Foto: Pxhere

Maternidade adolescente no contexto das ruas

Introdução

Episódios flagrantes de violações de direitos humanos envolvendo crianças e adolescentes em situação de rua são comuns nos grandes centros urbanos. O enfraquecimento dos vínculos familiares e comunitários, a proteção inadequada do Estado, a ausência da escola, o trabalho infantil, o envolvimento com o tráfico de drogas e a violência, entre outros elementos, tornam crianças e adolescentes em situação de rua um grupo particularmente suscetível a violações estruturais. Consideramos que, a despeito do avanço nos debates acerca da garantia dos direitos humanos, temos acompanhado o crescimento de práticas punitivas e repressivas que incidem prioritariamente sobre grupos populacionais em contextos de vulnerabilidade, particularmente em situação de rua (CRC, 2015). Nesse contexto, um segmento específico enfrenta desafios ainda mais complexos e interseccionais. É o caso de adolescentes que vivem a maternidade nas ruas.

Este estudo teve como motivação uma experiência recente das autoras junto a um grupo de jovens mães com trajetória de vida nas ruas, experiência na qual tivemos a oportunidade de escutar múltiplos aspectos de suas trajetórias de vida1. Também nos influenciou uma série de denúncias e recomendações relacionadas ao afastamento de mães em situação de rua e/ou usuárias de crack/outras drogas de seus filhos recém-nascidos pelo sistema judiciário brasileiro (CRP/MG, 2015; MS, 2015; DP/RJ, 2015). Apesar desse cenário extremo, registramos um limitado número de pesquisas dedicadas a essa questão. A insuficiência de estudos que pudessem fornecer elementos teóricos e subsidiar as análises da referida experiência motivou o presente artigo, no qual reunimos e analisamos os principais aspectos da literatura recente sobre crianças e adolescentes em situação de rua e, mais especificamente, sobre o tema da gravidez e da maternidade nesse contexto2.

O levantamento da produção acadêmico-científica acerca das tendências teóricas e metodológicas relativas ao tema em questão incorporou artigos, teses e dissertações publicados entre os anos de 2000 e 2015 no Brasil. Foram selecionados 116 títulos no total, sendo que 10 abordavam o tema da maternidade e da gravidez adolescente e jovem em situação de rua. As análises realizadas acerca desse material serão apresentadas neste artigo.

Além disso, como parte da proposta de desenvolver uma pesquisa exploratória sobre o tema, analisamos práticas recentes voltadas para adolescentes grávidas e/ou mães em situação de rua. Com isso, esperamos traçar um panorama sobre o tema, potencializar o conhecimento coletivo construído e estabelecer uma base para a construção de novos estudos, abordagens e metodologias de análise sobre o tema proposto.

Teorizando sobre a questão da vida nas ruas

A pobreza urbana e diversos fatores a ela interligados, como a violência, os maus tratos e a negligência no contexto familiar, seguem ocupando lugar de destaque no rol dos motivos que levam crianças e adolescentes a buscar, nas ruas, uma alternativa de vida (Ribeiro, 2001; Yunes et al., 2001; Paludo; Koller, 2008). Estudos apontam que condições socioeconômicas precárias e uma multiplicidade de fatores relacionados a essas condições acarretam problemas de natureza psicossocial, afetando a saúde física e mental dos indivíduos (Couto, 2012). Esses fatores podem gerar, inclusive, o afastamento de crianças e adolescentes de sua família e de sua comunidade, como já apontava Winnicott (1996), há décadas atrás.

Embora as relações familiares destes sujeitos sejam permeadas por conflitos, vulnerabilidades e dificuldades, inclusive no campo psicossocial e afetivo, os vínculos familiares resistem, ainda que fragmentados (Tfouni; Moraes, 2003; Barros et al., 2009). A ida de crianças e adolescentes para as ruas frequentemente representa um sinal extremo e um pedido de socorro que antes não foi ouvido ou efetivamente reconhecido. Dessa forma, essa ação pode ser entendida como uma busca por outras possibilidades de vida e, em alguns casos, como uma estratégia de autoproteção. Uma relação complexa de fatores gera processos graduais de afastamento, fragilização e rompimento dos vínculos familiares e comunitários (Rizzini et al., 2003). Nessas circunstâncias, a circulação, o ir e vir entre a casa, a rua e as instituições de acolhimento constitui uma das principais características da vida de crianças e adolescentes em situação de rua (Frangella, 2000; Rizzini; Neumann; Cisneros, 2009). Nas ruas, afastados de suas famílias e de suas comunidades, crianças, adolescentes e jovens seguem expostos a toda sorte de violações de direitos.

No que se refere à questão da gravidez e da maternidade na adolescência, foco central deste artigo, destaca-se que a adolescência é um momento delicado do ciclo de vida e do desenvolvimento humano. É um período no qual se processam significativas mudanças físicas, biológicas, psicológicas e sociais, fundamentais para a consolidação da identidade dos sujeitos. A gravidez e a maternidade neste período acarretam profundos impactos sobre esses indivíduos, muito embora, como todo fenômeno complexo, possua causas e consequências diversas. Nas ruas, o acesso aos serviços públicos e às oportunidades de apoio e melhoria de vida é limitado, o que torna essa realidade ainda mais desafiadora. Nesses casos, a gravidez na adolescência é frequentemente associada a baixos índices de escolaridade, baixos rendimentos no mercado de trabalho e à perpetuação de ciclos intergeracionais de pobreza, o que a torna uma questão de grande relevância do ponto de vista humano e social.

1 – Ao longo dos últimos dois anos, temos desenvolvido um trabalho em parceria com uma organização não-governamental que atende crianças e adolescentes em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro/RJ e temos acompanhado, através de rodas de conversa e oficinas, grupos de adolescentes e jovens grávidas e/ou mães com trajetória de vida nas ruas. Este trabalho vem sendo analisado e seus resultados serão divulgados oportunamente.
2 – O levantamento da produção acadêmico-científica nacional foi realizado no âmbito do projeto “Políticas públicas e os desafios da implementação – Análise do caso da Política de Atendimento a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua no Rio de Janeiro” (apoio: FAPERJ, CNE, Ref. N° E-26/201.274/2014).
Irene Rizzini irizzini.pucrio.ciespi@gmail.com

Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e diretora do Centro Internacional de Estudos sobre a Infância (CIESPI/PUC-Rio), Brasil.

Renata Mena Brasil do Couto renatabrasilciespi@gmail.com

Pesquisadora do Centro Internacional de Estudos sobre a Infância (CIESPI/PUC-Rio) e doutora em serviço social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.