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Reflexões e debates emergentes sobre justiça juvenil

Entrevista de Jalusa Silva de Arruda com Maria João Leote de Carvalho

Os trabalhos acadêmicos e a atuação da pesquisadora portuguesa Maria João Leote de Carvalho são referências para profissionais e pesquisadores da infância e juventude no campo da justiça juvenil. Em junho de 2016, pelo reconhecimento e pela expertise na área, foi nomeada conselheira do Conselho Nacional da Comissão Nacional para a Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens de Portugal. Atuou por anos com adolescentes e jovens infratores em uma instituição de custódia e com crianças e adolescentes em risco nas escolas estaduais de bairros de habitação social em Portugal. É coordenadora da equipe de pesquisa Direitos, Política e Justiça no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade NOVA de Lisboa (CICS.NOVA) e uma das fundadoras das seções de Sociologia do Direito e da Justiça e Sociologia da Infância da Associação Portuguesa de Sociologia. Representa Portugal no European Council for Juvenile Justice, no Observatório Internacional para a Justiça Juvenil na Child-Friendly Justice – European Network e é membro do Grupo de Trabalho Temático sobre Justiça Juvenil da European Society of Criminology. Nesta entrevista, Maria João Leote de Carvalho abordou aspectos relevantes sobre a justiça juvenil, tais como o papel das investigações sociológicas e as mudanças nos mundos sociais da infância e da juventude e seus impactos no atendimento e acompanhamento de adolescentes e jovens.

Jalusa Arruda – Considerando a evolução da justiça juvenil, como podemos localizar a teoria sociológica sobre a criminalidade juvenil?

Maria João Leote de Carvalho – A Sociologia tem uma responsabilidade na construção social e política dos próprios conceitos e, como exemplo, em Portugal, quando falamos “criminalidade juvenil”, no fundo, estamos falando de uma criminalidade de adultos, uma vez que jovens com idade igual ou superior a 16 anos são considerados e julgados como adultos à luz da lei penal, pois esta é a idade da maioridade penal no país. Se pensamos no sistema de justiça juvenil enquanto sistema diferenciado para jovens inimputáveis, o termo que aplicamos em Portugal não é criminalidade juvenil, mas delinquência juvenil. Ou seja, o que temos é uma justiça juvenil para os jovens que, entre os 12 e os 16 anos, praticam fatos qualificados pela lei penal como crimes, mas que não são considerados como prática de crimes, tal como no Direito Penal.

O conceito de crime tem como fundamento a garantia da paz social e simultaneamente uma ideia de retribuição da parte do próprio indivíduo que praticou o ato e, por conseguinte, a relação do Estado com este indivíduo é uma relação que procura por um lado a sua posterior reinserção, mas também que ele retribua à sociedade pelo dano que cometeu pela prática daquilo que historicamente definimos como crime. É, portanto, uma questão legal e social. Mas se o jovem é inimputável, o objetivo não é que ele retribua à comunidade ou à sociedade, mas é o Estado e a comunidade que podem e devem intervir junto do jovem no sentido da sua proteção, ressocialização e educação.

É importante pautar essa distinção porque esses conceitos são facilmente apropriados pelos meios de comunicação social e, não raro, cria-se uma amplificação e uma concepção errada sobre os próprios termos usados. Se acharem que estamos falando de crime, facilmente as pessoas são levadas a acreditar que o jovem tem que ser responsabilizado no sentido de que tem que “pagar” à sociedade pelo crime que faz. Enquanto pesquisadores, não podemos fazer concessão a essa concepção, mas antes ir ao que está de acordo com as normativas internacionais que orientam a justiça juvenil1.

