Resenha por María Celeste Hernández.
Migrar da Bolívia, trabalhar na Argentina. Uma análise dos deslocamentos geográficos e sociais de crianças e adolescentes que foram casos.
Os atores que cruzam as fronteiras nacionais, que constituem o foco deste livro, são adolescentes e crianças. Para quem o são? Esta é uma das perguntas que busca responder o texto. Em que momento? Uma outra pregunta que poderíamos incluir, considerando a temporalidade abordada na obra. Trata-se de um tempo que começa com a vida desses atores na Bolívia e a proposta, decisão ou incentivo de deixar seu país natal para migrar à Argentina. Também o tempo que decorre entre os diversos trabalhos no país de destino e o momento em que, a partir de denúncia, há invasão de domicílio, dá-se fim às condições de exploração de trabalho a que são submetidos e diversas agências intervêm, promovendo, em muitos casos, o retorno ao lugar de origem. Em torno dos deslocamentos geográficos, existem matrizes classificatórias, sociais e jurídicas, que possibilitam ler a problemática a partir de diferentes ângulos. “Analisar o ‘fenômeno’ implica também analisar as formas nas quais ele é pensado em termos institucionais” (Pacecca, 2014, p.13; entre aspas na versão original), afirma a autora, e esse preceito funda sua obra.
Situada na Argentina, María Inés Pacecca compara as migrações inter e extracontinentais ao longo da história e apresenta as dinâmicas populacionais existentes na Bolívia, sua distribuição territorial, assim como a condição de trabalho dos migrantes ao chegarem a seu destino. A dinâmica demográfica se apresenta junto às mudanças nas leis migratórias e as práticas relacionadas, estabelecendo-se a relação entre as características do movimento populacional e seu contexto administrativo e legislativo, aprofundado na abordagem da temática do livro.
O ponto de partida da autora foi a revisão de documentos produzidos no contexto de intervenções do Estado argentino perante situações de abuso ou exploração, nas quais não se cumpriam as leis migratórias e trabalhistas vigentes e que, devido às características dos traslados, foram definidas como “tráfico de menores de idade”. Retomando duas discussões próprias ao campo de pesquisas sobre infância e migração, neste caso também se aborda a construção sociocultural da idade e, em relação a esta, o que se entende por cuidados e quais os limites aceitáveis a respeito do trabalho de crianças e adolescentes. Por outro lado, a autora aborda como a perspectiva promovida pelo Protocolo das Nações Unidas para prevenir, reprimir e sancionar o tráfico de pessoas incidiu nas abordagens e políticas relativas à infância e migração, impossibilitando considerar a agência de menores de 18 anos envolvidos nestes processos migratórios.
Os documentos analisados pela autora são de dois tipos: por um lado, informes de crianças e adolescentes bolivianos assistidos pela Área para a prevenção das piores formas de violação de direitos (‘Secretaría Nacional de Niñez, Adolescencia y Familia’ – SENAF- ‘Ministerio de Desarrollo Social de la Nación Argentina’) e, por outro lado, resoluções judiciais correspondentes a causas da Justiça Federal Argentina. Por suas características, a contextualização destas resoluções no marco normativo que lhes deu origem é muito esclarecedora e demonstra os modos como as trajetórias relatadas são divididas e organizadas a partir de uma determinada chave de leitura na medida em que viram casos.
Em 2008, depois da aprovação da Lei Nacional 26.364 (Prevenção do tráfico de pessoas e assistência a suas vítimas), foram estabelecidos e formalizados os circuitos de intervenção institucional. Estes respondem às solicitações das forças de segurança federais ou à Justiça, entre outras instituções que intervêm frente a supostas situações de tráfico de pessoas. Depois do acompanhamento às vítimas, que oferecem seus depoimentos, produzem-se as intervenções através dos dispositivos de assistência adequados segundo as características de cada caso. Nos casos em que há menores de idade envolvidos, o principal dispositivo utilizado se encontra na SENAF, ainda que, em algumas ocasiões, também intervêm organismos locais que se ocupam da infância.
O livro traz uma coletânea de mais de cem informes iniciais elaborados pela equipe técnica da Área pertencente à SENAF, entre 2008 e 2012, que se complementa com uma seleção de causas judiciais. Os dados revelados permitem à autora realizar uma primeira aproximação a um fenômeno sobre o qual não encontra antecedentes, assim como indagar as múltiplas dimensões associadas à “migração adolescente autônoma”, tal como foi denominado o fenômeno em questão. O que é possível saber a partir desses documentos? O foco está no seu conteúdo. A autora analisa esse conteúdo através da construção de estatísticas, para assim mostrar, distinguindo entre homens e mulheres, qual foi a trajetória prévia à migração destas pessoas, em que situação e contexto se desenvolveu seu processo migratório e o que aconteceu quando chegaram a seu destino. As desigualdades de gênero representadas estatisticamente nos informes (perto de 70% deles se referiam a mulheres), somadas a outros aspectos, como o tipo de trabalho realizado segundo o sexo/gênero, as denúncias de abuso sexual ou estupros a mulheres, fizeram com que o gênero fosse considerado uma variável relevante que modela diferencialmente o processo estudado.
