Entretanto, muitos professores parecem não ter consciência do seu papel nesse sentido e dão por certo que as crianças e os jovens sabem como proceder, como o exemplifica o seguinte relato.
Você planeja uma aula e você diz para eles: “Vamos ver agora, jovens, vamos começar uma aula e vamos entrar na internet para procurar tal informação”. Eles vão procurando por aí e dessa maneira está despertando talvez (a) resolução de problemas pra que eles possam buscar a informação, a busca da informação para que eles possam analisar a informação que eles encontram na internet. (Carla, professora de ensino médio de Trujillo).
A indicação de Carla é bastante geral e pressupõe um domínio de técnicas e critérios de busca, mas não observamos em nenhuma aula que eles tenham sido oferecidos. Então, a pergunta inevitável é se os docentes estão plenamente convencidos de que são imigrantes digitais e que têm pouco a oferecer aos nativos digitais. Por isso, afirmo que essa dicotomia entre uns e outros desempodera pais e professores, que se sentem diminuídos em sua capacidade para orientar crianças e jovens e na sua própria habilidade de aprender e apropriar-se da tecnologia. A atitude com relação às TIC está diretamente relacionada com as habilidades que são desenvolvidas. A esse respeito, Dussel (2014, p. 21) assinala que “quanto menor for o medo, maior será a descoberta de outras possibilidades de uso (das tecnologias) e, portanto, maior será a habilidade para adquirir mais competências”. Por isso, mais do que como uma dicotomia, a relação com a tecnologia deveria ser vista como um continuum, onde não há uniformidade geracional num extremo ou em outro, pois estamos diante de uma grande diversidade de experiências sociais. Muitos adultos foram incorporando mais e mais as TIC às suas vidas e dificilmente um professor não tem hoje no seu bolso um dispositivo digital. Muitas crianças que crescem hoje em áreas marginais e de extrema pobreza não terão acesso à variedade de aparelhos e dispositivos que têm os seus pares com melhores condições socioeconômicas. Nesses casos, quem está mais próximo ao nativo e ao imigrante digital?
Somente em três escolas encontramos docentes que promovem entre seus alunos práticas mais especializadas e que os orientam na busca da informação na internet, como mostra o relato de Alexis.
E: E quando você procura informação na internet, como é que você faz? (para fazer a tarefa).
Alexis: Entro na internet e começo a procurar, por exemplo, sobre a reprodução humana e olho muitas páginas e dessas páginas para escolher.
E: E tem algumas que você acha mais interessantes que outra por uma razão qualquer? Ou seja, por que você escolhe uma página e não outra?
Alexis: Algumas não são confiáveis, ou seja, não dizem a verdade, mas outras sim, por exemplo, tem certas páginas nas que universitários escrevem e escrevem sobre esse tema. Mas tem outras nas que qualquer pessoa entra e escreve… então, primeiro você tem que olhar as páginas e… primeiro te ensinam um pouco sobre isso para que você saiba o que você tem que procurar e depois você vê se é como o que te ensinaram e então você lê e tira a informação. (Entrevista, Alexis, 9 anos, 5.º ano, Cusco, área urbana).
Alexis demonstra um uso diferente da internet para fazer sua tarefa, graças a uma orientação que lhe permite outro tipo de práticas com as TIC. Ele não escolhe o caminho mais curto nem fica com a informação da primeira página que encontra, fala do critério de confiabilidade da informação, o que é uma preocupação ausente no caso de Jackie, e é notória sua preocupação com a validez e a veracidade dos conteúdos que utilizará. Os critérios de autoridade estão delimitados (para ele não é o mesmo o que escrevem os universitários para o tema e o que escreve qualquer pessoa na rede)[5]. A informação prévia adquirida nas aulas serve para elucidar qual a informação nova que ele vai usar e qual não. Todas essas estratégias possibilitam que Alexis tenha uma forma de abordar o conhecimento mais próxima à da pesquisa e menos próxima ao de copiar e colar, como vimos na maioria dos casos.
