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Maternidade, crianças e cuidado: Um olhar a partir de uma política de acesso à água no semiárido brasileiro

Políticas de saúde, políticas para a saúde: por uma definição sociocultural do termo

Em um lugar desse imenso Brasil inventado1 pelas imagens de falta d’água, impressiona aqueles e aquelas que visitam a profusão de pequenos reservatórios cilíndricos, reluzentes e cor de cal, espalhados pela zona rural. De 2002 a 2019, foram construídas no semiárido brasileiro mais de 800 mil cisternas, em sua maioria produto da luta social de sindicatos, entidades pastorais, movimentos e organizações sociais da região. Criado em 1999, porém só amplamente concretizado em 2003, o Programa de Mobilização Social Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC) tem como principal objetivo descentralizar o acesso à água em contextos rurais, marcados pela estiagem prolongada, característica do semiárido brasileiro, por meio da construção de reservatórios (as cisternas) que captam e armazenam água das chuvas.

[Mapa 1: Delimitação do ‘Semiárido Legal’. Fonte: IBGE e Sudene]

[Figuras 1 e 2 (uma abaixo da outra): Acima, foto do terreno da família de Esmeraldina, com a cisterna ao fundo, atrás dos pés de milho; abaixo foto de uma cisterna, Julho de 2017]

Do ponto de vista formal, o P1MC esteve ligado por muitos anos à pasta de Segurança Alimentar e Nutricional do extinto Ministério do Desenvolvimento Social, englobado hoje pelo Ministério da Cidadania. Suas ações articulavam-se, portanto, a objetivos diversos dentro do grande guarda-chuva de programas sociais de superação da pobreza2 implementados a partir de 2003, que iam desde a melhoria das condições sanitárias e de higiene, à diminuição da mortalidade infantil e à diminuição das doenças veiculadas por águas contaminadas ou de baixa potabilidade, bem como à erradicação da fome e à melhoria na alimentação da população brasileira.

De primeiro, já é possível colocar que, embora esta não seja uma política pública de saúde stricto sensu, no sentido de ser proposta e executada por seus órgãos e atores constitucionalmente competentes (secretarias, ministérios, profissionais da área), ela se conecta à produção da qualidade de vida, uma vez que água é vista como um recurso fundamental não só para suprir as necessidades fisiológicas, mas também para o preparo e produção (em pequena escala) de alimentos. Neste sentido, um primeiro ponto que podemos colocar é qual concepção de saúde temos em vista e como ela impacta nossas interpretações sobre as distintas realidades.

Em uma conceitualização ampla e democrática da noção de saúde, esta pode ser compreendida não somente como a ausência de enfermidades, mas a partir do gozo de condições que propiciem o bem-estar físico, mental e social de todos e todas, o que inclui a garantia do direito à alimentação adequada, à moradia, ao saneamento básico e ao respeito aos modos de vida específicos. Por isso, a ideia de saúde que defendemos aqui vai além da sua dimensão disciplinar rígida, relativa a um tipo de conhecimento científico (concernente às ciências médicas, sanitárias, farmacologia, biologia, entre outras), que pretende deter o monopólio do seu significado. Recorrendo à dimensão sociocultural deste conceito, podemos associá-lo a processos sociais que constroem definições sobre o normal e o patológico e circunscrevem, também, concepções particulares de doença, morbidade, técnicas e procedimentos terapêuticos (Langdon, 2014; Langdon; Wiik, 2010), bem como distinções e oposições entre noções de sujeira e limpeza, purezas e impurezas (Douglas, 2012).

Inscritas nas regras, acordos e instituições criadas e refeitas pela sociedade, as práticas sociais relativas à saúde se fazem também acionando modelos de família, relações de gênero, raça, classe e geração, bem como estabelecendo um conjunto de padrões prescritivos a serem seguidos pelo grupo social em questão. Sendo assim, o campo da saúde incorpora também relações de poder, já que, por meio e através dele, se estipulam dispositivos de controle sobre os corpos que, como demonstraram Foucault (2010) e Elias (1990), passam menos pelo exercício explícito da força e mais pela disciplina, educação, gestão e regulação das práticas.

Partindo dessas reflexões, nosso intuito neste texto é justamente investigar as distintas concepções de saúde e higiene em jogo na execução do referido programa voltado à construção de cisternas, que por sua vez incidem sobre as relações estabelecidas entre as mães e as crianças, colocando em primeiro plano práticas de cuidado produtoras de corporalidades e coletividades. Nossa pesquisa parte de entrevistas com gestores e materiais sobre esse Programa, porém, privilegia a interlocução com uma comunidade quilombola no agreste do estado de Pernambuco, chamada Liberdade. Nela, realizei um trabalho de campo de oito meses, distribuídos ao longo de três anos (2016-2018).

