A vida nas ruas: encontros e desencontros com as políticas públicas
Numa terça-feira à tarde, ‒ como o habitual ‒ a equipe técnica do CAPSij-Sé realizava o trabalho de ‘CAPS na Rua’ […]. Desta vez ela circulava no bairro da Luz, pelas imediações da Praça Júlio Prestes, região também conhecida por Cracolândia. A equipe também cria seu circuito e produz sua própria trajetória dentro dos territórios, boa parte em função dos meninos e meninas em situação de rua. No dia em questão, a equipe já estava quase por terminar sua tarde no território quando descia a Avenida Duque de Caxias, em direção à Sala São Paulo [sala de concertos, frequentada pela elite paulistana]. De repente, os dois técnicos [enfermeira e oficineiro] avistaram um menino sozinho à frente de um bar – na mesma calçada. Pequeno e delgado, ele estava sentado com as pernas cruzadas, sereno, de costas para a porta do tal estabelecimento e de frente para rua – numa determinada posição que não comprometia a circulação dos clientes e também se fazia visto pelos transeuntes. Vestido com uma camisa do Flamengo – um tanto usada e pouco maior do que seu tamanho exigira−, bermuda de Tactel cinza, descalço, com os pés sujos e desgastados, a ponta dos cabelos amarela contrastava com o restante de sua figura, principalmente com a negritude de sua pele. Em sua frente, próximo aos seus pés, havia um copo plástico transparente, de 300 ml, que permitia constatar algumas moedas, não mais do que cinco. A equipe ficou demasiada contente por vê-lo, esse contentamento se devia à possibilidade de colher informações sobre o dia anterior, quando o menino, encaminhado a um serviço de abrigamento da assistência social (SAICA), evadiu-se prestes a chegar ao seu destino.
Na primeira tentativa de diálogo, logo após os cumprimentos iniciais, ele disse que não poderia ser atendido naquele momento, pois estava esmolando. Portanto, a conversa teria de ficar para um momento posterior. Não satisfeita com a resposta e a impossibilidade de dar continuidade ao atendimento, a equipe do CAPSij perguntou se poderia voltar algum tempo depois, e o menino disse que sim. Minutos depois, quando a equipe já estava pronta para se retirar do território, passou no mesmo ponto a fim de encontrá-lo, mas ele não estava mais lá. Este é Moacyr (diário campo, 20/03/2018).
A cena acima é corriqueira para as equipes que trabalham com essas pessoas, pois, no dia a dia, a constituição dos atendimentos se faz com dificuldade, considerando que a criança está nas cenas de uso – inclusive muitas delas se recusam a tal tarefa por acharem desrespeitoso para com o profissional; se a criança está pedindo dinheiro, também é custoso porque está em hora de “trabalho”; se ela está acompanhada de adultos, geralmente não deixam a equipe se aproximar, por inúmeras questões, principalmente por medo de que ela produza alguma denúncia que se volte contra eles, ou também por atrapalhar atividades que fomentam e envolvem o comércio varejista de drogas. Então, a equipe do CAPSij peleja por uma brecha, geralmente estreita e pontual, senão, ela também corre o risco de sucumbir ao engodo de uma circulação autocentrada e, por sua vez, ineficaz. Mas, para encontrar uma fenda, é preciso conhecer a circulação e a cultura singular da rua (Mafiltano, 2008), dotada de uma série de hábitos e comportamentos, improvisos, fugacidades, em meio à pobreza, violações de direitos, violências e exclusões.
Vejamos a forma “bando” e como as crianças “habitam” as ruas de modo a “fazer dela sua morada” (Meunier, 1978, p. 19). Meunier (1978) analisa, nos anos 1970, a constituição do modo de vida de um grupo de crianças e adolescentes que vive nas ruas de Bogotá, destacando sua formação grupal, a “gallada”, e os modos de habitar as ruas numa prática de liberdade, inventando trajetos que escapam à pobreza e aos controles citadinos. Seus “sinais de astúcia e violência” (p. 65) com e contra a sociedade se tornam denúncia da maneira com que são tratados. Dizem aos adultos e ao mundo todo que “a criança morre em vós e por vossas mãos. Olhai para vós mesmos.” (Meunier, 1978, p. 66, grifo do autor).
