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Circuitos e circulação de crianças e adolescentes no centro de São Paulo: as políticas de saúde entre cuidado e controle

Conclusão

Este trabalho se debruçou sobre a circulação de crianças e adolescentes no centro de São Paulo, trazendo dois tipos distintos de modos de vida na rua: a de um menino que vive “sozinho” nas imediações da Cracolândia e a de um bando de meninos e meninas que vive ao redor da Praça da Sé – na maior parte do tempo. Nossa perspectiva de análise buscou arguir os modos pelos quais as políticas de saúde se agenciam com tal população, suas necessidades e demandas. Impelidos à rua por miséria e pauperização da vida, meninos e meninas necessitam de ações socioassistenciais; afinal, são crianças e adolescentes que deixaram suas casas por motivos forçados, precisamente por ser insuportável a vida nas condições existentes, e demandam um conjunto articulado de políticas de moradia, educação e cultura, trabalho e renda, além de acesso à saúde.

Já no contexto de institucionalização dos direitos de crianças e da exigibilidade de políticas sociais, quando se analisa a circulação de meninos e meninas em situação de rua, é possível notar que há, por parte das crianças e adolescentes, usos singulares dos serviços, produzindo “circulação” naquilo que se esperaria ser um circuito institucional de fixação, instaurando tensões na relação com os aparelhos de Estado.

As crianças e adolescentes, ao modo de uma lógica geográfica (Deleuze; Guattari, 2012), privilegiam as conexões espaciais e os usos ativos da cidade, instaurando paradas, ritmos e expressividades nem sempre acolhidas e incluídas nas lógicas dos programas e dos serviços que operam por “aderência”. Porém, quando a busca ativa e a itinerância dos serviços é entendida como um princípio político de defesa e expansão das vidas (Lemke, 2009), crianças e adolescentes também podem ser reconhecidos como sujeitos políticos que recusam as tutelas e os controles característicos das políticas a eles direcionadas.

A itinerância dos serviços e das equipes cria possibilidades de dar sentido aos diferentes modos de “habitar” o território pelas crianças e de exercitar as políticas públicas em consonância com os modos concretos de vida e com a agência e participação das crianças, abrindo possibilidades de ampliar a garantia de direitos humanos numa perspectiva territorial e em liberdade. Assim, caberia aos serviços, tanto CAPSij quanto SEAS, lançarem-se a outro tempo que não o do “resgate” dessas vidas, mas sim ao tempo de criação do inédito.

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Resumo

Este artigo discute, a partir dos modos de circulação de crianças e adolescentes em “situação de rua” no centro de São Paulo, os seus encontros e desencontros com as políticas públicas. O artigo se apoia em pesquisa de mestrado que teve como metodologia a cartografia, tendo acompanhado, com a equipe de um serviço de saúde mental, em 2018, dois grupos de crianças nos bairros da Luz e da Praça da Sé. Os acompanhamentos foram registrados na forma de diários de campo e trabalhados como narrativas. Procurou-se analisar os usos que são feitos dos serviços pelas crianças, o que acaba por engendrar um circuito institucional específico. Em direção contrária à ideia propagada pelos operadores estatais de que meninos e meninas em tais condições não “aderem” às políticas, considera-se que eles não apenas forjam usos inauditos de políticas sociais, mas também seus modos de vida conservam singularidades que despontam como desafios às políticas públicas.

Palavras-chave: saúde pública, infância, álcool e outras drogas, população em situação de rua.

Circuitos y circulación de niños y adolescentes en el centro de São Paulo: políticas de salud, entre atención y control.

Resumén

Este artículo discute, a partir de los modos de circulación de los niños y adolescentes en situación de calle en el centro de São Paulo, sus encuentros y desacuerdos con las políticas públicas. El artículo parte de una investigación de Maestría Academica cuya metodología fue la cartografía, habiendo acompañado, en 2018, a dos grupos de niños en los barrios de Luz y Praça da Sé, junto al equipo de un servicio de salud mental. También se busca analizar los usos que hacen los niños de los servicios, los diferentes itinerarios, que acaban creando y sus circuitos institucionales específicos. Los acompañamientos se registraron en forma de diarios de campo y fueran trabajados como narrativas. En la dirección opuesta a la idea que a menudo propagan los operadores estatales de que los niños y niñas en tales condiciones no “adhieren” a las políticas, la perspectiva es que no solo forjan usos sin precedentes de estas, sino que sus formas de vida conservan singularidades que surgen como desafíos a las políticas públicas.

Palabras-clave: salud pública, infancia, alcohol y otras drogas, poblaciónes en situación de calle.

Circuits and circulation of children and adolescents in downtown São Paulo: health policies between care and control

Abstract

This article looks at homeless children and adolescents in downtown São Paulo and their encounters and disagreements with public policies, based on how they move around the city. The article is based on a Masters research project that used cartography as its methodology, following two groups of children in the neighborhoods of Luz and Praça da Sé, in 2018, alongside a mental health service team. The interactions were recorded in the form of field diaries and worked as narratives of their institutional circuits and their encounters with public policies. In opposition to the idea often propagated by state operators that boys and girls in such conditions do not “adhere” to policies, the perspective is that not only do they forge unprecedented uses of social policies, but their ways of life retain singularities that emerge as challenges to public policies.

Key-words: public health, childhood, alcohol and other drugs, homeless population.

Data de recebimento/Fecha de recepción – 30/09/2020
Data de aprovação/Fecha de aprobación – 23/12/2020

Gabriel Rocha Teixeira Mendes gabriel_rochatm@hotmail.com

Psicólogo, mestre em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Membro do Núcleo de Pesquisa em Lógicas Institucionais e Coletivas (NUPLIC).

Maria Cristina G. Vicentin mvicentin@pucsp.br

Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP, Brasil.  Coordenadora do Núcleo de Estudos e pesquisas Lógicas Institucionais e Coletivas (NUPLIC).