Resenha por José Douglas Alves dos Santos
Um exercício de si
“Um exercício de si” e “um jeito de esperar o inesperado” são como Rosana A. Fernandes define Estátuas de nuvens: dicionário de palavras pesquisadas por infâncias, obra organizada por Luciano Bedin da Costa, Larisa da Veiga Vieira Bandeira e Tatiele Mesquita Corrêa, mas escrita por quase 450 estudantes/infantes de todas as idades (dos 2 aos 95 anos de vida) que, conforme os próprios organizadores descrevem, “tornam este dicionário plural, selvagem e indefensável”.
O livro faz parte de uma pesquisa intitulada Dicionário Raciocinado das Licenciaturas, desenvolvida na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FACE/UFRGS), Brasil, contando com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Diante desse exercício de si realizado por todos que colaboraram na construção dos verbetes presentes no dicionário, podemos constatar a capacidade de ver e pensar de outro modo, como descrevera o professor português António Nóvoa (2015) – demonstrando a relevância desse outro ver, desse outro pensar (e também sentir) no contexto da pesquisa escolar-acadêmica.
Ao ter acesso à obra, nos remetemos ao professor colombiano Javier Naranjo e seu trabalho com crianças de 3 a 10 anos de idade, que resultou na publicação de Casa das Estrelas: O Universo Contado Pelas Crianças (2013). No entanto, diferentemente do dicionário organizado por Naranjo, este não se limita aos verbetes criados pelas crianças, mas também pelos jovens, adultos e idosos que compartilham desse sentimento de infância dentro de si – uma vez que ela “não é o mesmo que ser criança, porque sempre há um pouco de criança na gente. Uma pessoa adulta sempre tem um pouquinho da infância” (p. 122), como conta o Coletivo Esperança.
Não é um livro para qualquer um/a porque não foi escrito por qualquer um/uma. Cada um dos sujeitos que deixaram aqui sua marca, individual ou coletivamente, fazem parte de um seleto grupo de pessoas que vivem mais desacomodadas e inconformadas do que acomodadas e convencidas de que o que está aí posto não tem mais jeito e é como deveria ser – como, por exemplo, aceitar a situação educacional, econômica e social de nosso país, de nossa América (não se referindo aqui somente aos Estados Unidos, mas ao continente americano como um todo), de nosso mundo, essa casa que nos habita e com a qual alguns parecem não conseguir habitar (ou não se sentem contentes em “apenas” habitar e compartilhar de suas riquezas e recursos naturais com outras pessoas).
Em suas quase trezentas páginas, vamos tendo acesso a novos significados sobre palavras tão rigidamente conceitualizadas, acadêmica e socialmente falando, o que nos faz remeter também às poesias do escritor mato-grossense Manoel de Barros, que não tinha medo de brincar e (re)inventar palavras e seus significados.
Dentre algumas dessas ressignificações, podemos citar a que o coletivo Clube Secreto das Letras dá à palavra “Adulto”: “É uma criança que já é grande” (p. 32), ou ao que o grupo Devaneios de segunda à noite descreve a respeito de “Amizade”: “A família que a gente escolhe” (p. 35), bem como ao que o MDC da psiquê indica para “Bagunça”: “É aquela coisa extremamente sadia que extravasa, uma coisa necessária e não compreendida” (p. 40). Ao descrever a palavra “Coração”, o coletivo Fomabidanleh diz o seguinte: “É aquela máquina que acha que manda no corpo, mas se despedaça quando outro corpo não aceita seu convite” (p. 56).
Percebemos, por essas definições, que o dicionário é um convite a uma viagem que atravessará nossas memórias, nossas histórias e nossos sentimentos. Um convite para atravessarmos e sermos atravessados pelas palavras e seus novos significados, como o que o Coletivo Esperança traz para “Empatia”: “Significa se colocar no lugar do outro, sentir ao ouvir a história do outro, colocar-se no lugar dele, imaginar como foi essa história, viver junto a emoção que o outro está falando” (p. 77). Também, ao que Psicão apresenta em “Homossexual”: “Uma pessoa corajosa” (p. 119), ou ao que o Coletivo Descendentes nos esclarece em “Noite”: “É quando acende a luz do escuro. Eu gosto de noite porque a gente dorme. A gente sobe na cama e deita e dorme para ficar de dia” (p. 143). Temos ainda o que os Curiosos Escritores afirmam sobre “Solidão”: “Quando alguém perde o pai e a mãe e fica na casa sozinho. É ficar no escuro sem nenhum abraço. Sentar no canto da sala sem nenhum amigo” (p. 201), e ao que a Turma do Aprender destaca ao pensar “Universo”: “É um negócio tipo um céu inteiro que fica fora da Terra segurando com ela o ar” (p. 210), entre tantas outras.