Se os meninos de Bogotá circulam com certa liberdade e descompromisso, norteando-se mais pela aventura do que pela tutela, os daqui devem enfrentar os domínios dos “pais de rua”, que mantêm meninos e meninas num regime de vida próximo ao de escravidão, operando de forma a explorar as crianças tanto economicamente, pela mendicância ou venda de drogas, quanto sexualmente. Além disso, o “pai de rua” abriga as crianças em sua própria casa, onde também retém os documentos de cada uma, consolidando esse regime de vida assujeitada:
Com Moacyr não foi diferente, o menino já foi angariado por este ‘pai de rua’ logo quando passou a morar na rua com maior efetividade. O menino começou a frequentar as imediações da Praça da Sé como um primeiro lugar a ser habitado; esse território é conhecido pelos moradores de rua como um local de refúgio, principalmente pelas crianças (Gregori, 2000). Moacyr passou a fazer parte do grupo de crianças exploradas por esse tal “pai de rua”; no entanto, sua mãe – também em situação de rua ‒ estava morando nas proximidades. Assim que ela tomou conhecimento da situação, foi reclamar com o explorador: o resultado desse confronto foi a expulsão de Moacyr do grupo. Depois desse acontecido, o menino teve de escolher outro lugar para morar (diário de campo, 18/05).
O bando de meninos e meninas vive nas imediações da Praça da Sé, porém, à noite, eles procuram por “mocós”, lugares que funcionam como uma “casa”, um repouso. Assim, quando não se deseja ir ao abrigo ou se consegue escapar do “pai de rua”, eles procuram por um lugar minimamente seguro para pernoitar:
Qualquer pessoa, se reparar bem, pode ver que debaixo das pontes tem às vezes buracos feitos pelos ratos. A gente só ia lá e terminava o trabalho: aumentava o buraco, do tamanho pra gente caber. Era só pegar um papelão e forrar o chão, porque é tudo de areia debaixo da ponte, na parte que ela já está no chão. Assim a gente fazia o nosso mocó (Ortiz, 2010, p. 64).
Então, há em algumas paradas aspectos que transcendem a sobrevivência, por exemplo, a relação que se tem com o “mocó” ou com os próprios pertences. Depois do “ganha-pão”, vai-se à casa, mesmo que seja do “pai de rua” ou na calçada do próprio ponto de trabalho, e lá é mais um espaço “entre”, um vão; porém, nem por isso não deve ser compreendida como casa. Como no caso de Moacyr, que “[…] mora na mesma calçada em que trabalha: quarteirões próximos à Avenida Rio Branco reside um dos pontos de trabalho – o bar; quarteirões adjacentes à Rua Mauá fica a sua casa – em frente à loja Zapata” (diário de campo, 23/03).
A alternância entre Casa e Rua, que muitas vezes revela qualidades sobre velocidade e repouso, também informa sobre os diferentes itinerários que essas crianças traçam, dentro e fora da cidade, sempre em circulação, o que culmina na questão: “para onde vão essas crianças migradoras? A lugar nenhum. Vão, simplesmente” (Meunier, 1978, p. 50), numa espécie de uso empírico da cidade, guiando-se por afecções (Deleuze, 2012). O “pai de rua” controla, explora, vigia, mas, no momento em que se vai à procura de comida ou angariar dinheiro, por exemplo, apresenta-se a possibilidade de nomadizar (Deleuze; Guattari, 2012), e o bando da Sé faz uso de suas margens de liberdade no decorrer do dia:
Quanto ao bando da Sé, pode-se dizer que eles não têm uma rotina fixa, mas todos os dias têm de procurar por comida, água, algum logradouro para se limparem: isso não comporia uma rotina? Eles têm um traçado claro: dormem entremeados às colunas do viaduto 23 de maio, lá é seguro, coberto e se mantém clandestinos – inclusive dos “pais de rua”. Quando saem desse mocó, vão às redondezas da Praça da Sé; lá, a comida e o dinheiro são mais abundantes. Enfim, essa é a rotina deles, o que lhes falta? (diário de campo, 20/03/2018).
Em parte, devido a esse modo de vida, essas crianças representam “um desafio à burguesia” (Meunier, 1978, p. 51), considerando que elas não vão à escola, não têm residência fixa, devem grande parte de sua sobrevivência a pequenos furtos, trabalhos informais, enfim, essa vida desmedida, evidentemente, representa um incômodo aos poderes vigentes. Do mesmo modo, no Brasil, esse incessante trânsito entre abrigamento institucional e rua também acabou por produzir um circuito com velocidades e lentidões próprios (Rui; Mallart, 2015). Tanto nas redondezas da Praça da Sé quanto nas fronteiras da Cracolândia, há um enorme esforço por parte do tecido social para que se regulem os fluxos dos transeuntes, principalmente daqueles que se encontram em situação de rua – sobretudo crianças e adolescentes. Isso fez com que a segregação espacial ganhasse proporções substanciais, operando de forma austera com o objetivo de tornar o espaço hermético, higiênico e livre dos “indesejáveis”.
