Foto: Pxhere

Infância em contextos de luta por moradia na Argentina e no Brasil

Beatriz Corsino – E vocês acham que essa forma de viver a infância, mais coletivizada, e que também se faz presente de uma outra forma nos espaços da cidade – eu estava lembrando também do seu texto, Marcia, que eu li, sobre o jogo de futebol, que você fala sobre essa presença do jogo de futebol na rua –, se isso favoreceria um engajamento mais político, a preocupação com o mundo comum, com outras preocupações que atravessariam essa infância?

Marcia Gobbi – Algo sobre o que venho refletindo é o atendimento das crianças do Centro pela Porto Seguro (empresa seguradora brasileira), que é quem está nos debates, na disputa por essa região central. Preocupa-me a inexistência de diálogo entre moradores da ocupação e as formas usadas pelas professoras junto às crianças. Infiro que as crianças pequenas da ocupação, ao irem para a creche, receberão uma formação contrária àquela vivida cotidianamente. Disputa-se entre o formar para o coletivo e uma formação universalizante que pressupõe o individual como valor e prática social a vigorar nas relações. Mas, como sabemos, as crianças – e nós – são atravessadas pelo contexto em que estão imersas e o constroem também a seus modos. Quero acreditar que argumentem, de um modo ou de outro, algo assim: “Não, mas a gente vive tudo junto”.

Paula Shabel – Não há motivos para pensar que uma forma de infância necessariamente leva a uma forma de vida adulta. Nem uma infância triste ou solitária vai levar necessariamente a construir adultos que não possam se relacionar. De fato, um pouco como dizia Marcia, a coletivização dos espaços, a coletivização dos objetos é vivenciada por muitas crianças como uma consequência da pobreza, e não como uma escolha. E isso é muito problemático, porque acaba sendo um estigma e não uma alternativa. Então, muitas vezes, o que acaba acontecendo é que essas crianças são como fanáticos da propriedade privada, porque é aquilo que não podem ter, e a alternativa do coletivo não é vista como alternativa, mas como uma necessidade, algo que é feito porque não há o que fazer, e isso se torna muito problemático nesse contexto. Porque, talvez amanhã, quando puderem ter sua casa própria, são os primeiros que vão querer tê-la. Porque nunca a tiveram, porque nunca puderam tê-la. A única forma de construir uma vida adulta diferente é tendo mais possibilidades. Não é que uma infância mais coletiva vai gerar uma solução mágica no futuro. Adoraria poder dizer o contrário, mas é que funciona, muitas vezes, de forma oposta ao que gostaríamos.

Beatriz Corsino – Mas, no presente, vocês percebem algo mais solidário, uma preocupação maior com o outro?

Paula Shabel – Eu acho que há, sim, uma ideia de uma vida em coletivo que, sim, vai sendo gestada nestas infâncias e, de fato, é algo que vão levar como prática: uma ideia de dividir com outros o tempo todo. Porque, além disso, a necessidade leva a gerar estratégias coletivas de criação, de educação, de saúde, de cuidado. No grupo que surge das crianças, são, sim, muito cuidadosos entre eles, não vão deixar que ninguém machuque seu companheiro. Eu também me sinto um pouco insegura, às vezes, estando nesses espaços que tínhamos dito que eram como “perigosos”, porque há também uma ideia de cuidado do tipo “bom, você é da gente, você vem da gente, não vamos deixar que ninguém te machuque, e se acontecer alguma coisa com você, vamos ajudar e, mesmo que não tenhamos dinheiro, vamos juntar e sair vendendo alguma coisa para que você tenha o que não pode ter agora”. Acho que isso, sim, é algo que vai se reproduzindo no Movimento, entre os adultos, entre as crianças. A experiência de ter atravessado uma participação coletiva deixa, sim, marcas de socialização que vão ter efeitos no resto da vida dessas crianças. Não há uma ideia linear, onde isso vai significar que eles serão de uma maneira ou de outra, mas a experiência do coletivo traz efeitos, nós veremos.

Marcia Gobbi – Acho que nesses momentos assim, ao cuidar umas das outras, algo que é muito frequente é as maiores cuidando de bebês, de crianças muito pequenininhas. Pega no colo, e leva, e troca, tem carinhos, tem cuidado mesmo. Inicialmente, eu perguntava: Mas é sua prima? É sua irmã mais nova? Mas não é, é a Lorena. Quem é a Lorena? Lorena é um bebê que requer cuidados próprios aos bebês. Então tem um cuidado, uma brincadeira com cuidado, no estar junto. Mas ela vai junto? Ela é muito pequena. “Não, mas ela pode ir junto com a gente, porque a gente cuida dela”. Existe um cuidado ali de todo mundo. Mas algo que seja tão diverso do que eu já vi nas outras crianças? Não. Tem esses cuidados mesmo. “Aqui é nossa casa”. Tem um respeito, tem o chamar para entrar, de me mostrar, de mostrar com certo orgulho, de estar meio que todo mundo junto.

