?” Mas aí eles olhavam para a gente e corriam, quer dizer, tinham uma autorização implícita, ou se apoiavam em nós. As crianças diziam que lá havia uma bruxa que faz com que as pessoas e crianças fiquem quietas. Daí, uma figura feminina e importante liderança explicou: “Sou eu a bruxa. Eu já sei que eu sou a bruxa. Perguntei: e por quê? “Porque eu determino quem entra, quem sai, quais horários, com quem. Portanto, eu já sei que sou eu e fico tranquila de ser a bruxa”. Mas o fato é que existe um regulador no uso desse espaço, que é uma mulher da ocupação recriada em forma de bruxa. Vida em constantes subversões, aceitações e negociações.

Beatriz Corsino – Interessante. E como vocês entendem a ação das crianças dentro do movimento? Elas são escutadas, elas têm algum lugar, ou tem essa visão “ah, não, criança é para brincar”? Como é que vocês entendem isso?

Paula Shabel – Nas organizações de Buenos Aires, há uma tradição muito grande de participação de crianças, que um pouco aconteceu no Brasil com o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Aqui em Buenos Aires, foi muito forte o Movimiento Nacional Chicos del Pueblo, que foi uma organização muito grande que promovia a participação infantil em todos os espaços de luta. Porém, nas ocupações onde eu trabalho, a tradição não vem desse lado, não há um reconhecimento que talvez haja em outras organizações, em abrigos e refeitórios populares, mas não nas ocupações. A sensação é que não há uma reflexão muito grande sobre o lugar que ocupam as crianças, porque é tão cotidiana a luta, é tão parte da vida, que não há uma reflexão sobre que lugar ocupam os homens, as mulheres, as crianças. Talvez seja tão difícil como perguntarmos o que acontece em nossas casas, com nossos filhos, com nossos companheiros.

A verdade é que é muito difícil que as crianças sejam escutadas pelos adultos, de fato, já contei para vocês isso de que as crianças tiveram que fazer uma assembleia, uma reunião para apresentar suas reclamações. De modo geral, a própria cotidianidade não lhes outorga um espaço de protagonismo, o que não significa que não se reconheça a importância que as crianças têm, por exemplo, na vida econômica: todas as famílias das ocupações contam com os irmãos mais velhos para fazer as compras, cozinhar, cuidar dos menores e, nesse sentido, há, sim, um reconhecimento muito forte do lugar que as crianças ocupam na atividade produtiva das ocupações.

Com relação à atividade política, o movimento feminista foi muito claro nisso: no momento em que as mães começaram a ir às manifestações com seus filhos e filhas, as infâncias passaram a ser parte da atividade politica cotidiana. A inclusão de crianças no movimento é a consequência de uma necessidade e não de uma reflexão política de “bom, vamos incluir as crianças na política? Vamos perguntar para eles o que pensam?” Foi algo que aconteceu. Acho que só agora estão dando alguns espaços para que as crianças possam opinar, um pouco a partir das perguntas do movimento feminista, pelo menos na Argentina, está nos obrigando todos a fazê-lo. O que aconteceu com a lei do aborto atravessou as vidas dessas organizações sociais, e, neste sentido, as crianças, sobretudo os adolescentes, foram protagonistas desse processo. Mas também não é produto de uma reflexão, senão de que a sociedade foi nesta direção, então agora há mais escuta em direção às infâncias e, sobretudo, às adolescências. Mas o Movimento não tem canais de diálogo específicos com as crianças, e também não sei se há um interesse por parte das crianças em participar dos processos políticos, como ir a uma assembleia ou ir a uma reunião.

Acho que o desafio é pensar que forma de participação política convocaria as crianças, mais do que querer somá-los ao que já estão fazendo os adultos e as adultas. Acho que o desafio das organizações é esse, porque também não se pode levar uma criança de dez anos a uma reunião que dura cinco horas, ela vai se entediar, vai querer ir para casa. Então acho que o desafio é esse: nos perguntarmos que formas específicas de participação de crianças podem existir nesses espaços que também não atente contra essa particular etapa da vida que estão vivendo, porque se para a gente é um tédio estar numa reunião cinco horas, no caso das crianças é impossível.

Beatriz Corsino – E quando as crianças fizeram essa reunião para reivindicar os espaços para brincar, os adultos receberam bem essa negociação?

