Foto: Pxhere

Violência sexual contra crianças e adolescentes: análise das notificações a partir do debate sobre gênero

Introdução

A violência sexual contra crianças e adolescentes é um fenômeno forjado a partir de uma relação de poder autoritária e desigual, tanto em termos de conhecimento, autoridade e experiência, como de recursos e estratégias psíquicas e sociais (Faleiros, 2000). Esta relação de poder ocorre a partir de determinantes fortemente influenciados pela cultura e tempo histórico em que acontecem. Refletem, portanto, concepções construídas pela sociedade acerca da sexualidade humana e a posição delegada à criança em relação ao adulto (Azevedo, 1993). Tal posição é caracterizada por uma lógica cultural que tende a inferiorizar crianças e adolescentes, como seres socialmente inacabados e que precisam, por isso, serem dominados pelos adultos (Marchi, 2011).

No entanto, há de se considerar na dinâmica da violência contra crianças e adolescentes não somente a hierarquia geracional, como também a hierarquia contida na relação entre os sexos, visto que nos encontramos inseridos em uma sociedade cuja transmissão de valores advindos da família, escola, mídia e demais instituições encontra-se fortemente pautada na diferenciação sexual, implicando em formas diferentes de vivenciar situações de violência (Saffioti, 1997).

De acordo com Scott (1995), o termo gênero tem sido empregado, especialmente no âmbito dos Estudos Feministas, para designar o caráter social das distinções baseadas no sexo biológico, caracterizando um elemento de construção das relações sociais entre o masculino e o feminino. Conversando com essa conceituação, Saffioti (2004) define gênero como um marcador histórico e uma categoria analítica, funcionando como um eixo estruturante da sociedade e como mantenedor das relações de poder juntamente à raça e a classe social. Por sua vez, Butler (2003) define o gênero como constituído e constituinte dessa forma primária de significar as relações de poder, onde o sexo inscrito no corpo biológico cria estruturas normativas sobre o mesmo.

Ainda que as definições teóricas do termo gênero sejam diversas, ressalta-se que aquela utilizada neste trabalho inclui as relações entre os sexos e a construção das significações sociais do feminino e do masculino dentro de uma sociedade capitalista, tal como proposto por Scott (1995) e Saffioti (2004). Essas representações sociais organizam a vivência do indivíduo no mundo social, “determinando, ao longo de sua vida, oportunidades, escolhas, trajetórias, vivências, lugares e interesses” (Lavinas, 1997, p. 16). Nesse processo, será incentivado nas meninas o desenvolvimento de comportamentos dóceis e apaziguadores, enquanto meninos serão estimulados às condutas agressivas e perigosas, disparidade que incide na relação existente entre os sexos na infância e na vida adulta (Saffioti, 2004).

O sexismo, como ideologia patriarcal, atinge não somente as mulheres adultas, mas também crianças e adolescentes de ambos os sexos, visto que os mesmos se encontram sobre essa égide da fragilidade e do domínio territorial do homem adulto. Desse modo, a violência praticada contra crianças e adolescentes pode ser pensada no contexto da violência de gênero, pois se pauta em desigualdades biológicas entre adultos e crianças, tanto quanto em desigualdades inscritas entre homens e mulheres, pressuposto confirmado por Saffioti (2004), quando enuncia:

[…] é desde criança que se experimenta a dominação-exploração do patriarca, seja diretamente, seja usando a mulher adulta […] assim, o gênero, a família e o território domiciliar contêm hierarquias, nas quais homens figuram como dominadores-exploradores e as crianças como elementos mais dominados-explorados (Saffioti, 2004, p. 78).

Nesse sentido, de acordo com Gibim (2019), o movimento iniciado a partir dos Estudos Feministas pretendeu incluir a fala daqueles que tiveram seu protagonismo apagado da historicidade da humanidade, assim como os estudos sociais como a Sociologia da Infância demonstraram a emergência da discussão sobre as desigualdades de poder que perpassam as relações entre crianças e adultos como forma de garantir que crianças não sejam excluídas da condição de infância (Marchi; Sarmento, 2017). Assim, é possível estabelecer um paralelo entre a luta das mulheres e das crianças e adolescentes, uma vez que o mote principal se dá pelo direito ao reconhecimento enquanto sujeitos participantes de sua própria história e da história da humanidade.

Dessa forma, se o processo de desvalorização, silenciamento e exclusão da mulher e da criança/adolescente atua sobre a mesma lógica cultural da subordinação e dependência do masculino (Marchi, 2011), e se tal lógica cultural está pautada em uma sociedade adultocêntrica e patriarcal, que privilegia atitudes de desigualdade e opressão, então as condições para o estabelecimento e a continuidade das relações violentas na família e na sociedade como um todo estão satisfeitas, tendendo a sua conseguinte reprodução.

