Em uma sociedade que se quer democrática, a participação de todos e todas não é somente desejável como fundamental. No entanto, alguns segmentos sociais, como o das crianças, ainda se encontram alijados de seus direitos políticos. É quase um truísmo dizer que não se espera que as crianças possam participar plenamente da vida política, já que, assim se pensa, elas não dispõem das condições psicológicas e morais para esse exercício. Afinal, como afirma um dos renomados filósofos da política moderna, John Rawls, a cidadania política implica na possibilidade de autonomia, ou seja, de poder expressar livre e autonomamente como e porquê se escolhe e se vota (Rawls, 1993). No entanto, esta tese tem sido questionada. Wall (2011) argumenta que só com mudanças a respeito de como se pensam a democracia e a representação, que práticas mais democráticas – como a do voto das crianças – poderão ser instituídas permitindo que as crianças possam expressar publicamente suas diferenças em relação aos outros. Wall diz que nenhum governo que responde apenas para uma porcentagem pequena de seus cidadãos pode ser considerado democrático.
Muitas sociedades modernas continuam desprezando as crianças como cidadãos de segunda classe cujo poder de denunciar e influenciar aqueles mesmos processos que as oprimem e as violentam se torna pífio. Assim, as crianças dependem daqueles que advogam e podem representar suas causas na esfera pública. Neste sentido, ser criança parece consistir em uma significativa desvantagem política, principalmente quando se provém das classes desfavorecidas, se é menina e de raça negra ou indígena.
Os artigos desta 20a edição nos oferecem perspectivas diversas de abordar e pensar a questão da expansão democrática a partir da experiência singular de crianças e jovens. Orellana expõe a dramaticidade de uma infância sob ameaça em El Salvador, submetida a violência multiforme de sua aniquilação, exploração e expulsão. Esta forma cruel de desprezo e indiferença da sociedade de adultos clama por denúncia e investigação: a que se deve? Como e por que ocorre? Cynthia Miranda e Ana Lobato narram a experiência de institucionalizar, junto ao governo federal brasileiro, a pauta das mulheres jovens, processo ainda não consolidado que necessita ainda de muitos outros esforços militantes para poder impactar as políticas destinadas a este segmento. E finalmente, Raimundo Torres e Colaboradoras enfocam a perspectiva de tornar visível a expressão das crianças no interior do Brasil: ao praticar a experiência de reescrever e contar histórias, os laços sociais entre adultos e crianças são reinventados e, desta forma, se renovam as possibilidades democráticas do viver e aprender juntos. Ainda, olhando como as crianças participam dos territórios e movimentos de lutas, o Espaço Aberto traz a entrevista conduzida por Beatriz Corsino a duas pesquisadoras, uma brasileira, Marcia Gobbi, e outra argentina, Paula Shabel, sobre a experiência das crianças na participação política – não aquela dos partidos, mas da participação nos espaços de luta por moradia. É quando as crianças também se propõem, não somente a se somar à luta de suas famílias, mas também a conquistar seus próprios espaços de brincar e se encontrar nas ocupações em que vivem.
Finalmente, trazemos aos leitores as resenhas de duas importantes obras – Biografías callejeras. Cursos de vida de jóvenes en condiciones de desigualdad, de Maria Florencia Gentile e Estátuas de nuvens: dicionário de palavras pesquisadas por infâncias, organizada por Luciano Costa, Larisa Bandeira e Tatiele Corrêa – resenhadas por Maria Celeste Hernández e José Douglas dos Santos, respectivamente. Trazemos também o levantamento bibliográfico das recentes publicações em livros sobre infância e/ou juventude lançadas por editoras da América Latina. Esperamos que a leitura desta edição seja proveitosa e interessante!
Lucia Rabello de Castro
Editora Chefe
Referências Bibliográficas
Rawls, J. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1993.
Wall, J. Can democracy represent children? Toward a politics of difference. Childhood, v.19, n.1, 86-100, 2011.