Neste ponto, é também essencial ter clareza na construção do conceito de jovem. Nas sociedades atuais, sabemos pela Sociologia e por abordagens multidisciplinares que o jovem – aquele rótulo que nós aplicamos para uma determinada fase da vida – é uma fase que se prolonga cada vez mais no tempo. Começa antes, mas também termina mais tarde, e a construção da teoria sociológica sobre a juventude caminha neste sentido. É claro que não se pode desconsiderar a influência da construção da norma, do direito e da reação social, quer dizer, na reação do controle social formal quanto à prática de delinquência juvenil. Na justiça juvenil, quando se usa o conceito de criminalidade juvenil, acaba-se por desvalorizar o conceito de jovem, e essa é uma questão fundamental na análise social e jurídica. Mesmo que seja não intencional, quando a teoria sociológica adota o conceito de criminalidade juvenil, aplicando-o aos inimputáveis, anula-se a ideia no Direito da Criança estabelecido no quadro da Constituição da República Portuguesa e do próprio conceito de jovem. Naturalmente, é uma questão que mostra como o pesquisador tem sempre de acautelar como âncora os conceitos que variam de contexto em função das diferenças da lei vigentes em cada Estado. Para entender melhor, trato da justiça juvenil em Portugal em alguns textos (Carvalho, 2017b, 2017c).

Jalusa Arruda – Mas em Portugal é possível encontrar referências ao termo “criminalidade juvenil”.

Maria João Leote de Carvalho – Sim, e sou extraordinariamente crítica. Nós assistimos em Portugal uma situação em que a Sociologia tem se omitido na área da delinquência juvenil e esse espaço tem sido claramente ocupado pelas áreas das Ciências Humanas, em que a Psicologia se põe no topo, e temos assistido que esse domínio prevalente coloca em causa muito mais o âmbito individual e não tanto o social. Assistimos um deslocamento do olhar das práticas da delinquência juvenil mais centrada na responsabilidade do próprio indivíduo, o que tem um peso muito grande quando nos voltamos para as políticas públicas de prevenção da delinquência juvenil.

É inescapável dizer que também é uma responsabilidade acadêmica não ter dado tanta atenção ao tema e estar um pouco ausente nas discussões e nos debates no campo. Lamento que alguns de meus trabalhos de mais de década e meia ainda continuem a ser uma referência em Portugal, porque já devia ter havido outras pesquisas, já deveríamos ter uma renovação teórica no debate sociológico sobre a delinquência juvenil. Aqui são pouquíssimos os pesquisadores da Sociologia que estão dedicados à área da justiça juvenil, mesmo nosso país tendo sido um dos primeiros a ratificar a Convenção sobre os Direitos da Criança.

Apesar de termos um sistema de justiça juvenil que nos seus princípios (com exceção de uma questão que falarei mais à frente) é visto como um dos mais avançados, a verdade é que continua a ser uma área vista como “menor”. Aliás, toda temática que envolve infância e juventude continua a ser vista como menor, apesar da complexidade. É uma área que permite um olhar sobre as mudanças sociais e sobre a forma como as sociedades se organizam, mas infelizmente nós temos um esvaziamento entre parte do meio acadêmico e o que se passa na realidade social, mesmo para a Sociologia.

No panorama internacional, no qual destaco o contexto europeu, nos últimos anos, as questões associadas ao terrorismo e a luta contra o terrorismo assumiram prioridade para os governos europeus. Na Europa, entramos numa nova cultura de controle, uma cultura de controle securitária que – se já havia uma rotulação dos jovens como perigosos e desafiantes que incitavam o controle social – com as questões associadas à radicalização e ao envolvimento de alguns jovens (e até de crianças) em atos relacionados com terrorismo, ou ainda, fenômenos nomeadamente de imigração e de radicalização de ida para territórios de zonas de conflitos, assistimos um olhar mais controlador e ainda mais securitário para com a juventude.

Isso é agravado pelos movimentos de imigração que alastraram pela Europa e que têm marcado a situação no contexto europeu nos últimos anos, sobretudo, as imigrações que vêm de fuga de zonas de guerra e de conflitos e que trazem o problema dos menores2 não acompanhados (Carvalho, 2019). Para se ter uma ideia, entre 2008 e 2017, entraram cerca de 200 mil menores não acompanhados na Europa. Portugal não sente tanto esse problema por estar na periferia ou, ao menos por aqui, é um problema menos visível, mas temos que pensar que é uma situação muito específica. De um modo geral, infelizmente, em muitos casos, noutros países europeus tem sido o sistema de justiça a intervir, e com a privação de liberdade. Muitos desses jovens são colocados em centros de detenção, de acolhimento ou de ressocialização. Seria fundamental adaptar a própria justiça juvenil àquilo que são os novos contextos de vivência da juventude e aos novos fenômenos que marcam o contexto europeu.

