Paulo Waisberg

As crianças e suas relações com as tecnologias da informação e comunicação: um estudo em escolas peruanas

Recursos e experiências desiguais entre os nativos digitais

Apesar das imagens recorrentes de sentido comum que atribuem às crianças um chip incorporado, a habilidade tecnológica da geração mais jovem não é inata. Ao contrário, ela se alimenta do seu entorno imediato, das tecnologias usadas cotidianamente no lar e na escola, do uso que fazem delas seus pares e sua família, da difusão através da mídia etc. Ao ver e participar destas práticas, as crianças aprendem, desenvolvem e incorporam habilidades, sejam eles meninos ou meninas. Mas o que acontece quando essas práticas estão ausentes, quando os aparelhos estão fora do alcance do poder de compra de suas famílias? Ou estão ao alcance, mas o conhecimento para operá-los não faz parte do capital cultural familiar ao que estão expostas essas crianças[3].

A pesquisa que realizamos engloba 5 regiões do Peru e nos mostrou uma grande diversidade de situações sociais e de acesso à tecnologia. Em cidades como Lima ou Trujillo, localizadas na costa, sendo a região com maior poder aquisitivo do país, as crianças e adolescentes de classe média e média-baixa tinham acesso bastante amplo a diversos aparelhos em casa, alguns de última geração, o que lhes permitia uma conexão constante e um consumo frequente, tanto para os que estudavam em escolas públicas (Trujillo) como os que estudavam em escolas privadas (Lima). Algo similar acontecia em Cusco, uma próspera cidade andina, onde o grupo estudado provém de uma escola privada para a classe alta e média-alta. Em Puno, outra cidade andina, os alunos dessa escola pública, numa região de expansão de classe média-baixa, não mostravam um nível tão marcado de acesso às tecnologias, nem dentro nem fora da escola. Entretanto, em Puno, entre uma abastada comunidade rural relacionada à economia de gado, fomos surpreendidos pelo fato de encontrar um acesso similar ou superior aos dispositivos tecnológicos que tinham os seus pares urbanos da mesma região. Não acontecia o mesmo em Trujillo na sua área rural, onde as diferenças eram notáveis e as crianças e jovens rurais, filhos de trabalhadores agrícolas diaristas, tinham menos acesso a dispositivos e serviços do que as crianças e jovens urbanos. Na região peruana da Amazônia, encontramos um acesso ainda mais restrito a dispositivos e práticas digitais, tanto nas áreas urbanas marginais quanto nas rurais, dedicadas ao cultivo da palma, provavelmente por tratar-se de uma área de maior pobreza.

As experiências de crianças e adolescentes urbanos de Lima, Trujillo e Cusco, dedicados exclusivamente ao estudo e possuindo dispositivos de última geração, pertencentes a famílias que podem adquiri-los, são muito diferentes às experiências dos filhos de trabalhadores agrícolas diaristas das agro-insdústrias costeiras, a dos camponeses de gado no altiplano de Puno ou dos agricultores colonos da Amazônia peruana.

As diferenças se encontram também no interior das comunidades. Não só os tipos de aparelhos de cada família são diferentes, também os serviços que usam, a disponibilidade e a velocidade da internet e o que é possível fazer com a conexão disponível. As meninas são as mais prejudicadas quando a família não dispõe dos recursos digitais em casa, pois os lugares públicos de acesso à internet são considerados espaços masculinos e perigosos, motivo pelo qual não são frequentados por meninas tanto quanto o são por meninos, que, sim, estão autorizados ao consumo de jogos e da internet.

O contexto socioeconômico não apenas marca o tipo e a qualidade dos dispositivos digitais da família, mas também acarreta a presença ou a ausência de práticas em torno da tecnologia, facilitando ou dificultando o seu uso pelas crianças e jovens. Benítez Largui e Lemus (2012) encontraram como resultado de suas pesquisas que os estudantes argentinos de classe média têm maior acesso às TIC que os de setores populares, e têm também um trajeto de uso mais longo, maior naturalidade na sua relação com elas e maior variedade de usos e aplicações, influenciados pelos usos que observam no seu contexto imediato. Assim mesmo, o estudo de Trinidad e Zlachesvsky (2013) na Argentina, Paraguai e Peru achou diferenças no tipo de jogos que as crianças selecionam e mostrou que setores mais altos (A e B) escolhem jogos que requerem maior experiência como internautas.

Em nossas observações de aula foi fácil identificar os alunos com maior domínio dos computadores, os quais, com frequência, eram aqueles que tinham um computador em casa e estavam familiarizados com os programas e serviços existentes. Assim, era mais fácil para eles seguir as instruções do professor e realizar as atividades propostas nos cursos que requeriam o uso de computadores. Entretanto, aqueles que não dispunham desses recursos em casa e tinham pouca prática no uso dos aparelhos, acompanhavam mais lentamente a aula ficando para trás e como em muitos casos eles compartilhavam o computador, quem sabia mais se encarregava de mexer no computador para realizar a atividade.

Nós nos encontramos então diante de uma situação paradoxal: os que têm maiores necessidades de aprender as habilidades digitais (pois não têm um computador em casa) não conseguem fazê-lo. Ao contrário, quem sabe alguma coisa graças aos recursos e conhecimentos que já tem, reforça suas habilidades e é reconhecido pela escola.