Beatriz Corsino – Curioso como lá em Buenos Aires e aqui em São Paulo, apesar das suas especificidades, temos muitas coisas em comum. De repente, tem mais proximidades entre essas duas infâncias que vivem em ocupação do que entre uma outra de classe média alta dentro do próprio país.

Marcia Gobbi – Estamos procurando as crianças e suas manifestações, particularmente, estou encontrando especiais formas de lutar e se fazer presente cotidianamente, algo simples e que ainda pouco notamos, me parece. Acho que é um desafio muito grande para a gente não achar que as crianças são as grandes redentoras, porque não são. Vivem em condições, de fato, muito precárias, de pobreza. É importante a gente dizer isso. Um descaso entre as políticas governamentais, em discutir com todos sobre o direito à moradia, ao brincar dignamente, à educação, enfim, tudo que já sabemos. Mas acho que elas vão criando – quando você chama a atenção para que nós falemos sobre as brincadeiras e tudo mais – para a gente pensar que há uma forma particular dessa luta, que talvez esteja sendo tecida pelas próprias crianças no seu cotidiano. Há uma especificidade. É um modo particular de luta que é tecido pelas crianças no cotidiano. Isso é importante. Porque senão a gente pode correr o risco de cometer equívocos ao afirmar: “Olha que bacana, elas estão brincando”. Sim, olha que bacana estão brincando, mas poderíamos ter condições em que essas desigualdades não estivessem presentes e o brincar e desenhar e tantas outras formas de se relacionar com o mundo acontecessem em boas condições.

Beatriz Corsino – Até que ponto é desigualdade ou é diferença, isso é uma questão, né? Paula falou disso também, que essa diferença também se dá pela vulnerabilidade, pela pobreza.

Paula Shabel – Há colegas e companheiros que fazem análises econômicas ou políticas do que está acontecendo. E essas análises são necessárias, mas, nesse ponto, é quando as crianças ficam mais invisibilizadas, porque são poucos os que colocam centralidade no impacto que está tendo todo esse avanço neoliberal no continente, nas crianças, especificamente. Lembro que pensava, quando Lula foi preso, não, quando destituíram Dilma, lembro que pensava: o que os professores vão dizer aos seus alunos no dia seguinte? “Perdão, era mentira a democracia” ou “Perdão, isso aqui não serve”. Isso vai deixar marcas nas crianças, isso significa algo. E, às vezes, nas análises conjunturais mais macro, isso fica invisibilizado, o lugar que têm as crianças e os efeitos que todos esses processos têm nessa etapa da vida. Então, no meio de todo o caos que estamos vivendo na América Latina, agradeço a possibilidade de usarmos um tempinho para dar lugar às crianças.

Beatriz Corsino – Bom, muitíssimo obrigada pela entrevista.

Marcia Gobbi – Muito obrigada!

Paula Shabel – Obrigada.

Resumo
As ocupações, de modo geral, são povoadas por crianças de todas as idades, que vivem todas as aventuras e descobertas da infância em uma situação bastante diferenciada. O que acontece dentro das ocupações fica distante dos olhos da maior parte da sociedade e, nesta entrevista, abordamos o cotidiano de ocupações urbanas nas cidades de São Paulo e Buenos Aires. Ao conhecer a realidade das crianças, seja do ponto de vista delas, seja do de suas famílias, percebemos que a visão do observador externo pode estar carregada de preconceitos. Por exemplo, ao enxergar nesses atores mirins o antigo papel de coadjuvantes dos momentos históricos. Ao lançar luz sobre a temática das ocupações e o protagonismo da infância nesses eventos, somos levados a ultrapassar a falsa ideia das ocupações apenas como eventos sociopolíticos, alcançando também a materialidade das apropriações subjetivas que esse contexto possibilita. Mesmo diante dos riscos que a tarefa das ocupações impõe aos seus participantes, por meio dessa entrevista, as crianças começam a surgir como inventores e mantenedores de formas particulares de lidar com os temas da igualdade, identidade, intergeracionalidade, contestação e apropriação.

Palavras-chave: infância, ocupação por moradia, políticas sociais, protagonismo infantil.

Data de recebimento: 02/07/18
Data de aprovação: 05/09/18

Paula Nurit Shabel paulashabel@gmail.com
Doutora em Ciências Antropológicas pela Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina, onde também é docente. Suas pesquisas tratam o tema da infância e organizações sociais, bem como a construção do conhecimento social por parte das crianças. Trabalha no Consejo Nacional de Investigaciones Científicas (CONICET), Argentina.
Marcia Aparecida Gobbi mgobbi@usp.br
Cientista Social, Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Mestre e Doutora em Educação (área de Ciências Sociais e Educação), pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil. Investiga e orienta pesquisas relacionadas à infância, em especial na produção de imagens em contextos urbanos e escolares, e ensino de Ciências Sociais.
Beatriz Corsino Pérez biacorsino@gmail.com
Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF)/ Campos dos Goytacazes, Brasil. Investiga e orienta pesquisas sobre infância e juventude, em especial sobre os temas: participação, política, suas relações com a cidade e o campo, educação e psicologia escolar. Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC/UFRJ) e do Núcleo de Pesquisa Infâncias, Juventudes e Políticas Públicas (NIJUP/UFF).