Um exemplo de espaço que passou a ter forças gravitacionais próprias em decorrência de diversas intervenções da urbe foi a Cracolândia (Nasser, 2017; Raupp; Adorno, 2011; Rui, 2014), assim batizada para circunscrever, estigmatizando, a população em situação de rua que faz uso de drogas em seu cotidiano. Aos poucos, ver-se-á que a geometria da região passou a ter funcionamento e ritmo próprios, alinhados às exigências de segregação espacial e circuitos institucionais da cidade, principalmente devido ao uso de crack (Frúgoli Jr.; Sklair, 2009; Nasser, 2017; Rui, 2014; Rui; Malart, 2015; Raupp; Adorno, 2011).
Quando se trata das crianças da Cracolândia, a dinâmica atual é bastante diferente do que aquela relatada pela literatura (Ferreira, 1979; Gregori, 2000; Meunier, 1978; Ortiz, 2010; Rosemberg, 1994). Nesse território, as crianças vivem geralmente sozinhas. Não se veem grupos de crianças em meio aos adultos, elas ficam solitárias ou em pequenos grupos de adultos, mas sem constância. Também demonstram ter grande independência em relação ao mundo adulto. Tanto é que realizam pequenos trabalhos no comércio varejista de drogas, mas, segundo as equipes do CAPSij e do SEAS, são atividades esporádicas e que não necessariamente remetem a um vínculo.
O menino Moacyr é conhecido da miniequipe desse SEAS, que trabalha com crianças e adolescentes; desde que ele chegou à Cracolândia, é atendido por esse serviço:
A equipe conta que o menino, na maior parte do tempo, foi criado pela avó, Cláudia, e pela mãe, Iracema. Sua mãe desde cedo ensinou-o a esmolar, os dois saíam pela cidade pedindo dinheiro, com o passar do tempo, ela começou a explorá-lo e exigia alguma quantia de dinheiro ao final de cada volta da rua […]. Nesse período, Iracema intensificou o uso de drogas – principalmente de crack − e passou a se relacionar com um rapaz que também faz usos intensos de diversas drogas, essa dinâmica fez com que o casal fosse morar na Cracolândia. Quando Moacyr recebeu essa notícia, ficou revoltado e foi procurar sua mãe, seu objetivo era claro: encontrá-la e pedir para ela voltar para casa, pois ele não queria uma mãe “nóia”. De fato, esse encontro aconteceu, mas o resultado não foi o esperado, Iracema disse ao filho que não mudaria de vida, em contrapartida, Moacyr retrucou, alegando que se ela não voltasse para a casa deles, ele fugiria de casa. E foi o que aconteceu, ele sustentou a sua fala, assim como sua mãe, que permaneceu na Cracolândia, e ele [agora com 10 anos], doravante na rua, aos sete anos (diário de campo, 18/05/2018).
Em função do SEAS ter como uma de suas atribuições a articulação de rede, a equipe já realizou diversas intervenções para com Moacyr, tais como: atendimentos familiares e em conjunto com a saúde; articulação de vaga em SAICA; e, inclusive, uma internação sem o consentimento da criança;
Uma das técnicas que acompanha Moacyr comenta sobre o assunto:
Foi um dia depois de uma ação truculenta da polícia na região. Encontraram o menino deitado no mesmo ponto em que sempre fica ‒ na frente da loja de sapatos ‒, imediatamente, ligou-se para o pai vir pegá-lo, a partir disso, deu-se início ao processo da internação compulsória. […] Ela afirma também que Moacyr não faz uso compulsivo de crack ou de outra substância, na maioria das vezes em que a equipe do SEAS o encontra, ele está dormindo, e sempre fora do fluxo. Ela também falou que até onde se sabe o menino não está envolvido com o crime organizado (diário de campo, 17/07/2018).
É importante salientar que a equipe do SEAS já tinha o intuito de interná-lo, pois, para eles, essa seria a única medida efetiva a ser tomada. Sobre a internação, primeiro levou-se o menino ao CRATOD6 (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas) e, com a anuência da avó e do pai, internaram-no compulsoriamente. Depois de quatro dias, ele foi levado ao CAISM Philippe Pinel (Centro de Atenção Integrada de Saúde Mental).
Para a equipe (que responde também pela família), se ele não melhorar ou não aderir ao tratamento de CAPSij, e, se voltar à Cracolândia, será internado novamente, até aderir a algum tratamento. Ou seja, tratamento compulsório até a plena adesão. De certa forma, está montado o circuito: da internação compulsória à sua casa com tratamento no CAPSij e, caso tenha alguma “recaída” ou volte para a rua, nova internação.
