Resenha por Luiza Borges Dulci
Casamento infantil. Violação grave dos direitos humanos das crianças
O casamento infantil corresponde a uniões nas quais um ou ambos os cônjuges são menores de dezoito anos de idade. Na maior parte das vezes, ocorre entre um homem mais velho e uma menina. Este tipo de prática foi tema do estudo Casamento Infantil – Infância roubada por graves violações dos direitos humanos das crianças, de autoria de Luiza Sartori Costa, publicado pela editora Hucitec, em 2019.
Segundo uma das principais fontes consultadas pela autora, a organização Girls not brides, no mundo, a cada ano 12 milhões de mulheres se casam antes de completar 18 anos, o que corresponde a 23 casamentos por minuto – ou quase uma jovem menor de dezoito anos se casando a cada 3 segundos. Segundo a mesma organização, de todas as mulheres vivas atualmente, cerca de 650 milhões se casaram enquanto crianças, ou uma em cada cinco mulheres em todo o mundo. Conforme a mesma organização, se esta tendência não for interrompida, até 2030 mais 150 milhões de meninas devem se casar antes dos dezoito anos (Girls Not Brides, 2018).
Nigéria (76%), República Centro Africana (68%), Chade (67%), Bangladesh (59%) e Burkina Faso, Mali e Sudão do Sul (52%) são os países com as cinco maiores proporções de mulheres com idade entre 20 e 24 anos que se casaram antes de completar 18 anos de idade. Em números absolutos, a Índia ocupa a primeira posição (15,5 milhões), seguida de Bangladesh (4,4 milhões), Nigéria (3,5 milhões), Brasil (3,03 milhões) e Etiópia (1,1 milhões). Para o Brasil, os dados mais recentes, de 2006, indicavam que 36% das mulheres brasileiras, à época entre 20 e 24 anos, se casaram antes da maioridade e 11% se casaram antes dos 15 anos de idade (GIRLS NOT BRIDES, 2018).
Os números denunciam as dimensões do problema no Brasil e no mundo. Conforme o estudo de Costa, tal situação é ainda mais grave em sociedades identificadas como sistemas tradicionais. Segundo a ONU, estas são caracterizadas por “famílias estendidas, famílias comunais, poligamia, exercício autoritário do poder pelo patriarca, casamento com pouca idade, cônjuges escolhidos pelos mais velhos, absorção dos recém-casados a uma casa já formada por outras famílias, sem papel não-doméstico ou identidade para as mulheres” (United Nations Children’s Fund, 2001, p. 6 apud Costa, 2019, p. 89-90).
O estudo de Costa evidencia, contudo, que a visibilidade e a repercussão da questão não são proporcionais à sua ocorrência. No terceiro capítulo do livro – O casamento infantil como grave violação dos direitos humanos das crianças –, a autora analisa fatores que motivam essa prática no mundo e também no Brasil. Mostra que, dentre as motivações mais comuns dos casamentos infantis, encontram-se a pobreza, a busca pela provisão de estabilidade econômica, expectativas de conservar a honra da família e preocupações com a segurança e a saúde das meninas. Nota-se inclusive que muitas famílias acreditam que o casamento seria uma forma de impedir a contaminação de doenças sexualmente transmissíveis, quando, ao contrário, muitas meninas são contaminadas pelos próprios maridos.
No caso dos sistemas tradicionais, a autora identifica a existência de uma lógica singular. Nesses contextos, o casamento infantil se insere no âmbito de estratégias econômicas de sobrevivência para as famílias, que necessitam se livrar dos fardos econômicos, condição com a qual as jovens mulheres são percebidas e associadas. Por um lado, há constrangimentos relativos à inserção subordinada das mulheres no mercado de trabalho que, via de regra, auferem remuneração inferior à dos homens, assim como são proibidas de exercer atividades desempenhadas por eles. Por outro, o costume do pagamento dos dotes por parte das famílias das mulheres reforça sua identificação como fardo. É justamente nesses contextos em que os casamentos infantis podem tomar a forma de estratégias econômicas de sobrevivência.
Costa analisa que, no caso brasileiro, o casamento das meninas não é ritualizado e imposto por motivos religiosos. Porém, as consequências se assemelham àquelas vivenciadas por meninas em outras partes do mundo: gravidez precoce e subsequentes problemas de saúde materna, neonatal e infantil; evasão escolar e redução do nível educacional; limitações à mobilidade, autonomia e independência; e a frequente exposição à violência doméstica.
A análise de Costa se situa no campo das Relações Internacionais e examina a presença – e a ausência – do tema nos acordos internacionais que versam tanto sobre os direitos humanos das crianças, quanto sobre casamentos e casamentos infantis em especial. Seu estudo se dedica, portanto, ao mapeamento do tema no âmbito dos acordos internacionais e à identificação de caminhos e espaços propícios para o enfrentamento da questão.
Sua análise aponta incongruência entre diversos documentos internacionais e tratados que discorrem sobre casamentos de modo geral e sobre casamentos infantis, ao mesmo tempo em que ressalta a “inexistência de uma proibição clara nos tratados internacionais, [os quais] deixam os Estados decidirem sobre questões fundamentais para a erradicação dessa prática” (Costa, 2019, p. 25).
