Resenha por Irandi Pereira.
A política de direitos da criança e do adolescente no Rio de Janeiro: um olhar a partir da prática conselhista.
A contribuição dos autores é inovadora ao trazer um novo olhar sobre a política de direitos humanos à população infanto-juvenil, tendo como enfoque a prática conselhista por meio do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro. Por prática conselhista, considera-se a ação democrática, participativa e popular, mobilizada pelos conselheiros no espaço institucional público das políticas no Brasil.
O Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente tem como escopo de sua criação o princípio da democracia participativa ou democracia ativa e sua natureza permite o compartilhamento da presença de atores e instituições das esferas pública (governamental) e privada (organização da sociedade civil) numa combinação da democracia representativa com a democracia participativa.
A criação dos Conselhos de Direitos, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990), é uma das possíveis respostas da sociedade brasileira frente ao modelo centralizado de formulação e execução da política pública para a área, presente no Brasil desde os anos 1930, e consolidada pela Política Nacional para o Bem-Estar do Menor (PNBEM) de 1964, perdurando até a edição da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990.
Como bem apontam os autores, Siro Darlan e Luiz Fernando Romão, no capítulo 1, “O surgimento dos Conselhos de Direitos e a mudança de paradigmas”, a propositura desse novo modo de desenhar e gestar a política pública para a criança e o adolescente por meio dos Conselhos de Direitos estava convergente às reivindicações dos movimentos sociais pela democratização da sociedade brasileira diante da ditadura militar, com seus governos autoritários e centralizadores.
Foi nesse período que um amplo leque de movimentos sociais emergiu (nos setores de saúde, educação, saneamento, moradia, carestia, sindical, mulheres). Outros também foram criados, como é o caso do movimento em defesa dos direitos da criança e do adolescente, num rompimento claro com a doutrina da situação irregular adotada pelos Códigos de Menores de 1927 e 1990, em que restavam, à população infanto-juvenil das camadas populares, políticas de segregação, de punição e coerção sob o ideário de uma política de bem-estar social.
No amplo movimento por liberdades democráticas, foi possível perceber que a sociedade civil, alijada dos diferentes espaços de poder e decisão na história da vida brasileira, poderia assumir seu papel de protagonista para o alargamento da ideia de democracia, de participação e mobilização popular. Os autores reconhecem a existência do que se denomina sociedade civil como espaço em que se expressam diferentes interesses e, por isso, pode ser considerada como uma organização complexa, em que diferentes instituições, por meio de seus sujeitos, apresentam suas ideologias na busca da hegemonia e consensos em torno do bem comum.
A nova institucionalidade – Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente – presente nas três esferas da administração pública, numa área delimitada (criança e adolescente) e com seus arranjos institucionais de gestão da política pública (formulação, deliberação, acompanhamento e controle), pode interferir nas decisões do Estado brasileiro sob a ótica da doutrina da proteção integral – um conjunto de direitos para todas as crianças e adolescentes, sem qualquer traço discricionário – na efetivação de políticas públicas de proteção integral. O capítulo 2, que aborda o início das atividades do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro, criado em 1991, exemplifica a crença em todo esse novo arranjo de se fazer a política para a infância e juventude.
Nos diferentes capítulos do livro, a questão das premissas e valores presentes na nova institucionalidade não se traduz de modo tranquilo em favor dos direitos da criança e do adolescente, tendo em vista a complexidade dos temas retratados em cada um deles – a chacina da Candelária, no capítulo 3; as instituições de ações socioeducativas, no capítulo 4; e a posição institucional contrária à redução da maioridade penal, no capítulo 5.
A leitura atenta dos capítulos auxilia no conhecimento da história de descaso no atendimento à infância e adolescência da maioria da população do Rio de Janeiro, e por extensão de todo o território brasileiro, bem como evidencia a necessidade de alteração de conteúdo, método e gestão da ação pública desenvolvida em torno da promoção e defesa dos direitos desse grupo etário.
No que se refere ao tema da redução da idade penal de adolescentes, o capítulo em questão, ao mesmo tempo em que denuncia os diferentes sistemas das políticas públicas no olhar e trato ao adolescente em conflito com a lei, anuncia a continuidade da luta em favor da manutenção da idade mínima de responsabilidade penal aos 18 anos e a necessidade de aprofundamento do debate junto à sociedade. A produção de estudos sobre a presença de adolescentes nas práticas delituosas é fato que não pode ser relegado a segundo plano, considerando a incipiente justificativa que, de modo geral, está presente em diferentes propostas de emenda constitucional apresentadas no parlamento e na difusão dos dados e informações por parte da mídia e redes sociais. O Conselho de Direitos tem essa prerrogativa de propor e exigir das agências de estudos e pesquisas a realização e atualização de estudos e, ao mesmo tempo, lançar editais públicos para esse fim.