Liberdade é uma comunidade rural na qual vivem em torno de 300 famílias, que se ocupam de atividades diversas: a agricultura em pequena escala; empregos nas fazendas de gado leiteiro; nas usinas de beneficiamento de leite ou nas plantações de milho e tomate da região; além de trabalhos variados (muitos sem vínculos formais) nas cidades próximas, como serventes, mototaxistas e trabalhadoras domésticas. Nomeamos este local como uma comunidade quilombola, pois parte de suas e seus habitantes se entendem como tal e, também, porque ela está pleiteando junto ao Estado esse reconhecimento desde 2015, sendo identificada pela Fundação Palmares em 2018.

Tomar este lugar como centro de nossa análise não se orienta no sentido de reiterar sua singularidade em relação às milhares de outras localidades rurais nas quais este Programa também foi executado. Pelo contrário, acreditamos que a descrição etnográfica, como diz Peirano (2014), ainda que situada, permite a reflexão e a comparação de/sobre problemas de várias ordens e escalas, ao colocar em constante contraste concepções e categorias, sejam da pesquisadora, das suas interlocutoras, dos organismos de Estado, seja da literatura acadêmica, propiciando assim a contínua reorientação dos objetivos teóricos/analíticos, bem como das certezas científicas.

O Programa de Cisternas, as mães e as crianças na superação da pobreza

A tentativa de universalização do acesso à água e as decorrentes melhorias nas condições de saúde e vida do povo sertanejo aparecem sempre articuladas a um aspecto muito relevante, tanto na literatura (Soares, 2009), como na fala daqueles gestores que entrevistei: a diminuição da sobrecarga de trabalho doméstico para as mulheres. A “sobrecarga de trabalho para as mulheres”3, cujo símbolo é dado pela imagem do carregar água na cabeça, é um conteúdo recorrente em materiais das organizações do semiárido e na mídia que expressa o peso que o trabalho em torno da água representa para as mulheres sertanejas, transformando-o em um problema social, tanto no sentido do esforço físico e do tempo demasiado que ele demandaria, quanto em termos das possíveis doenças advindas do consumo de água de qualidade imprópria.

O trabalho para conseguir água (já que não existe uma rede pública de abastecimento nas zonas rurais e os rios são escassos e alternantes no semiárido) soma-se aos outros trabalhos domésticos, como a limpeza da casa, as atividades da cozinha e, principalmente, o cuidado das crianças. Assim, ao reconhecer e delimitar essa problemática — a falta de água potável —, o Estado cria grupos sobre os quais seus aparelhos devem agir: as mulheres; as crianças e as famílias sertanejas.

[Figura 3: Página de publicação de uma articulação de movimentos sociais, a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Nesta página, de um material chamado “História de Quintais”, destaco o trecho seguinte: “Num tempo a sina das mulheres era buscar água para toda serventia…”. Fonte: ASA Brasil, 2014]

No desenho do Programa de Cisternas, era visível a construção de uma discursividade ambígua sobre as mulheres sertanejas. Se, por um lado, atestava-se seu papel na gestão cotidiana da água — o que implicava, como diz Soares (2009), reconhecer seu protagonismo estratégico no desenvolvimento social da região —, por outro, assumia-se que esse lugar na estrutura reprodutiva do núcleo doméstico inaugurava outro problema social, pois desdobrava-se em um impeditivo para a emancipação das mesmas e para sua participação na esfera pública e na economia produtiva. O tempo e o trabalho necessários no deslocamento, muitas vezes longo, para acessar água, somado aos demais trabalhos da casa, implicavam uma “sobrecarga”4 para essas mulheres, diminuindo as suas possibilidades de participação ativa em espaços associativos, sindicais e políticos, bem como reduzindo sua disponibilidade para atividades geradoras de renda.

Esse diagnóstico da organização social e familiar do semiárido, que ao mesmo tempo reitera e denuncia o papel reservado às mulheres na domesticidade, leva à instituição de dois critérios articulados ao gênero e à geração no acesso às cisternas. O primeiro privilegia as “famílias chefiadas por mulheres”5, talvez tendo em vista a existência no Nordeste, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD) de 2015, de um total de 40% de lares nos quais as mulheres são as figuras de referência6. Já o segundo refere-se à existência de maior número de filhos de 0 a 6 anos e de crianças e adolescentes frequentando a escola. Sendo assim, é possível perceber que a política social não só reconhece uma realidade concreta, de que a maior parte das famílias sertanejas tem filhos pequenos, como a reitera.