As migrações são caracterizadas a partir de um enfoque que não desconhece as condições de vida na Bolívia. Também leva em conta as relações sociais que, de diferentes maneiras, estiveram envolvidas tanto no traslado, como na atividade de trabalho no lugar de destino (aspectos inseparáveis pelas características desta migração). Quais foram os motivos que levaram estas crianças e adolescentes a migrar? É uma interrogação que instiga a visibilizar as dinâmicas socioculturais que os informes e causas judiciais registraram com os objetivos de intervenção ou julgamento. A autora reconstrói também os contextos familiares dos que migraram, em que as condições de extrema pobreza ou eventos traumáticos, assim como as escassas possibilidades de trabalho na Bolívia, fizeram com que as propostas de emprego na Argentina fossem uma opção a considerar. Aqui se desconsideram a coerção ou o engano como “mecanismos de captação”, e no seu lugar pode-se pensar na agência dos atores, já que a emigração é valorizada como uma alternativa planejada não de maneira individual, mas como projeto familiar.
A oferta de se empregar em empreendimentos produtivos na Argentina provém na maior parte de conterrâneos bolivianos, em muitos casos conhecidos, que já estabeleceram comércio, oficinas de costura ou fazendas na Argentina e precisam de mão-de-obra. Em muitos casos, migrar não significa para as crianças e adolescentes o afastamento da escolaridade nem o começo da vida de trabalho, pois já tinham começado a trabalhar antes de decidirem migrar, o que contribui para que, na perspectiva de alguns adultos, “já não sejam crianças” e compartilhem expectativas em relação a uma precoce autonomia econômica, assim como a prover ajuda familiar. Nesse contexto, a “oportunidade” que se apresenta a crianças, adolescentes e a suas famílias se torna viável. Por outro lado, as ofertas possibilitam ultrapassar três “obstáculos” fundamentais: facilitam o traslado, garantem o trabalho e a moradia no lugar de destino.
Descrevendo diversos aspectos, a autora tece uma trama de fatores, que permite compreender de forma complexa as dinâmicas migratórias dos menores de idade e clareia a figura classificatória que motivou as intervenções. As tensões entre as categorias sociais e jurídicas surgem como foco da análise a partir da preocupação da autora de realizar, através do percurso da pesquisa, propostas para a abordagem de situações de violação da lei e dos direitos destas pessoas na Argentina, onde são tantas vezes exploradas, submetidas a condições de vida alienantes e, inclusive, privadas de sua liberdade. Neste marco, a agência ganha relevância como um desafio institucional ao tornar necessário desenvolver o acompanhamento informado e garantir o respeito à autonomia no atendimento dos casos. Atender às causas e motivos que levam as pessoas a emigrar é fundamental, ainda que dificilmente isso se dê a partir de estratégias que privilegiem combater a exploração no trabalho de migrantes através de campanhas informativas ou da punição daqueles considerados responsáveis.
Migrar, cruzar as fronteiras nacionais, traça uma trajetória tanto geográfica como social. Outros caminhos se abrem na trama institucional quando intervém o Estado argentino, cujas agências classificam e organizam a partir de categorias jurídicas. As idades se desenham em paralelo, e as fronteiras etárias habilitam experiências alternativas de infância, adolescência e juventude, tão desiguais como os direitos a que têm acesso os migrantes.
Nas suas páginas finais, o livro propõe novas interrogações. São perguntas que dão conta de um percurso que retraça as migrações para chegar até seu ponto de partida, perguntas fundadas no conhecimento produzido. Desse conhecimento também fazem parte as leis, as políticas e sua aplicação. Leis e políticas constituem tanto as matrizes que moldam o problema como as ferramentas para abordá-lo. Justamente por sua atenção a cada uma das partes que conformam a problemática que aborda, assim como às crianças e adolescentes, a obra se apresenta como um recurso válido para pensar e repensar estratégias que tornem efetivos os direitos. Em particular, os direitos dos que, como menores de idade, têm uma autonomia jurídica incompleta, ainda que suas ações avancem além das limitações impostas pelos marcos jurídicos, dando lugar a decisões que, como as de todos, devem ser ouvidas. E, a partir deste lado da fronteira, é um possível ponto de partida.
Referências Bibliográficas:
PACECCA, M. I. Trabajo adolescente y migración desde Bolivia a Argentina: entre la
adultez y la explotación. Buenos Aires: CLACSO, 2014.
Palavras-chave: migração, deslocamentos geográficos, trabalho adolescente.
Data de recebimento: 03/08/2015
Data de aceitação: 27/08/2015