É no embate ideológico, na busca de entendimento e consenso, que os conselheiros – atores de um novo tempo de participação popular na gestão de uma política pública – exercitam uma verdadeira democracia política frente ao modelo colocado em prática, como é o caso do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro, tão bem retratado no livro, a partir de uma retrospectiva, mesmo que sintética, de um modelo de política social descolado da realidade da infância e juventude das camadas populares e, em diferentes períodos, considerando os 500 anos da sociedade brasileira.
A título de ilustração, a pesquisa denominada “Os bons conselhos: pesquisa ‘conhecendo a realidade’” (CEATS/FIA, 2007), encomendada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, indicava que apenas 8% dos municípios brasileiros não tinham os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente em atividade. A implantação da nova institucionalidade 25 anos após a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente pode ser creditada aos ativistas pelos direitos humanos infanto-juvenis, que apostaram na possibilidade de uma gestão pública compartilhada e mobilizadora de corações e mentes em torno da gramática de direitos humanos e da possibilidade de controle social das ações públicas. No caso do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro, muitos são os entraves que os conselheiros encontraram nesse novo modo de fazer política, tendo em vista as estruturas oligárquicas e patrimonialistas de poder e o próprio alijamento vivido pela população frente aos diversos momentos e espaços da vida pública e que foram tão bem apresentados pelos autores no livro.
Outros temas mereceram destaque no presente volume, como é o caso da participação do Ministério Público nos Conselhos de Direitos, tema do capítulo 6, e do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, tratado no capítulo 7. A controvérsia sobre a participação de representantes do Ministério Público nos Conselhos de Direitos vem de há tempos no processo de criação desses espaços em diferentes estados e municípios brasileiros. O tratamento dado a esta questão, no livro, é apoiado em matéria que chegou ao Supremo Tribunal Federal, sobre a constitucionalidade ou não dessa participação, considerando as diferentes especificidades de cada órgão, ou mesmo sistema, na condução da política de direitos da criança e do adolescente (Executivo e Justiça). No que se refere ao Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, os autores dedicam todo um capítulo, tendo em vista tratar-se de matéria bastante controversa e que, por isso mesmo, ocupa parte considerável dos trabalhos dos Conselhos dos Direitos. Apresentam definição, estruturação, vinculação, prioridades, destinação e aplicação de recursos. Apontam que o mecanismo “certificado de captação”, previsto pela Resolução nº 137/2010 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), resultou numa das principais controvérsias quando da parametrização sobre a criação e funcionamento dos Fundos. Apresentam a experiência do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDCA) do Rio de Janeiro frente a esta controvérsia pela instituição do mecanismo “Banco de Projetos da Criança e do Adolescente”, aprovado pelo CEDCA, através da Deliberação nº 17/2008.
É importante ressaltar que a presença de autoridades de reconhecimento nacional por suas trajetórias singulares na defesa dos direitos infanto-juvenis, que assinam o prefácio e o posfácio, possibilitou perceber a tessitura firme, ao mesmo tempo flexível, em torno dos diferentes temas trabalhados pelos autores.
Foi a partir da generosidade dos autores em relação a seus críticos e colegas de jornada na defesa da garantia dos direitos da criança e do adolescente que me senti confortável e merecedora da distinção de elaborar a presente resenha e, mais uma vez, lembrar o quanto batalhar pela infância brasileira exige um olhar cristalino sobre o conhecimento e as práticas que, em torno dela, são necessárias.
Em “A história da criança por seu Conselho de Direitos”, o público leitor tem diante de si a possibilidade de redesenhar um novo olhar e trato à garantia dos direitos da criança e do adolescente.
Referências Bibliográficas
CEATS/FIA (Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da Fundação Instituto de Administração). Os bons conselhos: Pesquisa ‘Conhecendo a Realidade’. São Paulo: s/ editora, 2007. Disponível em
OLIVEIRA, S. D. de; ROMÃO, L. F. de F. A história da criança por seu Conselho de Direitos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2015.
Palavras-chave: crianças e adolescentes, política de direitos, Conselho de Direitos.
Data de recebimento: 31/08/2015
Data de aceitação: 09/09/2015