É possível observar as implicações desse enunciado ao analisar os dados sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil e no mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (2014), 25% dos adultos de todo o mundo sofreram abuso sexual na infância. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, um estupro ocorreu a cada 8 minutos no Brasil, sendo que 57,9% dessas vítimas tinham no máximo 13 anos de idade e 85,7% eram do sexo feminino. Entre os 4 estados brasileiros onde a taxa desta violência por 100 mil habitantes é mais alta que a média nacional, o estado do Pará obteve a terceira colocação (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020).

Estudos de Costa et al. (2017), Vieira, De Oliveira e Sókora (2017) e Rocha e Ferreira (2019) também denunciam o agravamento das situações de abuso sexual na região norte, sendo a violência estrutural um importante fator para o surgimento da violência sexual nesse contexto, especialmente entre familiares e conhecidos, o que alerta para a implicação das relações de gênero na configuração da violência que se tece no seu ambiente relacional.

Há mais de duas décadas, Saffioti (1997) afirmava que, a despeito das evidentes diferenças entre as formas de violência que atingem meninos e meninas, a perspectiva de gênero era secundarizada nas análises sobre infância e adolescência no Brasil. Mais recentemente, pesquisas que articulam os conceitos de infância, gênero e violência têm sido produzidas em território nacional (Junior; Toneli; Beiras, 2020; Bonfanti; Gomes, 2019). Entretanto, parte das investigações que utilizam como base de dados as notificações de violência registradas pelos diversos dispositivos de proteção (Paungartner et al., 2020; Oliveira et al., 2016) continuam a filtrar as principais variáveis relacionadas à violência apenas pela faixa etária, tendo como consequência a diluição das importantes diferenças e similaridades entre as violências que atingem meninos e meninas.

Portanto, este trabalho considera a utilização da categoria de gênero como essencial para compreender as imbricadas relações entre conflitos intergeracionais e papéis sexuais, podendo apontar mecanismos de ruptura das hierarquias de gênero e, por conseguinte, da violência cometida com base nessa desigualdade histórica. Assim, o objetivo deste trabalho foi caracterizar a violência sexual cometida contra crianças e adolescentes, notificada pelo setor de saúde no município de Belém-Pará, Brasil, entre os anos de 2014 a 2016, tendo como foco principal a variável sexo da vítima.

Método

Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo, transversal, de cunho quantitativo, realizado a partir da base de dados obtida no banco de registros do Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN), acessada por meio do Departamento de Vigilância em Saúde, Secretaria Municipal de Saúde de Belém. O SINAN abriga informações das Fichas de Notificação de Violência Interpessoal e Autoprovocada, que inclui dados da pessoa atendida, da violência, do provável autor, evolução e encaminhamentos.

A amostra analisada é constituída de informações sobre crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, a partir de notificações registradas no município de Belém-Pará, e que pertencem à faixa etária de 0 a 19 anos, utilizando como referência o recorte de faixa etária do DATASUS.

Inicialmente, foram incluídos todos os registros de violência contra a crianças e adolescentes, notificados entre os anos de 2014 a 2016, sendo excluídos os casos de violência autoprovocada e aqueles sem identificação positiva para a violência sexual. Também foram excluídos os casos que não dispunham de informação sobre sexo e idade da vítima. Posteriormente, foi realizada uma análise das informações adicionais contidas na ficha de notificação, a fim de esclarecer casos que continham informações incongruentes.

Os dados foram sistematizados e analisados pelo programa Microsoft Excell® e a associação de variáveis foi realizada a partir da aplicação de testes não-paramétricos no BioEstat 5.0® (Ayres et al., 2007). Esta pesquisa foi devidamente autorizada pelos órgãos responsáveis e é parte de um projeto de pesquisa maior desenvolvido na universidade de origem.

Resultados

No período de 1o de janeiro de 2014 a 31 de dezembro de 2016, em Belém-PA, foram notificados 4.870 casos de violência contra crianças e adolescentes. A violência sexual concentra o maior número de notificações em todos os anos analisados, estando presente em 75,77% dos casos. Os casos foram notificados majoritariamente pelo Serviço de Atendimento Especializado a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual – PROPAZ Santa Casa, atualmente PARAPAZ (97,5%), o que pode explicar a prevalência de notificações de violência sexual neste recorte.

A análise dos dados da violência sexual segundo sexo e faixa etária da vítima revelou um perfil semelhante nos três anos analisados (χ2= 2.841; p= 0.2416). Do total de 3.690 casos de violência sexual identificados, 84,8% foram praticados contra meninas, com média de idade de 10,15 anos (±4,20), e 15,2% atingiu meninos com média de 8,09 anos (±3,97), diferença estatisticamente confirmada segundo o teste de Mann-Whitney (p<0,0001).