Paula Shabel – Na verdade, as crianças começam a ir às reuniões quando têm um interesse. Não há uma idade no Movimento, então alguns deles, já aos quatorze ou quinze anos, começam a participar, mas no formato dos adultos. Já alguns que têm vinte não vão e não irão nunca porque não lhes interessa. Não há uma idade, tem a ver com o interesse que tiver cada criança de se unir à atividade dos adultos. Não há um convite formal por parte do Movimento, mas quando as crianças decidem participar também não há uma proibição por idade.

Marcia Gobbi – Quanto à participação, o que tenho visto é um discurso bastante frequente, por parte das mulheres, de falar sobre o direito de fala das crianças. Elas argumentam que quando as crianças vêm às reuniões, às assembleias, e elas têm direito a participar, o que elas falam é ouvido. Mas isso é uma fala das mães, avós e representantes das ocupações. Não presenciei ou fui informada da existência de um grupo infantil organizado à parte aos adultos e adultas. Elas estão acompanhando e falando, ao mesmo tempo, em algumas situações e assuntos.

Há uma participação, uma vez que elas vão dizer o que elas querem, então podem estar presentes nas assembleias. Os bebês estão nas assembleias. Há uma forma cooperativa de cuidados dos bebês e das crianças, portanto, elas estão em grupos nas assembleias, nas grandes discussões, no momento de festa quando se dá a ocupação, as crianças estão lá, de corpo inteiro, e não são caladas. Algo sobre o que pensar, e muito.

Beatriz Corsino – Vocês falaram desse modo de vida mais coletivizado das crianças, e das famílias também, dessa rede de apoio. Queria que vocês falassem um pouco como é que se dá essa forma mais coletiva de viver das crianças.

Marcia Gobbi – Na União, no extremo sul, o próprio espaço garante essa forma mais coletiva no modo de viver. Então, é como se as crianças fossem de todo mundo, porque muitas pessoas conhecem muitas crianças e frequentam umas às outras, dormem nas casas e ficam nas casas. Enfim, referem-se às diferentes pessoas, todas elas mulheres, como aquelas que “olha, eu vou passar um dia na casa de tal pessoa. Eu vou na casa de tal pessoa.” Sobre as mães, respondem: “Ué, minha mãe tá não sei aonde. E eu tô aqui brincando”. E comem doces e os oferecem, muitos salgadinhos, muitos, o que reforça em mim certa preocupação quanto à alimentação. Enfim, contém essa forma cooperativa mesmo, de cuidados das crianças. Na União, se dá da mesma maneira. Parece-me haver um cuidado mais coletivizado entre algumas famílias vizinhas, mais próximas. Observei essa relação ao propor que fizessem desenhos. Ao indagar sobre o processo de elaboração de um dos desenhos que chamou-me muito a atenção, recebi como resposta que havia ali a “mãe do David”. Disse-me um dos meninos: “Ah, é a mãe do Davi que vai e ensina a gente a desenhar”. Mas a mãe do Davi é sua tia? “Não! É que todos nós ficamos juntos com a mãe do Davi e ela ensina todo mundo a desenhar”.

Considerei então a presença de outro modo de estar junto, de ocupar esse espaço e de ter essas referências – nesse caso, uma mulher que acolhia outras crianças, e desenhando –, que são referências para as diferentes crianças. Estar bem próximo é bastante constante. Na Paissandu, por exemplo, você tem algumas mulheres que vão cuidar das crianças com a alimentação, na hora de tomar banho (que a gente não sabe exatamente onde era, mas existia uma orientação para isso acontecer). Todas elas recebiam chamadas e ficavam com uma, duas, três, e frequentavam as barracas e estavam ali, meio que todo mundo junto. As crianças estão bem misturadas ali com todas elas tendo algumas referências adultas.

Paula Shabel – Na verdade, todas as referências que Marcia dá sobre as criações coletivas e a socialização do cuidado, sobretudo das mulheres com as crianças, também acontecem em Buenos Aires. Talvez, o que mais tem chamado minha atenção é que, na ocupação, como é o mesmo prédio, não somente o mesmo bairro, mas é a mesma estrutura que se compartilha, há uma noção muito clara de que é entre todos que se paga a luz, é entre todos que se pagam os serviços, é entre todos que se paga ou que se negocia com o Estado. A noção de comunidade excede a circulação das crianças, é uma comunidade muito construída a partir do material: se não estivermos todos juntos pagando o aluguel, se não estivermos todos juntos pagando os serviços, se não estivermos todos juntos no dia da reunião, vamos ser expulsos. E isso acontece todos os meses.

