Resenha por Jaileila de Araújo Menezes
“Você me abala, mas não me anula1!”: Juventude latino-americana, violência e produção artístico-cultural
Em uma das tomadas do documentário “O Rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas”2, podemos observar Recife do alto, repleta de prédios em bairros nobres e centrais, contrastando com moradias empilhadas em morros que circunscrevem a grande periferia da cidade. O documentário data do ano 2000 e dá voz a dois jovens moradores de um dos municípios, à época, mais pobres e violentos da Região Metropolitana do Recife, esquecido pelo Estado e em destaque nos meios de comunicação de massa pelos altos índices de homicídio. Sim, é um documentário sobre violência urbana, comprometido com uma abordagem social das condições que a promovem e de seus impactos na trajetória de vida de milhares de jovens moradores dos bolsões de pobreza que se formam em torno dos grandes centros urbanos. Os dois personagens principais são Helinho, 21 anos, preso e acusado por aproximadamente 70 assassinatos, e Garnizé, 27 anos, líder da banda de Rap “Faces do Subúrbio”, com projeção e reconhecimento nacional e internacional. Mais que marcar a diferença das trajetórias, trata-se de dizer o quanto elas são possibilidades postas em um mesmo território onde há uma tênue fronteira entre vida e morte, e a ação de criar laços entre diferentes atores, instituições sociais e Estado faz-se fundamental para uma potencialização da vida ética-estética e politicamente orientada.
É desse lugar de fala que traço algumas considerações sobre o brilhante livro “’Porque así soy yo’: Identidad, violencias y alternativas sociales entre jóvenes pertenecientes a ‘barrios’ o ‘pandillas’3 em colônias conflictivas de Zapopan”, de Rogelio Marcial Vázquez e Miguel Vizcarra Dávila (Guadalajara: Editora Grafisma, 2014, 209 páginas). Na capa, a imagem de um jovem que bem representa a letra do Rap de Neggro Azteka, “Porque así soy yo”, título da publicação. O livro é composto por prólogo de Carles Feixa – importante pesquisador das culturas juvenis –, introdução, quatro capítulos e conclusão. O projeto de ilustração torna a obra bem diferenciada, com fotografias, gráficos e mapas produzidos pela equipe de pesquisa e que colaboram para aproximar o/a leitor/a dos cenários e cenas políticas da vida cotidiana dos jovens e de suas comunidades. Aliás, os registros fotográficos constituem um capítulo à parte, pois contam a história do processo de pesquisa-intervenção através dos planos de captação de imagem que se sucedem, por vezes se encontram, sobrepõem-se e se complementam, compondo uma rica narrativa textual e visual sobre a juventude ‘pandillera’ da região metropolitana de Guadalajara.
Parte-se de um plano geral, dedicado à apresentação de todo o cenário (capítulo 1 – “Análisis Y Contextualización De La Realidad De Las Juventudes En Pandillas”); ajusta-se a lente para um plano próximo, onde a ênfase recai nos discursos ‘sobre’ o personagem principal (capítulo 2 – “Discursos Sobre El ‘Pandillerismo’: La Mirada Social Sobre El Fenómeno Juvenil”); focaliza-se a expressão do personagem (capítulo III – “El Trabajo Com Los ’Barrios’ Zapopanos”), onde ganha relevo o gênero textual testemunho, através da categoria teórico-analítica experiência, que visibiliza os referentes semióticos dos jovens e colabora para o entendimento dos seus posicionamentos.
Este capítulo cresce aos olhos do leitor pela riqueza de detalhes da vida dos ‘pandilleros’, pelo trabalho de (re)conhecimento de suas matrizes culturais, pela relação arte-política, que ganha densidade no formato da pesquisa-intervenção via produção e qualificação artístico-cultural dos jovens. As práticas e trocas educativas ocorridas nas oficinas colaboraram para a vocalização das demandas políticas dos ‘pandilleiros’ e de suas comunidades, os eventos culturais organizados pela equipe de pesquisa em parceria com a prefeitura local e a comunidade mostraram-se fundamentais para a experimentação por parte dos jovens de outras formas de estarem juntos, para além dos ‘rolés’ cotidianos com seus pares ou das brigas entre grupos rivais.
O diferencial do trabalho ora apresentado é o jogo entre primeiro plano e plano geral em meio à tensão produtiva da micro e macroanálise. O capítulo 4 (“Identidad Y Violencias Sociales”) aborda aspectos relativos a uma ordem internacional global que divide o mundo, as riquezas, estrutura sistemas de opressão que desqualificam povos, nações, estabelecendo uma linha bem visível entre aqueles que devem viver e os outros que o Estado ou a máquina imperial (Hardt; Negri, 2001) vai deixar morrer.
Em um estilo politicamente engajado de pesquisas sobre e com jovens, Rogelio Marcial e Miguel Vizcarra saem do lugar comum da tematização de dar voz a esses atores sociais e buscam estabelecer as relações entre os discursos institucionais e sociais sobre culturas juvenis de gangue e seus efeitos de poder na forma-sujeito jovem ‘pandillero’, problematizando os ecos dessa condição na ordem global. Quais as possibilidades de escuta/mudança na condição de vida (im)posta aos jovens latino-americanos que buscam na imigração ilegal para os Estados Unidos ou na adesão ao narcomundo oportunidades de sobrevivência?
2 – Documentário de Marcelo Luna e Paulo Caldas (Brasil, 2000). Alma sebosa – regionalismo, expressão utilizada no Nordeste do Brasil para dizer de alguém que não presta, que faz mal à comunidade e, portanto, merece ser eliminado. A expressão remete a códigos próprios de resolução de conflitos em lugares onde a violência não encontra mediação.
3 – Ao longo do texto, manteremos a referência aos termos êmicos ‘barrios’ ou ‘pandillas’, que caracterizam um tipo de associação entre jovens pautada na constituição de identidade de grupo em torno de práticas culturais de demarcação de território, uso da violência para resolução de conflitos entre grupos rivais, envolvimento em práticas criminosas e atividades consideradas ilegais. Remete aos estudos sobre gangues de jovens.