Em todos os anos, foi observado que a faixa etária mais vulnerável à violência sexual para o sexo feminino é de 11 a 14 anos, representando 44,07% do total de violências notificadas para esse grupo. Já no caso do sexo masculino, a faixa etária mais atingida pela violência sexual é de 6 a 10 anos, totalizando 44,21% das notificações de violência sexual contra meninos. A prevalência de casos de violência no sexo feminino pode ser melhor percebida quando se observa que, na amostra, há cerca de 4 vezes mais vítimas do sexo feminino que do masculino, enquanto que na população geral, para essa mesma faixa etária no município de Belém, a razão entre os sexos é de aproximadamente 1:1, segundo dados do censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A análise segundo o sexo da vítima também revelou diferença no perfil do agressor. Em relação ao sexo feminino, 90,6% dos agressores de meninas são homens e, em 5,75% dos casos, o agressor encontrava-se alcoolizado. Já no sexo masculino 91,44% dos agressores de meninos são homens e, em 3,39% das notificações, o agressor encontrava-se alcoolizado, embora em 58,48% dos casos essa informação tenha sido ignorada. Os maiores perpetradores de violência sexual contra meninas, em todas as faixas etárias, são homens conhecidos da família, respondendo pela agressão a 43,34% das vítimas. O padrasto aparece como segundo maior agressor para o sexo feminino, sendo responsável por 14,83% dos casos.

Considerando-se somente os agressores sem vínculo familiar, os desconhecidos são a segunda categoria mais frequente de agressores sexuais de meninas, apontados em 9,68% das notificações. No entanto, na faixa etária de 11 a 14 anos, namorados e cônjuges tomam esta posição, respondendo por 19,07% das agressões para essa faixa etária.

Em relação à violência sexual praticada contra meninos, em 59% dos casos, os agressores são pessoas conhecidas da vítima, sendo a maioria em todas as faixas etárias. Considerando somente o âmbito intrafamiliar, familiares sem vínculo parental apresentam-se como principais agressores, aparecendo em 13,19% do total de casos, incluindo-se aqui avôs, irmãos, primos, tios, tios-avôs e parentes por afinidade.

A partir da análise das informações adicionais contidas nas notificações, em que as mães são registradas como perpetradoras da violência sexual, identificou-se um provável equívoco em seu preenchimento, uma vez que o agressor seria representado por alguém que possui algum tipo de vínculo com a família materna. Em outras situações, o profissional de saúde responsável pelo preenchimento da ficha pode ter interpretado que a mãe teria cometido negligência por não perceber a violência ou por não tomar providências legais, após a revelação do ocorrido.

Para a análise da violência sexual segundo a faixa etária do agressor, foram considerados apenas os dados referentes ao período de junho de 2015 a dezembro de 2016, visto que antes disso a variável que contém esta informação não existia na ficha de notificação. Identificou-se que agressores adultos na faixa de 25 a 59 anos representam 41,49% dos agressores sexuais de meninas, apresentando percentual mais expressivo em todas as faixas etárias, enquanto 13,95% dos agressores eram adolescentes, estando na faixa etária de 10 a 19 anos.

Para vítimas do sexo masculino, 29,82% dos agressores estavam na faixa etária de 25 a 59 anos, enquanto que em 26,67% dos casos, os agressores tinham entre 10 a 19 anos, aparecendo como a segunda maior faixa etária para meninos, com percentual mais significativo que para as meninas, especialmente quando a vítima possuía entre 6 a 10 anos, onde o número de agressores adolescentes ultrapassa o número de agressores que se encontram na idade adulta.

O principal local de ocorrência da violência sexual foi a casa, aparecendo em igual proporção para meninas e meninos, inclusive nas faixas etárias mais altas (79,9%). No entanto, na ficha de notificação, a opção “residência” pode se referir tanto à residência da vítima quanto à residência do agressor, provocando ambivalência neste campo.

Maira de Maria Pires Ferraz mairapferraz@gmail.com

Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. Psicóloga, graduada pela UFPA. Mestranda em Teoria e Pesquisa do Comportamento (PPGTPC-UFPA) e integrante do Laboratório de Ecologia do Desenvolvimento Humano (LED/UFPA).

Milene Maria Xavier Veloso mxveloso@ufpa.br

Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. Doutora em Teoria e Pesquisa do Comportamento e professora associada da UFPA. Atua na investigação de temas relativos à violência contra crianças e adolescentes.

Isabel Rosa Cabral icabral@ufpa.br

Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. Doutora em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil. Professora associada da UFPA, Brasil. Coordenadora do PET-saúde/Saúde da Família (UFPA/Belém). Desenvolve ações de ensino, pesquisa e extensão em Saúde Pública.