Os verbetes foram produzidos por quinze coletivos que se denominaram da seguinte maneira: Aprendizes da Filosofia – composto por sete integrantes de 23 a 45 anos, sob a orientação da educadora Franciele Santos da Silva, através da Rede Nacional de Aprendizagem, Promoção Social e Integração (Renapsi), que atua como entidade formadora com aprendizes com alguma patologia, psiquiátrica e/ou física; Clube Secreto das Letras & Turma do Aprender – duas turmas (A11 e A21), na faixa etária dos 6 aos 8 anos, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Rincão, situada no bairro Belém Velho em Porto Alegre, tendo como orientador o professor Renato Levin Borges; Coletivo Descendentes – composto por cinco crianças, de 2 a 12 anos, contando com Luciano Bedin da Costa, Larisa da Veiga Vieira Bandeira e Tatiele Mesquita Corrêa como responsáveis; Coletivo Esperança – a turma T1 do Centro Municipal de Educação dos Trabalhadores (CMET) Paulo Freire que, com a professora Bia Guterres e seus dezesseis alunos, de 15 a 95 anos, também contribuiu com a produção de verbetes; Coletivo Litorâneo – que com a professora Larisa da Veiga Vieira Bandeira e seus oito ajudantes, na faixa etária de 5 a 6 anos, conseguiu “nos fazer pensar sobre as coisas de formas inimagináveis” (p. 251); Curiosos Escritores – turma A24, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Afonso Guerreiro Lima, composta por seus dezenove integrantes, de 7 a 9 anos, com o auxílio da professora Camila Prates; Devaneios de Segunda à Noite, FOMABIDANLEH, MDC da Psiquê e Psicão – quatro turmas orientadas pelo professor Luciano Bedin da Costa, na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Estudantes Americanos – turma A32 da Escola Municipal de Ensino Fundamental América, com crianças dos 8 aos 11 anos e sob a responsabilidade da professora Margarida Paula Regina Kraskin de Lima; GAF (Grupo Autônomo de Filosofia) – integrado por estudantes de 16 a 42 anos, com supervisão do professor Jonas Camargo; Inçipientes Docentes – do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS, com infantes de 23 a 40 anos e com a orientação do professor Luciano Bedin da Costa; Laboratório de Filosofia – estudantes do ensino médio do Colégio de Aplicação da UFRGS, com o professor André D. Pares; Ladaia de Monteblack – com jovens da Escola Estadual de Ensino Fundamental Adelaide de Sá Brito, em Montenegro/RS, sob responsabilidade de Joelma de Vargas Borges e Tatiele Mesquita Corrêa; Mãos Amigas & Mãos que Comunicam – integrada por um vasto grupo de crianças do Projeto de Extensão Atelier Pedagógico Bilíngue, da Faculdade de Educação da UFGRS, no Colégio Rainha do Brasil e Escola de Educação Bilíngue para Surdos Frei Pacífico; O Caminhar Guarani – da Escola Estadual de Ensino Fundamental Indígena Karai Nhe e Katu, com quatro integrantes e a orientação do professor Eloir de Olivera; e O Mundo dos Inspiradores – formado por quatro turmas da Escola Municipal de Ensino Fundamental Neusa Goulart Brizola, tendo como responsável a professora Rita de Cássia Nunes Azzolin.
Percebe-se, então, a pluralidade geracional, cultural e social dos sujeitos que ajudaram a construir essa obra que deve ser lida, segundo os organizadores, “da forma que você quiser” (p. 29). Ela está organizada com 650 verbetes, começando com o significado atribuído à sigla “ABNT” (Associação Brasileira de Normas Técnicas) – definido pelo coletivo GAF como “Atitude Burocrática Notavelmente Terrível, Ainda Bem que Não Tem” (p. 31) – e finalizando com o da palavra “Zoológico” – que, segundo o coletivo Inçipientes docentes, refere-se a “Lugar onde vivem os políticos, ou Brasília – só que com mais árvores” (p. 234).
Publicado em 2017, esse livro é um presente para quem busca respirar um ar menos poluído de tanta rigidez acadêmica, de tanta burocratização, de tantas normas e regras sobre as palavras, sobre as pessoas, sobre o que pensamos e como pensamos. Um presente que pode nos tirar “dos eixos”, que pode nos provocar, enquanto estudantes/professores/pesquisadores/pessoas, a rever o mundo com um outro olhar, mais sensível e mais aberto, flexível, gentil, bem como pode nos levar a considerar as palavras em suas inúmeras possibilidades de invenção.
Referências Bibliográficas
COSTA, L. B. da; BANDEIRA, L. da V. V.; CORRÊA, T. M. Estátuas de nuvens: dicionário de palavras pesquisadas por infâncias. Porto Alegre: Sulina, 2017.
NARANJO, J. Casa das estrelas: O universo contado pelas crianças. Rio de Janeiro: Foz, 2013.
NÓVOA, A. Carta a um jovem investigador em educação. Investigar em Educação, n. 3, p. 13-21, 2015.
Palavras-chave: dicionário, educação, infâncias, ressignificação.
Data de recebimento: 30/06/2018
Data de aprovação: 21/07/2018