Os orientadores do SEAS expõem seus desejos de abordar as crianças e elas solicitarem a saída da rua, de preferência de volta à família de origem, senão, ao SAICA. Na ação da equipe, proteção se confunde com tutela; cuidado com institucionalização. A internação compulsória aponta para essa obliquidade, reflete como a combinação das políticas públicas podem operar a partir de lógicas penal-sanitárias. Isto é, por meio do direito à saúde, justifica-se o recolhimento e a privação de liberdade de crianças e adolescentes, produzindo-se o afastamento dos jovens dos contextos sociais e comunitários e a reafirmação de um circuito aprisionante (Vicentin; Assis; Joia, 2015).
Cabe ressaltar que, muitas vezes, a demanda pela internação recobre-se, para as equipes e família, da função de proteção enquanto um lugar de descontinuidade aos circuitos muitas vezes mortíferos e violentos da rua, cumprindo a função de “acolhimento institucional”. Entretanto, a centralidade que a droga ocupa na internação pode obscurecer o vasto campo de vulnerabilidades que atravessam estas vidas, tornando a “dependência química” o objetivo central da intervenção, correndo o risco de institucionalizar experiências transitórias ou contingenciais no caso de crianças e adolescentes e de estigmatizá-los precocemente (Joia; Oliveira, 2016).
Segundo as equipes, o consumo de drogas de Moacyr é insuficiente para conduzir à internação, mas, na prática, isso foi um facilitador. Se a quantidade de droga não foi o agente produtor da internação, qual foi a prescrição técnica que embasou a intervenção? A combinação de Estado, Família, Psiquiatria e o desejo de normalizar: a convicção de que se pode corrigir pessoas por meio de internação psiquiátrica ainda persiste, o tratamento moral ainda pulsa como um hábito fundador. O que o conduziu à internação foi o intuito de colonizá-lo; uma tentativa de introduzir outro regime subjetivo. Moacyr é um condenado da terra7 (Fanon, 2005) ‒ não foi em vão que ele foi capturado num sábado de manhã, “em casa”.
Esta intervenção interrompe a circulação de Moacyr que expressava, por meio de suas trajetórias, a não aderência a um projeto de vida sedentário. Ele insiste num nomadismo, colocando o SAICA como abrigamento intermitente e o CAPSij como um ponto de referência de cuidado, tanto do corpo físico quanto da dimensão psicossocial, mas não como um lugar total. Durante o tempo que vive nas ruas, Moacyr fixa pontos de repouso. Como vimos, quando muito cansado, ele solicitava acolhida integral no CAPSij, estabelecendo intervalos de cuidado para a alimentação, descanso e acolhida:
“[…] quando vai ao CAPS, o menino mostra sua carência afetiva; por exemplo, nessa última quarta-feira, ‘pediu beijo de boa noite’”, diz a técnica e acrescenta que, segundo sua óptica, o menino pede limite, dando a entender que faz determinadas coisas, tais como subir no telhado, apenas para ouvir que tem que descer, e que isso não se pode fazer (diário de campo, 18/05/2018). Mas, quando a equipe do CAPSij vai à rua, os desafios são outros: frente à impossibilidade de elaborar oficinas na rua, atividades no território – como já acontecera ‒, o discurso institucional fica, frequentemente, reduzido a “venha para o CAPS”. Essa fala, que se concentra no retorno ao CAPSij e não se traduz no fazer algo com eles, nem sempre afeta as crianças que estão em movimento. O retorno ao CAPSij poderá oferecer consulta técnica, ou ainda a inserção na UA8 (Unidade de Acolhimento) que articula abrigo e cuidado. Com caráter residencial, transitório e voluntário, o encaminhamento de Moacyr à UA teria favorecido articulações territoriais na produção do cuidado, bem como o direito à convivência familiar e comunitária. Situada em outro bairro central, mas distante da circulação das crianças e ainda nova como proposta, Moacyr também não se vinculou.
