Algumas narrativas acerca da migração
A partir dos trabalhos de campo realizados nos dois estudos inicialmente mencionados, devo indicar que existem elementos comuns nos relatos deixados pelos entrevistados. É muito provável, e talvez certo, que os testemunhos dos jovens se encontrem influenciados pelas retóricas familiares. No entanto, isso não diminui a importância do que foi expresso pelos jovens e, pelo contrário, nos mostra as estratégias empregadas pelos familiares para conter ou ao menos justificar as ausências de seres queridos.
A) Superação econômica. É recorrente escutar que uma das principais razões pelas quais os adultos migram é a superação econômica. Considera-se que a diversificação da oferta de trabalho nos países de destino é maior do que no país de origem. Por isso, os equatorianos veem a migração como um instrumento que facilita a chegada a um horizonte no qual podem alcançar tudo o que desejam e concebem. Esta possibilidade de alcançar o progresso se encontra em estreita relação com a superação econômica familiar e a aquisição de bens materiais aos quais antes não tinham acesso: “…desde que o meu pai saiu do país, nós temos mais coisas, por exemplo, antes eu não tinha computador e agora já tenho… eu posso fazer as tarefas escolares e inclusive posso comprar materiais solicitados pelo colégio” (Adolescente, mulher, 14 anos).
É constante encontrar nos testemunhos dos jovens relatos que consideram que o “sacrifício de migrar” por parte dos pais permitiu satisfazer necessidades de todo o tipo, no entanto, o relato proporcionado enfatiza os benefícios escolares que as remessas feitas pelos pais migrantes propiciam. É possível que, no espaço privado das famílias e dos familiares pelos quais são responsáveis, sejam reforçadas afirmações como: “… o teu pai se foi pra te dar uma vida melhor e você deve aproveitar estudando, ele manda dinheiro para os estudos e você deve aproveitar” (Adolescente, homem, 14 anos).
B) A fuga dos conflitos conjugais. Considera-se que a migração é um fenômeno que provoca a ruptura familiar e a separação do casal, mas esta afirmação cai por terra quando, no campo dos fatos, encontramos que a ruptura do casal tem origem antes de tomar a decisão de migrar, e que esta iniciativa é a “cortina de fumaça” que se usa para explicar para os filho/as a saída da casa de um dos pais:
Na minha casa, o meu pai sempre brigava com a minha mãe, mas desde que o meu pai foi para os Estados Unidos está tudo bem e eu já não escuto gritos todos os dias e a minha vida é mais tranquila, eu até posso conversar com a minha mãe (Adolescente, mulher, 16 anos).
As fugas dos pais é um tema recorrente nos testemunhos das e dos adolescentes, geralmente, a fuga materna se deve à fuga dos maus-tratos dos quais são vítimas por parte do seu companheiro, assim se oculta a verdadeira intenção de pôr fim a uma relação nociva e violenta, relação que em mais de uma ocasião é escondida das crianças e dos adolescentes.
C) Estabilidade familiar. Chama a atenção o discurso que utilizam os pais e os familiares diante dos filhos e filhas deixados no país de origem: “a minha mãe está na Espanha faz 7 anos, a vovó diz que ela já vai voltar, que ela teve que viajar pra me dar estabilidade e para eu ter um futuro melhor” (menina, 9 anos).
Chama especialmente a atenção o fato de os adultos tentarem garantir o futuro de uma criança ou de um adolescente sem oferecer o suporte afetivo-presencial necessário no presente. É importante recordar que a família é um produto sócio-cultural e, portanto, é quem está encarregada de transmitir às novas gerações os traços mais importantes da vida social e, claro, os valores.
Apesar de, na maioria dos casos, os filhos e as filhas de migrantes ficarem sob o cuidado de familiares próximos, que assumem a responsabilidade delegada pelos progenitores e são os encarregados de velar pelo bem-estar das crianças e dos adolescentes, eles reclamam a presença e o cuidado dos progenitores. A ausência materna e/ou paterna não é substituída por nenhuma outra figura filial:
Se a minha mãe estivesse comigo e com a minha irmã, nós seríamos felizes, é verdade que a nossa avó cuida da gente e ama a gente, mas nós sentimos muito a falta dela e procuramos sempre conversar com ela, mas ela trabalha muito e só pode conversar com a gente no domingo (Adolescente, homem, 14 anos).
Em suma, a história das migrações no Equador é um tema que remonta a décadas do século XX. No entanto, a última debandada de migrantes, produzida no fim dos anos 90, constituiu a ruptura familiar de maior relevância, ou seja, as transformações familiares produzidas durante esses anos se mantêm e as crianças e os adolescentes daquela época agora são adultos, adultos que cresceram sem consolidar o ansiado retorno dos pais.