Jalusa Arruda – Pensando no contexto que a senhora apresentou, Portugal tem muitos adolescentes e jovens privados de liberdade?

Maria João Leote de Carvalho – Atualmente está por volta de 150 internados em centros educativos. Em se tratando de jovens entre 16-17 anos, ou seja, menores de idade do ponto de vista civil, mas maiores de idade já do ponto de vista penal, em maio de 2019 eram 43 detidos em estabelecimentos prisionais3. Aqui, tanto a justiça penal como a justiça juvenil têm tido uma tendência de não aplicar a pena de privação de liberdade ou as medidas tutelares educativas de privação de liberdade. Está mais que provado que as medidas de privação de liberdade devem ser aplicadas em último caso e quando não for possível outra medida eficaz para aquele adolescente ou jovem.

Outro ponto para refletirmos a partir da Sociologia é a relação entre Estado, cidadão jovem e justiça. Vivemos em épocas de transformações sociais que afetam fortemente a juventude. Hoje temos jovens mais escolarizados, mas que têm uma maior dificuldade no acesso ao mercado de trabalho e, muitas vezes, quando conseguem trabalho, não só é mais tarde, como se dá em condições mais precárias; temos mais jovens constituindo família mais tarde e temos novos modelos de família; temos, ainda, cada vez mais jovens dependentes de medicação, porque os problemas de comportamento da adolescência e da infância em Portugal tendem a ser resolvidos com medicação e não temos uma estrutura e uma rede de saúde mental voltadas para a infância e a juventude que consiga cobrir todo o território nacional. Ainda, na relação entre o Estado, a comunidade e o cidadão jovem, buscamos rótulos e “caixinhas”, tirando-os de uma e colocando em outras, onde a justiça juvenil é a “caixinha” em que muitos dos jovens vão parar porque, em suma, faltou ações de cuidado e prevenção durante a sua infância.

No âmbito das políticas públicas, o próprio Estado não considera ações de prevenção como uma prioridade e não se vê o jovem como um todo. Ora o jovem está no sistema de promoção e proteção, ora no sistema de justiça, ora no sistema de saúde, mas de forma fragmentada. Não temos uma visão sistêmica sobre o que é ser jovem e temos dificuldade em perceber que o mundo mudou muito e continua a mudar. Podemos até falar aqui de uma questão geracional, que é muito atual: há uma patente dificuldade do Estado e de profissionais, de técnicos que atuam na área da infância e juventude, em acompanhar essa mudança social. As tecnologias de comunicação e informação e os usos do meios digitais são um exemplo disso, pois os mundos sociais da infância e da juventude mudaram. São outros desafios e são necessários outros instrumentos para a intervenção, inclusive para a própria justiça juvenil (Carvalho, 2019).

Jalusa Arruda – A senhora pode dar um exemplo?

Maria João Leote de Carvalho – Em Portugal, há um instrumento da avaliação do risco do jovem usado desde 2010, que é referenciado à polícia para depois ser referenciado ao sistema de justiça juvenil, construído com base num procedimento científico com resultados validados cientificamente. O instrumento foi criado a partir dos estudos de Andrews e Bonta e transposto para a realidade portuguesa, mediante investimento da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) [serviço vinculado ao Ministério da Justiça, responsável pela gestão do sistema de justiça juvenil e sistema prisional]4. O instrumento, conhecido pela sigla YLS, permite fazer uma avaliação da situação de risco do jovem5. Mas, apesar da validade científica, a literatura atual nos diz que o que está inserido no instrumental relacionado diretamente com o sistema da justiça juvenil, quer dizer, toda fórmula de socialização na infância e juventude, está diferente. Com isso, os riscos são outros e a própria noção de risco está diferente. Logo, os instrumentais de avaliação de risco, de avaliação social, de avaliação psicológica, da avaliação forense de crianças e adolescentes têm que mudar e passar a contemplar, exemplarmente, uma forma de socialização básica na infância e juventude atual que passa pelos mundos virtuais. Em boa parte do mundo, os jovens estão na internet e nas tecnologias. Nós temos modelos de intervenção técnica na justiça e fora da justiça que não estão preparados ainda para lidar com esse cenário. São questões às quais a Sociologia da infância e da juventude ainda não nos trazem muitas respostas, são questões novas para as quais estamos à procura de respostas.