Essa escola que deveria compensar as carências dos primeiros e levá-los a alcançar o mesmo nível dos segundos acaba, entretanto, como assinalam Bourdieu e Passeron (2003), reproduzindo a desigualdade inicial com a que os alunos chegam à aula. E isso se deve, em parte, à falsa ideia de que estamos diante de um grupo homogêneo de nativos digitais que já sabem o que têm que fazer e ignoramos o que precisam aprender. Poucos são os professores que identificam a diversidade de habilidades e procuram ajustar o ensino a essa diversidade; predomina, como em outros campos, a ideia de um ensino dirigido a uma média imaginária, que é mais aproveitada por uns do que por outros, e quem fica para trás não encontra apoio, pois, no imaginário docente, esses estudantes, no que se refere às TIC, “já sabem mais do que a gente”, como expressou o professor Marco.

A visão dicotômica entre nativos e imigrantes digitais não contribui para visibilizar estas diferenças entre os estudantes e permite que o capital cultural e econômico de cada família continue tendo, ainda, um papel central na aquisição e no desenvolvimento das habilidades relativas às novas tecnologias, inclusive no marco de políticas sociais que têm procurado expandir o seu acesso[4].

A aprendizagem nas aulas: encontros entre imigrantes e nativos digitais

As consequências dessa visão dicotómica entre nativos e adultos imigrantes digitais no âmbito educativo são preocupantes, já que podem gerar decisões errôneas com relação ao quê e como ensinar (ou não). Isso fortalece as desigualdades sociais que as crianças e os jovens trazem ao espaço educativo, em vez de compensar o acesso desigual a certos recursos e conhecimentos.

Alguns professores se mostram bastante impressionados pelas habilidades com computadores, celulares e internet que as crianças e os jovens demonstram. “Que eles têm habilidade têm”, nos disse Marta, professora de uma escola de ensino fundamental em Pucallpa; um colega de ensino médio assinala a força e o grau de adesão dos seus alunos ao Facebook; e Jorge, professor de ensino médio numa escola rural da mesma região (Ucayali), nos conta o seguinte caso.

Um dia um aluno me disse: “Professor, agora vamos tirar umas fotos nossas e se a gente quiser ser mais jovem, a gente pode graças ao PhotoShop (…)” então é isso né? Você sabe tem programas que tem vezes que (eu não conheço)… tem muita criança que já tem aqui seu laptop, seu computador, porque tudo isso eles sabem mexer.

Entretanto, o fato de que crianças e jovens se movam com facilidade pela internet, baixem música, joguem on line e procurem informação não quer dizer que estejam prontos para aproveitar ao máximo as TIC nem que saibam manipulá-las inteiramente de forma adequada para propósitos de acesso e produção de conhecimentos. Autores como Dussel (2014), que reconhecem a importância transformadora das TIC, assinalam também os riscos de empobrecimento cultural, desorganização e superficialidade, bem como os riscos frequentes de que os jovens se deixem conduzir pela indústria cultural e suas tendências.

No estudo realizado, encontramos que entre as crianças e os jovens que utilizam com certa fluência as tecnologias, o copiar-colar da primeira busca é a prática dominante para a resolução de suas tarefas escolares, como o exemplifica o relato a seguir.

Jackie está fazendo a sua tarefa da aula de religião. As duas perguntas que deve responder são: “O que entendemos por Semana Santa?” e “O que é o Domingo de Ramos?” Ela utiliza o Google, colocando a pergunta tal e qual como está. Ela espera até que apareça tudo o que se refere à Semana Santa. Depois, ela vai abrindo cada página até que encontra algum texto curto e que tenha as palavras da pergunta introduzida. Algumas páginas demoram para abrir e outras são muito longas. Essas são descartadas ou não são consideradas por Jackie. Ela procura conteúdos curtos e que tenham em sua redação as palavras introduzidas para a busca. Se encontra essas duas características, fica com esse texto e o copia no seu caderno tal e qual como aparece (…) (Observação de tempo livre, em sala pública de internet, Jackie, 9 anos, Virú, área rural)

A habilidade que muitas crianças e jovens têm com as TIC não necessariamente os prepara para um melhor aproveitamento no processamento da informação que é requerido como parte de seu processo educativo e de seu desenvolvimento cognitivo. Pelo contrario, o caso de Jackie, como muitos outros, mostra que o uso das TIC para fins educativos ainda é bastante limitado; são procuras simples, sem contraste nem validação da informação, simplesmente copiam e colam, sem processar, verificar ou resumir. Longe de ser um empoderamento, essa forma de usar a tecnologia parece mais criar uma alienação do conhecimento e de sua produção, pois reproduz um padrão tradicional (o de copiar) numa velocidade maior e com efeitos limitados para a suas aprendizagens reais. Por essa razão, uma orientação pedagógica adequada é fundamental para aproveitar as vantagens das TIC.

[3] Segundo Bourdieu (1986), o capital cultural pode ser definido como as formas de conhecimento e as competências, mas também como a familiaridade com bens culturais e seu consumo (neste caso, refiro-me aos aparelhos e serviços digitais).

[4]No Peru, foram distribuídos mais de 850.000 XO, como parte do programa “Una Laptop por Niño” [Um Laptop para cada Criança] (OLPC) e em outros países da América Latina a tendência de distribuir aparelhos e dispositivos aumentou nos últimos anos (Organização de Estados Ibero-americanos, 2011).
Patricia Ames pames@pucp.edu.pe

Doutora em Antropologia da Educação pela Universidade de Londres. Professora e Pesquisadora de Antropologia no Departamento de Ciências Sociais da Pontifica Universidad Católica del Perú (PUCP) e pesquisadora principal do Instituto de Estudios Peruanos. Coordenadora do grupo EVE – Edades de la Vida y Educación, da PUCP.
*Tradução: Oficina de formação de tradutores, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro (FL/UFRJ), Brasil (Larissa Ribas, Leandro Lacerda, Desiree Cardoso e Giovanna França) – Orientadora: Leticia Rebollo Couto.