Nessa configuração familiar do programa, composta por marido, esposa e filhos, que aciona o que Fonseca (2002) chama de modelo conjugal, as crianças ganham certo destaque, uma vez que é o número delas que, em tese, enfatiza a necessidade de acesso à política. Em Pires e Jardim (2014), encontramos uma discussão com aportes similares sobre o Programa Bolsa Família, a partir da constatação de que ele reforça e recompensa o esforço infantil de frequentar a escola e que esse mesmo esforço é compreendido como sendo a condicionalidade que garante à família o recebimento dessa renda do governo.

Contudo, apesar de ambas as políticas estipularem condicionalidades aos seus e suas participantes, a forma como as crianças entram em seu desenho é muito distinta. No Programa de Cisternas, a água que ele possibilita não é mais ou menos destinada a elas e o critério do número de filhos e da frequência na escola não é entendido localmente como sendo o responsável pelo recebimento da cisterna, já que a contrapartida principal das famílias é a frequência dos adultos em cursos de capacitação sobre o uso e manejo da água.

Ao incidir sobre os modos de uso da água no cotidiano da vida doméstica, a política parece realizar um dever do Estado de prover saúde e bem-estar a todos os seus cidadãos através da gestão de práticas de cuidado relativas às casas, das quais as mulheres são tidas como as principais responsáveis. E ainda, tendo como critério de acesso a existência de filhos, ela coloca a maternidade como um valor que baliza o merecimento de um bem socialmente escasso e disputado como a cisterna.

Diversos são os trabalhos que têm enfocado essa temática de como uma certa agenda contra a pobreza, gestada a partir de 1990, tem mobilizado o lugar das mães como coadjuvantes no desenvolvimento social, em especial pelo seu papel nos cuidados e na reprodução física e social da família. Segundo Molyneux (2006), essas políticas apresentam ambiguidades, conjugando preocupações e objetivos que passam por um paradigma da civilização e modernização dos pobres, característico de um período das políticas sociais do início do século XX, ao mesmo tempo que apresentam uma nova roupagem neoliberal, enfatizando a necessidade de superar uma dependência em relação ao Estado por meio da formação de sujeitos com capacidades autônomas e valores cidadãos. A partir das ideias de corresponsabilidade, empoderamento e participação, molda-se um conjunto de ações estatais que tem como centro a superação da pobreza e da fome, como o Programa Oportunidades no México, do qual fala a autora e, aqui no Brasil, o Bolsa Família, o Fome Zero e o Programa de Cisternas.

O acionamento da maternidade como um critério do Programa e, em contrapartida, como condição para que seus objetivos sejam cumpridos, tem efeitos que caminham em sentidos opostos. Há quem insista, a exemplo da própria Molyneux (2006) e também de Quijano (2009), que isso tem reforçado certos papéis tradicionais de gênero e certos valores associados ao feminino, como a virtude, o altruísmo e o sacrifício pessoal. As mães, nessas políticas de combate à pobreza, figuram como as protagonistas para o sucesso dos programas, ao passo que a distribuição do trabalho em relação ao cuidado não é desafiada e os homens não são conclamados a tomar parte nessas atividades, o que se desdobra em um novo mecanismo de responsabilização dessas mulheres, agora, com o peso da gestão e do controle do Estado. Por outro lado, pesquisas que tomam como base outros indicadores — como por exemplo o aumento do número de divórcios e de denúncias de violência contra as mulheres entre participantes do Programa Bolsa Família (Rego; Pinzani, 2014) — mostram que o acesso a essa renda monetária fixa, ou a outros bens e direitos sociais, tem um importante papel na geração de mais autonomia para as mulheres.

Contudo, nesses diagnósticos e no impasse em catalogar avanços e retrocessos rumo a uma maior igualdade de gênero, muitas vezes deixa-se de lado um eixo fundamental dessa reflexão, que é o papel e o lugar das crianças e jovens. Figurando normalmente como filhos e filhas, ou seja, numa relação que marca a sua descendência e dependência em relação aos adultos, as crianças normalmente são entendidas e vistas como alvos do cuidado e não como promotoras do mesmo. Ao retornar ao material de campo que dá origem a este artigo, que é parte da minha pesquisa e tese de doutorado em Antropologia Social (Centelhas, 2019), reparei como havia convivido intensamente com as crianças e adolescentes, mesmo a infância e a juventude não sendo meus objetos de pesquisa principais na época. Além disso, por ser mulher, era mais fácil e aceito conversar e estar junto das mulheres, o que me fazia, também, tomar parte das atividades cotidianas de cuidados com as crianças.