Jalusa Arruda – O uso desse instrumental diz algo sobre a reincidência?

Maria João Leote de Carvalho – A avaliação que o Ministério da Justiça e a DGRSP têm feito das taxas de reincidência, nomeadamente, dos jovens que tiveram medidas educativas e de internamento em centros educativos, realmente mostra taxas mais baixas em comparação com países europeus que têm políticas mais punitivas.

1 – Na norma internacional, criança é toda pessoa com menos de 18 anos. A entrevistada faz referência indireta à Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, às Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Regras de Beijing) e às Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad).
2 – No Brasil, a expressão “menor” está relacionada ao período tutelar e foi substituída por crianças e adolescentes com o estabelecimento da doutrina da proteção integral. De cariz jurídico e estigmatizante, menor foi usado para se referir ao segmento infantojuvenil que estava sujeito às intervenções estatais em razão da pobreza, do abandono e da prática de atos infracionais. Portugal adotou as categorias crianças e jovens, mas o sistema de justiça português e a organização judiciária portuguesa mantiveram ainda o termo menor, inclusive para nomear a área especializada de Família e Menores e mesmo o Tribunal de Família e Menores. Para mais informações, vide: https://justica.gov.pt/Justica-juvenil. O termo menor não acompanhado reporta-se, segundo as normas internacionais, a crianças que foram separadas da sua família e que não estão sob cuidados de um adulto.
3 – Em Portugal, são considerados inimputáveis adolescentes entre 12 e 16 anos, conforme a Lei Tutelar Educativa (Lei nº 4, de 15 de janeiro de 2015, primeira alteração à Lei nº 166, de 14 de setembro de 1999). Entretanto, há um regime penal especial para jovens adultos, assim consideradas as pessoas entre 16 e 21 anos, previsto no Decreto-Lei nº 401, de 23 de setembro de 1982.
4 – A entrevistada refere-se aos pesquisadores Donald Andrews e James Bonta (2010). Na psicologia da conduta criminal, busca-se analisar a delinquência e o crime a partir da psicologia. Especialmente dedicada às carreiras criminosas e ao tratamento do criminoso, interessa-se pela explicação do comportamento antissocial, com destaque às teorias da aprendizagem, às características individuais daqueles considerados criminosos e às análises sobre os vínculos sociais dos indivíduos. Os resultados dos trabalhos dos autores tiveram repercussão na elaboração de programas de prevenção e tratamento do crime com jovens, autores de violências doméstica e sexual etc.
5 – O Youth Level of Service/Case Management Inventory (YLS/CMI) é um instrumento estatístico de escala de avaliação de risco muito utilizado pelos sistemas de justiça juvenil dos países da Europa e da América do Norte. O instrumento avalia as características e circunstâncias de vida dos jovens que podem incidir no risco à reincidência, bem como contribui para decisões no âmbito da justiça juvenil e também no processo de intervenção, supervisão, planejamento e gestão dos casos (Cabral, 2019; Pimentel et al., 2015).
Jalusa Silva de Arruda jsarruda@uneb.br
Advogada e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e pesquisadora associada do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM/UFBA).
Maria João Leote de Carvalho mjleotec@sapo.pt
Socióloga, bacharela em Educação e doutora em Sociologia pela Universidade NOVA de Lisboa. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FTC) (SFRH/BPD/116119/2016) sobre os jovens na justiça juvenil e penal em Portugal.