Uma coisa que acontece e que chamou muito minha atenção foi quando pedi para as crianças que desenhassem sua casa. E, no desenho da casa, os mais pequenos desenham o interior do seu quarto. Mas, a partir dos oito ou nove anos, desenham o prédio completo. A noção de casa é o coletivo da organização social que mora lá dentro.

Então, temos que seguir indagando, acho, a ideia de viver em comunidade. A comunalidade que se produz entre as crianças chega até um lugar que ainda me parece difícil de conceitualizar, mas que significa “a vida é juntos”, “a vida é nesse prédio porque nossa casa é a casa de todos”, porque o espaço material assim o condiciona também.

Beatriz Corsino – E essa experiência contrasta tanto com a experiência de uma infância mais burguesa, de uma criança de classe média, que está cada vez mais enclausurada na sua casa, no seu computador, no seu celular. E muito sozinha também. Um sofrimento por causa do isolamento.

Paula Shabel – Há uma coisa muito interessante também, para não romantizar o coletivo, é que, às vezes, o celular ou o computador é o único momento que as crianças têm de intimidade, também o valorizam muito como o único momento do dia em que estão sozinhas. Como o espaço é tão escasso, e estão o tempo todo entre todos, a possibilidade de ter uma conversa por Facebook ou no computador é o único momento solitário, que é totalmente o contrário de uma infância burguesa. Fico pensando no conceito de propriedade coletiva. Nós três chegamos a compreender o conceito de propriedade coletiva sendo adultas, e essas crianças, já aos dez ou onze anos, podem explicar, ou pelo menos experienciar e viver, o que significa a propriedade coletiva. Admite uma possibilidade real o compartilhar, dividir a vida, de alguma maneira.

Marcia Gobbi – Na ocupação da Prestes Maia, a área é muito grande e tem andares somente com imigrantes e refugiados. Tem alguns andares com bolivianos, por exemplo. Então, isso que a gente está comentando que eles andam juntos, estão brincando juntos, mas aí tem uma questão: os china, como são conhecidos os bolivianos, não brincam tão juntos. As mães, muitas vezes – em especial das crianças bolivianas –, têm certas ressalvas em consideração a brincar com as crianças brasileiras, que elas consideram bagunceiras. É possível criar pequenos grupos dentro de um grupo maior, são os paraguaios, os bolivianos e as crianças brasileiras. Isso foi abordado por uma orientanda em seu mestrado, a Carolina Abrão. Vão sendo compostas brincadeiras diferentes. Às vezes, furam um pouco esse cerco e todos se misturam.

Beatriz Corsino – Tem essa questão do imigrante que pega?

Marcia Gobbi – Pelo que observo, sim, pega. São grupos distintos, têm outra língua, chegam com outros modos de vida. No início do processo de ocupação no Jardim da União, eles fizeram uma coisa bacana com os bolivianos que lá chegaram. O que foi feito? Bom, você pode contribuir com alguma coisa. “Você vai dar aula de espanhol”. Então eles foram incorporados, passando a se relacionar com os demais moradores.

Paula Nurit Shabel paulashabel@gmail.com
Doutora em Ciências Antropológicas pela Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina, onde também é docente. Suas pesquisas tratam o tema da infância e organizações sociais, bem como a construção do conhecimento social por parte das crianças. Trabalha no Consejo Nacional de Investigaciones Científicas (CONICET), Argentina.
Marcia Aparecida Gobbi mgobbi@usp.br
Cientista Social, Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Mestre e Doutora em Educação (área de Ciências Sociais e Educação), pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil. Investiga e orienta pesquisas relacionadas à infância, em especial na produção de imagens em contextos urbanos e escolares, e ensino de Ciências Sociais.
Beatriz Corsino Pérez biacorsino@gmail.com
Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF)/ Campos dos Goytacazes, Brasil. Investiga e orienta pesquisas sobre infância e juventude, em especial sobre os temas: participação, política, suas relações com a cidade e o campo, educação e psicologia escolar. Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC/UFRJ) e do Núcleo de Pesquisa Infâncias, Juventudes e Políticas Públicas (NIJUP/UFF).