Quando conectado ao bando da Sé, contava com maior proteção e cooperação do grupo de crianças. Ao se mudar para a Cracolândia e ter de viver sozinho, outros modos de viração se fizeram necessários. De fato, os deslocamentos estão ligados diretamente aos arranjos territoriais. Na Cracolândia, Moacyr anda pouco para conseguir cavar um espaço na calçada à frente do bar; lá, ele se senta e espera o dinheiro cair no copo – evidentemente, suas estratégias para conseguir dinheiro não se restringem a apenas essa. Já o bando da Sé se vê obrigado a percorrer maiores distâncias para conseguir os itens necessários à sua sobrevivência. Portanto, há dois modos de circular: um lento e curto – como Moacyr − e outro veloz e longo – como o bando da Sé. Mas nos dois casos forjam-se territórios que são abandonados pela força da circulação. Os encontros (e desencontros) entre crianças e serviços evidenciam algumas tensões. A distância entre usos feitos pelas crianças e usos propostos pelas equipes são parte da dificuldade da construção do encontro, além da experiência de se estar na abordagem de rua frequentemente em meio à cena de uso. O uso que as crianças da Cracolândia fazem do CAPS é de intervalo, de parada, de contratempo (Deleuze, 2016). Nem por isso deve-se desqualificar esse uso. Enfim, quando as crianças querem ir ao CAPSij, elas vão, chegam lá a fim de “dar um tempo” e, saciadas algumas necessidades, vão-se.
As equipes de Saúde e Assistência – cada uma ao seu modo –, tentam sensibilizar as pessoas e fazer com que elas entendam que aquilo não é vida que se deva levar, que não é saudável e nem adequada. Há de chegar o dia do “insight”, em que se reconheça que é preciso parar com tudo isso, ir morar numa casa higiênica, com família e filhos, pagando os impostos corretamente, cada um dentro do seu ciclo de docilidade. Uma pergunta permanece em aberto: e a demanda das crianças? Ou antes, “o que nos dizem as crianças?” (Deleuze, 2011). Pois, decerto, a Cracolândia não é uma fila de espera para os atendimentos dos CREAS e CAPSij.
Tal como as equipes, o pesquisador viveu em parte os desafios desses desencontros e das dificuldades e impasses dos serviços. Em boa parte do percurso de pesquisa, precisou ouvir as crianças por meio do seu silêncio – numa “etnologia do efêmero” – e apostar na escuta dos seus deslocamentos e circulação. É também e justamente por esse movimento – corriqueiro ‒ de não se atentar às circulações e composições desejantes que se produz a “não-aderência”.
Quanto ao SEAS, o serviço foi produzido com o intuito de atender às pessoas nas cenas de uso e de articular a rede socioassistencial a partir dos atendidos. Contudo, concentra-se em intervenções que resultam no acolhimento institucional, sobretudo, em SAICA. Assim, a equipe se percebe impotente devido ao fato de meninos e meninas não permanecerem no abrigamento. Já o CAPSij, quando concentra suas forças na fala “vamos para o CAPSij”, perde potência de produção de cuidado no território (Lemke, 2009) e de ser reconhecido por meninos e meninas como um local de cuidado, que pode reduzir os danos vividos pela “situação de rua” e abrir brechas.
Certamente, há um conjunto de disposições sócio-históricas e condições socioeconômicas e políticas – de classe, raça, gênero e idade ‒ que inscrevem essas crianças e suas famílias num ciclo de violações de direitos. Como já sinalizava Rosemberg (1994), meninos e meninas, majoritariamente meninos negros (o que se repete hoje), “usam o espaço da rua para além da circulação” (p. 34), isto é, principalmente como local de trabalho, sinalizando as condições de desigualdade social e a rua como uma resposta circunstancial de certas crianças e adolescentes pobres a pressões da vida familiar. Segundo o censo de 2019, há 664 crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de São Paulo, sendo que 538 estão “acolhidos” institucionalmente e 126 vivendo nas ruas (São Paulo, 2019).
Se o processo de trabalho das equipes se desloca do “acolhimento como fixação e normalização da criança” à produção de cuidado, com respeito à agência da criança, aumenta as possibilidades das políticas de Saúde e de Assistência Social construírem caminhos para legitimar a garantia de direitos. Certamente, esse deslocamento não responde ao conjunto de políticas necessárias para o enfrentamento da pobreza e para uma plena garantia de direitos de crianças e adolescentes em situação de rua, mas estará próximo de uma posição em que se criam “condições de afirmação crítica pelos próprios sujeitos interessados, as crianças e adolescentes em situação de rua para que, nas práticas do cuidado de si, com promoção e apoio dos adultos, possam resistir a regimes de verdade que lhe são impostos” (Melo, 2011, p. 35).
7 – O termo foi cunhado por Frantz Fanon (2005) em “Os condenados da terra”, em que discute o contexto colonial: “A originalidade do contexto colonial é que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida não conseguem nunca mascarar as realidades humanas” (p. 56).
8 – “As UA funcionam 24 horas, 7 dias por semana e são voltadas para pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, de ambos os sexos, que apresentem acentuada vulnerabilidade social e/ou familiar e precisam de acompanhamento terapêutico e proteção temporária” (Brasil, 2019).