De forma inovadora, o livro então argumenta em favor de normas proibitivas, “com obrigações de caráter positivo e negativo que deverão ser cumpridas pelos Estados” (Costa, 2019, p. 111). Propõe um protocolo adicional à Convenção sobre os Direitos das Crianças que trate especificamente desta matéria. A proposta de Costa está amparada no entendimento de que o casamento infantil não é apenas uma violação dos direitos humanos das crianças, mas uma violação grave desses direitos, reconhecidamente universais, inalienáveis, indivisíveis e interdependentes. A autora mostra, por exemplo, que sua violação contraria diversos artigos da Declaração sobre os Direitos das Crianças, de 1959, e da Convenção sobre os Direitos das Crianças.
Os dois mais importantes documentos internacionais sobre as crianças, a Declaração e a Convenção, são analisados no segundo capítulo do livro – Direitos das crianças: A Convenção sobre os direitos das crianças e outras normas e tratados internacionais. Ao trazer o contexto histórico, Costa analisa tensionamentos envolvidos nos processos de elaboração e aprovação dos documentos pela comunidade internacional.
No que tange à Convenção, o mais importante documento internacional sobre os direitos das crianças, foram dez anos entre o início de sua elaboração e a aprovação final. O documento começou a ser elaborado em 1979, decretado pela ONU como o Ano Internacional das Crianças, e foi finalmente aprovado em 1989. Ao longo da década, posições conflitantes vieram à baila, “marcadas principalmente por diferenças entre visões ocidentais e orientais acerca da infância e pelo contexto da Guerra Fria” (Costa, 2019, p. 23). Felizmente, resultou no “documento internacional sobre direitos humanos com maior aceitação internacional, tendo sido a sua ratificação a mais rápida já verificada dentre os demais documentos que visam assegurar os direitos humanos” (Costa, 2019, p. 61). Foi sancionada por 196 países, sendo a única exceção os Estados Unidos.
Note-se que, nessa mesma época, o Brasil sancionava o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, reconhecendo as crianças como atores sociais e sujeitos de direitos, na esteira das conquistas da Constituição Federal de 1988.
A análise de Costa mostra, no entanto, que a temática do casamento infantil está ausente tanto na Declaração quanto na Convenção. Veio a ser tratada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em duas resoluções específicas sobre Child, early and forced marriage (61/156 e 71/175) somente nos anos de 2014 e 2016, respectivamente.
Posteriormente à publicação do livro – portanto ausente da análise de Costa –, também no Brasil comemoramos uma importante conquista do ano de 2019: a aprovação da Lei 13.811, que alterou o artigo 1.520 do Código Civil brasileiro, proibindo o casamento de pessoas menores de 16 anos. Até então, o Código Civil permitia o casamento, desde que autorizado pelos pais, em caso de gravidez ou para evitar cumprimento de pena criminal. A nova lei, contudo, não revogou alguns dos dispositivos que versam sobre a possibilidade de anulação da união, dentre eles o referente ao casamento decorrente de gravidez ( Licia, 2019).
Conforme nos mostra Costa, as legislações nacionais e internacionais são fundamentais e desempenham funções complementares. Proibições formais são importantes na medida em que um dos desafios ao enfrentamento da questão envolve a percepção do senso comum de que essas são uniões informais e consensuais, portanto, raramente identificadas como um problema social. Com isso, escamoteia-se o caráter de imposição ou falta de opção melhor para as meninas, uma forma de ocultar o abuso e a violência. Ressalta-se, contudo, que o consentimento decorre muitas vezes de uma “expectativa de se conquistar liberdade ao sair da casa dos pais, ambiente muitas vezes marcado por conflito e violências” (Costa, 2019, p. 98). Ao passo que essa espécie de agência feminina evidencia a própria “ausência de qualquer outra opção que apresente às meninas melhores condições de vida” (Costa, 2019, p. 98).
O estudo de Costa nos apresenta, portanto, uma análise profunda do tema e dá ênfase aos tensionamentos que envolvem a questão, seja no âmbito do sistema internacional, seja nos diferentes contextos nacionais e locais. Justamente porque é um fenômeno multifacetado, com causas variadas, seu enfrentamento requer políticas públicas integradas, envolvendo combate à pobreza, educação, saúde, promoção da autonomia das mulheres, dentre outras. Conforme a autora, no âmbito internacional, tais políticas devem se orientar pelas metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Já no plano nacional, a recente aprovação da Lei 13.811/2019 pode ser considerada um avanço, ao mesmo tempo em que reflete o acúmulo do debate público sobre a questão.
Nesse contexto, Casamento Infantil – Infância roubada por graves violações dos direitos humanos das crianças mostra-se ainda mais atual. É leitura recomendada a todas e todos que se interessam pela matéria. Ademais, merece e necessita alcançar outros segmentos e setores sociais. Sua escrita fácil permite que o texto extrapole o campo acadêmico e contribua de forma efetiva no debate sobre os direitos humanos das crianças no Brasil e no mundo.
Referências Bibliográficas
COSTA, L. S. Casamento Infantil – Infância roubada por graves violações dos direitos humanos das crianças. São Paulo: Hucitec, 2019. 152 p.
GIRLS NOT BRIDES. Child marriage around the world. Disponível em:
LICIA, B. Casamento infantil: a Lei 13.811/2019 e seus reflexos jurídicos. Portal JusBrasil, 2019. Disponível em:
Palavras-Chave: crianças, direitos humanos, casamento infantil, acordos internacionais.
Data de recebimento: 02/06/2020
Data de aprovação: 13/06/2020