Reflexões finais
Como uma primeira reflexão, podemos afirmar que a migração é um fenômeno que permanece vigente nos lares equatorianos, por razões econômicas ou filiais, já que, desde a última diáspora migratória, aquelas crianças, filhos de pais migrantes, atualmente alcançaram a idade adulta e em muitos casos já se converteram em pais, reproduzindo a lógica do bem-estar aprendida, com prioridade no aspecto econômico. Portanto, agora, existem pais que, ainda que vivam no país, dedicam a maior parte do tempo ao trabalho, provocando um desamparo simbólico nos lares atuais; porque apesar de eles se encontrarem próximos dos filhos, na maioria dos casos os filhos se encontram sob os cuidados de centros educativos. Tal situação gera novas rupturas familiares que, embora sejam diferentes das produzidas pela migração, no balanço final provocam consequências similares.
Produto da migração e do desamparo social, existem altos níveis de violência intra-escolar, assim como problemas de aprendizagem e de estabilidade emocional tanto em crianças quanto em adolescentes, devido a uma frágil figura adulta de referência que lhes dedique atenção, tempo e segurança emocional.
Os espaços de escolaridade são os que servem de referente social para as crianças e os adolescentes. Portanto, surgem novas necessidades escolares a partir das demandas dos pais de família, que exigem atividades extracurriculares e oficinas educativas para guiar e “mitigar” de algum modo as solidões que as crianças e os adolescentes vivem, assim como o tempo livre nas tardes e nos fins de semana em que os pais estão ausentes física ou simbolicamente.
A migração permitiu que os padrões econômicos de bem-estar aumentassem nos lares equatorianos e que se priorizasse objetos e atividades que a globalização demanda, como o uso de smartphones, tanto para os adultos, quanto para os adolescentes, e os tablets para os mais pequenos e, com isso, o uso de dados móveis, o que produziu novas lógicas de socialização na sociedade.
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Resumo
O processo migratório tem sido uma atividade constante para o ser humano desde o início, em nível global, e as razões pelas quais se toma a decisão de migrar respondem às necessidades de sobrevivência ao longo da história. No caso latino-americano e, particularmente, no do território equatoriano, a crise econômica e a instabilidade política levaram ao crescimento do desemprego e à instabilidade social. A referida migração foi realizada em condições de ilegalidade e por meio de grandes dívidas com pessoas ou entidades ilegais, que impunham juros elevados e, portanto, tais dívidas deveriam ser pagas o mais rápido possível. Para isso, aqueles que migravam tinham de enfrentar condições de vida quase sub-humanas, com o objetivo de economizar e poder enviar as remessas necessárias para o pagamento dos seus bens. Tal situação colocou quem migrava em posição heroica dentro do círculo familiar e da sociedade como um todo, porque, devido às remessas que chegavam ao país, e à dolarização, a economia conseguiu se estabilizar em nível nacional, aumentando a circulação do dinheiro e, com isso, o acesso a bens e serviços que anos antes não estavam ao alcance da população em geral, devido aos altos custos de aquisição. Neste contexto, a ausência de pais e/ou mães estava justificada dentro do entorno familiar, recebendo carta branca em benefício de maiores acessos econômicos e práticas sociais diferentes das práticas dos progenitores.
Palavras chave: migração, jovens, família, crianças.
Data de recebimento: 27/09/2019
Data de aceite: 05/12/2019
Children in the migratory process: a current reality
Abstract
The migratory process has been a constant activity for human beings since its dawn, at a global scale, and the reasons for the decision to migrate are related to survival needs throughout history. In the case of Latin America, and particularly in the equatorian territory, the economic crisis and the political instability led to the growth of unemployment and social instability. This migration occurs in ilegal conditions and through great debts to ilegal individuals or entities, who impose elevated interest rates, meaning that such debts must be paid off as soon as possible. In order to do so, those who migrate have to face nearly subhuman standards of living, with the intent of saving up and sending off the necessary transfers for the payments of their assets. This situation put those who migrate at a heroic position within their own families, and within society as a whole, because the money transfers that came into the country and dollarization caused the economy to stabilize at a national level, increasing the circulation of money and with it the access to goods and services that years before weren’t at the reach of the general population due to its high costs. In this context, the absence of parents was justified within the family, receiving a carte blanche in the face of benefits such as a wider economic access and different social practices than the previous generation.
Keywords: migration, young people, family, children.