Falar de políticas de saúde invariavelmente nos leva à temática do cuidado, entendendo este em sua acepção ampla, que inclui desde práticas e afetividades que garantem a manutenção da vida ao longo das suas diversas etapas, até processos terapêuticos regulados por dispositivos de Estado e parâmetros científicos. O termo cuidado é, portanto, extremamente polissêmico e politizado, uma vez que também está no horizonte de problematizações públicas, como a responsabilização desigual de homens e mulheres pelas tarefas relativas ao mesmo (Fernandes, 2018) e os debates sobre o papel do Estado e das políticas públicas na incidência dos cuidados em torno de grupos sociais como as crianças, idosos e deficientes (Von der Weid, 2018).

Tratando-se de políticas relativas à água e ao seu manejo, a temática do cuidado associa-se a um outro campo específico, que é aquele da higiene. Um breve sobrevoo sobre a historiografia brasileira das práticas sanitárias e daquilo que ficou conhecido como Higienismo nos mostra como a gestão das águas, das suas fontes e a pedagogia em torno do seu uso eram aspectos fundamentais nessa ciência que visava desenvolver corpos saudáveis e aptos ao trabalho no florescer do século XX. Seja por meio da canalização dos rios paulistas (que destituía a população do acesso direto a eles) (Paterniani, 2019), seja por meio da infraestrutura em torno da canalização das águas urbanas (Davis, 2018), o debate acadêmico tem mostrado a centralidade do controle sobre a água nos processos de formação do Estado.

Em um artigo publicado nesta revista, a Equipe Niñez Plural (2019, p. 49) faz um interessante panorama das abordagens teórico-metodológicas sobre infância e cuidado na literatura, reforçando a necessidade de que este tema seja pensado a partir de diversos atravessamentos que o compõem, “[…] percebendo tanto sua sobreposição com os processos socioeconômicos da construção da desigualdade social, como o papel do Estado nas sociedades capitalistas e a enorme diversidade cultural que a atravessa.” Nessa chave, que articula esses processos de Estado com a observação da diversidade cultural, pretendemos explorar mais diretamente, na próxima seção, as distintas concepções de saúde e corpo em tensão na execução dessa política de acesso à água, e como elas mobilizam formas de relação entre as mães e as crianças, baseadas em práticas de cuidado.

1 – A ideia de invenção aqui diz respeito aos mecanismos discursivos a partir dos quais se produzem imagens, sentidos e símbolos sobre um lugar e seu povo, gerando alteridades e efeitos de exotização. Nos inspiramos aqui em Said (1996), bem como em Albuquerque Júnior (2009), que fala especificamente do Nordeste.
2 – As definições de pobreza são distintas e recorrem por vezes a fatores econômicos, como renda per capta, por vezes a aspectos ligados à cidadania, como acesso a serviços e direitos. A depender do seu enquadramento, são propostas formas diferentes de solucioná-la, seja por meio de programas de transferência de renda, seja por políticas que promovam o acesso a serviços públicos básicos. Contudo, a categoria pobreza deve ser olhada com cautela, uma vez que sua naturalização homogeniza um conjunto de pessoas e situações por vezes muito díspares. Para trabalhos que refletem criticamente em torno dessa problemática, ver Marins (2018) e Sprandel (2004).
3 – Inserimos essa expressão entre aspas duplas uma vez que ela constitui um termo do nosso universo de interlocução. Faremos isso com as demais frases de até três linhas e termos que se refiram às falas daqueles e principalmente daquelas com quem conversei e que fizeram parte desta pesquisa.
4 – A ideia de “sobrecarga” refere-se muito mais à linguagem estatal ou à teoria e militância feministas do que às categorias das minhas interlocutoras. Coloco em questão se a tarefa de buscar água, ainda que seja extremamente extenuante, é localmente traduzida nessa chave de esforço excessivo ou indevido.
5 – Fonte: http://mds.gov.br/assuntos/seguranca-alimentar/acesso-a-agua-1/programa-cisternas (Acesso em 15 set. 2017).
6 – Para uma discussão da ideia de “lares chefiados por mulheres” e uma leitura crítica da feminilização da pobreza, ver Macedo (2008).
Marcela Rabello de C. Centelhas marcelarabello91@gmail.com

Mestre e doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil, e pesquisadora vinculada ao Núcleo de Antropologia da Política, da mesma instituição. É professora efetiva de Sociologia do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, Brasil.