O governo dos meninos: liberdade tutelada e medidas socioeducativas, de Sara Regina Munhoz.

Resenha por Alexandre Barbosa Pereira

Performances de documentos e assinaturas de recusas na liberdade tutelada

A criança, o jovem e/ou o adolescente no ocidente são alteridades complexas, cuja ideia de imaturidade é o aspecto mais destacado e controverso, conferindo, ao mesmo tempo, marcas de igualdade e diferença, conforme a discussão de Alain Renaut (2002). Trata-se de uma dimensão controversa porque apresenta uma semelhança problemática, de um outro que pode vir a ser um futuro eu. Ou seja, tem-se um outro, mas que é também um idêntico. Esse vir a ser cheio de rupturas e continuidades torna mais complicada a inserção de crianças e jovens na pauta das políticas identitárias de reconhecimento, daí, inclusive, as dificuldades de implantação de uma agenda mais consolidada de direitos. Há de se lembrar que a realização da primeira convenção internacional dos direitos da criança não tem nem 30 anos. Além disso, essa alteridade torna-se ainda mais problemática quando ela é interseccionada com questões de classe e comportamentos considerados desviantes.

O livro, O governo dos meninos: liberdade tutelada e medidas socioeducativas, escrito por Sara Munhoz, traz muitos elementos para uma reflexão mais aprofundada sobre todas essas questões. Elaborado a partir da pesquisa de mestrado realizada entre 2011 e 2013 pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos, apresenta uma etnografia da aplicação das medidas socioeducativas de liberdade assistida para adolescentes que realizaram algum ato infracional. Dividido em quatro capítulos, o texto percorre um espaço específico em que tais medidas são realizadas, descrevendo o trabalho de atendimento das equipes que acolhem os meninos e se encarregam dos registros e documentos que serão apresentados ao judiciário, com a finalidade de traçar a trajetória pregressa e o destino dos atendidos.

O livro de Sara Munhoz nos apresenta detalhadamente as muitas nuances da aplicação de medidas socioeducativas em meio aberto para adolescentes que praticaram algum ato infracional, principalmente a Liberdade Assistida, em instituição específica da cidade de São Paulo: a Obra Social Dom Bosco, em Itaquera. A autora, a partir da atuação dos técnicos dessa organização não governamental, gerenciada pela congregação católica dos Salesianos1, mobiliza, com base na observação do cotidiano de trabalho com os meninos em LA, toda uma teia de relações que tece concepções a respeito do chamado “menor infrator”, mas também do Estado e seu sistema jurídico, bem como das famílias, passando pelos próprios padres salesianos.

Em outras palavras, pode-se dizer, ainda que a autora não aborde diretamente essa questão, que o governo dos meninos trata das muitas percepções sobre infância, adolescência e juventude. Há, por exemplo, as formas de entendimento da própria missão salesiana que toma o trabalho com os jovens como um de seus propósitos principais. Porém, há ainda os pontos de vista de agentes do Estado e do judiciário que, como demonstra a pesquisa, não são conjuntos inteiriços e homogêneos, sendo até mesmo possível prever qual será o resultado das audiências, a depender de quem será o juiz e suas idiossincrasias. Contudo, entre a Obra Social Dom Bosco e o poder judiciário, há muitos outros agentes também importantes: os técnicos – responsáveis diretos pelo atendimento dos meninos em medida socioeducativa na instituição –; os familiares e, embora com pouca presença direta no livro, os próprios adolescentes, que são o objeto dessa teia de poderes.

David Matza (2014), ao discutir a noção de deriva para contrapor-se à ideia de que haveria uma carreira delinquente única e inevitável que levaria à prática de crimes mais graves nos Estados Unidos, defende que a própria ideia de delinquente juvenil é uma construção decorrente do surgimento de um tribunal de justiça de menores e da redação do código dos menores. Ou seja, haveria uma invenção do delinquente juvenil, como ocorrera com certa ideia de infância protegida e destacada do mundo dos adultos, conforme descrito por Philippe Ariès (2006). A pesquisa de Sara nos revela, portanto, como a categoria do menor ou adolescente infrator no Brasil está em constante disputa e redefinição. De tempos em tempos, ela é, inclusive, tomada como bode expiatório das mazelas da violência no Brasil, quando as reivindicações por redução da maioridade penal ganham maior repercussão. Por outro lado, a legislação brasileira sobre crianças e adolescentes, materializada no Estatuto da Criança e do Adolescente, confere-lhes o status de sujeitos de direitos, que devem receber proteção integral, entendendo-os como pessoas ainda em desenvolvimento e, por isso, inimputáveis. Ou seja, a legislação de proteção à criança e ao adolescente, no Brasil, compreende que indivíduos menores de 18 anos de idade ainda não possuiriam um discernimento claro de seus atos.

Em meio a essa controvérsia, a descrição da trama institucional que engendra as medidas socioeducativas em meio aberto é bastante reveladora de como, aos adolescentes pobres, é justamente negada a possibilidade de se constituir como um ser em formação, em fase de aprendizagem e, portanto, passível de cometer erros. Isso porque chama a atenção o fato de que, tanto nas falas e atuações cotidianas dos técnicos, como nas performances e discursos dos juízes nas audiências, há o recorrente apelo a uma busca do desenvolvimento da maturidade nos jovens. O que revela justamente a ambiguidade na relação com a infância e a adolescência no mundo contemporâneo, pois, se por um lado se valoriza certa noção de inocência e a condição de aprendiz, por outro, reclama-se para alguns um desenvolvimento prematuro. Este último ponto é observado tanto entre os que entendem que esta já deveria existir para menores de 18 anos, por isso a defesa da redução da maioridade penal, quanto na própria política de controle dos que cometeram algum ato infracional, cujo objetivo seria fazê-los amadurecer, pelo afastamento de práticas ilícitas e pela inserção regular na escola ou no mundo do trabalho. Destaca-se, evidentemente, a dimensão da intersecção com a classe social, pois, afinal – como demonstrado por uma série de autores que tratam a questão do desvio e da delinquência da perspectiva do interacionismo simbólico (Becker, 2008; Chamblis, 1973) –, enquanto aos que pertencem às camadas sociais mais abastadas há maior condescendência com os erros e mesmo a defesa de certa inocência pueril, para os mais pobres, não somente há menos compreensão, como a punição recairia sobre eles de forma muito mais recorrente e dura.

Jacques Donzelot (1980), em sua abordagem das políticas de governamentalidade e do lugar da família no ocidente, demonstra que, no século XIX, na França, já ocorria esse modo distinto de gestão sobre a criança ou o adolescente a partir da dimensão de classe social. Conforme o autor, à criança de origem burguesa, garantir-se-ia uma liberação protegida, realizada por meio de um cordão sanitário traçado ao seu redor, garantindo-lhe um desenvolvimento discretamente controlado. No entanto, para a criança ou adolescente pobre, o que se tem é a liberdade vigiada, que se manifesta por meio de uma preocupação com a liberdade excessiva, que leva à aplicação de uma técnica pedagógica cujo intuito principal seria o de restringir a ação, daí o encaminhamento para instituições de controle, como são as Fundações Casa em São Paulo, mas também a própria Obra Social Dom Bosco.

Ao se focar nos dispositivos de governamentalidade, a pesquisa de Munhoz não nos traz muito à cena estes últimos, talvez até pela dificuldade de se chegar a eles, dada a condição de liberdade vigiada pelo Estado. Se houvesse de apontar uma fragilidade na etnografia, esta talvez fosse a principal: a pouca presença daqueles que são o objeto da política estudada, reduzindo-nos a possibilidade de vislumbrar algum ato de resistência no horizonte. Contudo, há, no texto, algumas pistas de como esses meninos reagem às tentativas de governá-los. A mais relevante, na verdade, está na recusa deles em aceitar que cumprir a medida socioeducativa seja algo além do que assinar os documentos burocráticos do poder judiciário. Para desespero dos técnicos da instituição encarregada das medidas socioeducativas, os jovens, em sua maioria, recusam as tentativas de governá-los ou de apontar-lhes caminhos para uma outra vida ou para o almejado amadurecimento. Ao reduzirem o entendimento da presença compulsória no núcleo de cumprimento das medidas socioeducativas a uma assinatura obrigatória num documento, que diz mais sobre quem os julga do que sobre eles mesmos, negam os esforços de gestão da instituição sobre eles, como mostra a autora, mas também, pode-se dizer, desacreditam os instrumentos que tentam controlá-los. Desnudam, assim, que o mais importante em todo esse jogo de cena, como demonstrado no livro, é a articulação e fluidez correta dos documentos e procedimentos, que legitimam e ampliam o alcance dos saberes produzidos nesse contexto. Dirigir-se de modo adequado e em conformidade com as aspirações dos juízes, portanto, é mais relevante do que um atendimento adequado aos meninos.

Concomitantemente, a grande força do livro está justamente nessa sua maior preocupação com as tramas institucionais que governam e se aplicam sobre os corpos dos meninos, por meio da qual Munhoz nos traz um pouco de como eles reagem ou até mesmo resistem às tentativas de gerenciá-los, prendê-los ou mesmo fazê-los amadurecer. Assim, ao se focar em quem implementa as medidas de controle e gestão da liberdade desses jovens, ela nos apresenta um rico panorama que, além das ONGs e do poder judiciário, também contempla o complexo trabalho de mediação dos técnicos e a presença, na prática ou nos discursos, da família ou de certas concepções sobre ela. Trata-se, portanto, como descreve o orientador da pesquisa, Jorge Villela, na apresentação do livro, de uma importante etnografia do Estado, que o entende não como uma entidade estável, mas como um conjunto de procedimentos que atuam em consonância ou contradição. O governo dos meninos é, dessa maneira, um livro de leitura fundamental para pesquisadores e profissionais que trabalhem com o tema da infância e da juventude e com a formulação de políticas públicas, pois proporciona um desvio de olhar importante ao se voltar para aqueles que fazem a mediação entre os adolescentes considerados infratores e o poder judiciário.

1 – As salesianas são chamadas instituições, congregações e associações inspiradas na figura de Dom Bosco, sacerdote, educador e escritor italiano do século XIX que desenvolveu um moderno sistema pedagógico conhecido como sistema preventivo para a educação de crianças e jovens e promoveu a construção de obras programas educacionais para a juventude mais necessitada, especialmente na Europa e na América Latina. Fonte: Wikipedia

 

Referências Bibliográficas

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2006.

BECKER, H. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

CHAMBLISS, W. The Saints and Roughnecks. Society, v. 11, n. 1, p. 24-31, nov. 1973.

DONZELOT, J. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.

MUNHOZ, S.R. O governo dos meninos: liberdade tutelada e medidas socioeducativas. São Carlos: Editora UFSCar, 2017.

RENAUT, A. A libertação das crianças. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

Palavras-chave: antropologia, etnografia, medidas socioeducativas, liberdade assistida.

Data de recebimento: 19/02/2018

Data de aprovação: 26/02/2018

Alexandre Barbosa Pereira alebp1979@gmail.com
Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo, Brasil. Doutor em Antropologia Social pela USP. Pesquisador associado ao Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana da USP e ao Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas da UNIFESP.