Outros estudos confirmam que os estudantes que recebem instruções de como julgar as fontes (sites e páginas web) e seus conteúdos, mostram um comportamento mais avançado na sua navegação e avaliação das páginas web do que aqueles que não receberam tal instrução. Um trabalho com estudantes italianos de ensino médio (14-15 anos) mostra que aqueles que recebem instruções fazem menos visitas a páginas pouco confiáveis e passam mais tempo nas páginas confiáveis na hora de buscar informação; sendo capazes de usar critérios mais sofisticados para determinar quais são os sites mais confiáveis; observando, por exemplo, as credenciais dos autores para determinar o valor da informação, bem como a evidência científica; corroboram informação comparando diferentes sites e demonstrando uma melhor compreensão da informação obtida nas diferentes páginas web, bem como melhor capacidade para relacioná-las (Mason et al, 2014, p. 154-155). E ainda, os estudantes que já têm um conhecimento de base sobre o tema têm um desempenho melhor na qualidade de suas buscas, algo ao que fazia referência Alexis ao comentar que eles “primeiro te ensinam”.
A partir dessa evidência é possível afirmar que os educadores têm um importante papel a cumprir na formação de habilidades que permitam não só o manejo da tecnologia, mas também o seu maior aproveitamento, tanto para a aprendizagem de habilidades digitais como para o desenvolvimento de competências acadêmicas.
Por último, é preciso lembrar que nós adultos também aprendemos, e que isso nos faz apreciar melhor as enormes oportunidades que existem para aprender o uso das TIC com os estudantes e deles, sem deixar de lado as outras habilidades que nós podemos ensinar-lhes. A dicotomia entre imigrantes e nativos digitais apaga este fato. Pode ser que tenha contribuído para visibilizar novas características de crianças e jovens, mas nos impede de ver a grande diversidade de experiências infantis e juvenis que devemos enfrentar nas aulas, e nos transmite um ar colonial com esta distinção entre nativo/imigrante, que inibe o reconhecimento da capacidade permanente de aprendizagem e adaptação dos adultos, crianças e jovens a novas realidades sociais.
Conclusões
Ao longo deste artigo vimos como as crianças e os jovens apresentam uma grande diversidade no uso e na manipulação das TIC, produto das variadas condições socioeconômicas nas quais crescem e se socializam. O acesso a bens culturais tais como computadores, celulares, tablets, aparelhos portáteis para armazenamento e reprodução de música está muito estendido, mas de modo desigual, nem todos acessam a tudo e nem todos os tipos de aparelhos são similares em capacidade e potência.
As escolas da região estão tentando contribuir para sanar a defasagem digital no acesso às TIC mediante políticas públicas. Para isso contribui o fato de que os equipamentos estão cada vez mais baratos, o que os torna mais acessíveis a diversos grupos sociais. Mas a defasagem mais difícil de remediar é a que vai se configurando como o uso das TIC. O papel da escola para oferecer oportunidades de desenvolvimento de habilidades, conhecimentos e competências ligados ao uso das TIC é fundamental. A inflexível dicotomia entre nativos e imigrantes digitais constitui uma dificuldade para que os professores identifiquem as habilidades desiguais de seus alunos e como fazer para superá-las. A sugestão dada é que se procure aproveitar as possibilidades mesmas que oferecem as TIC para o trabalho conjunto e a aprendizagem mútua entre professores e alunos.
As crianças e os jovens com os quais trabalhamos nas pesquisas aqui citadas se revelaram não como sujeitos homogêneos e passivos, mas sim como agentes sociais diversos, afetados pelas realidades sociais nas quais crescem e pelas desigualdades que as caracterizam, mas também ativos na descoberta das TIC que abrem oportunidades de participação e aprendizagem. Para ampliar e aproveitar essas oportunidades é necessário superar o risco de essencializar estas crianças e jovens com etiquetas como as que examinamos neste trabalho, facilitando-lhes o acesso às habilidades e competências que estão procurando.
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Resumo
Este artigo propõe a necessidade de revisar categorias conceituais enraizadas no senso comum de pais e professores, que desconhecem as formas desiguais de impacto da cultura digital na vida de crianças e jovens. São revisadas as noções de nativos digitais e imigrantes digitais, as quais associam o primeiro conceito ao mundo infantil e juvenil, e o segundo ao mundo adulto, o que implica em correr o risco de essencializar e descontextualizar experiências sociais e pessoais, ao considerá-las como geracionais. Essa visão dicotômica tem consequências e, em certos casos, pode acarretar, no âmbito educacional, em decisões errôneas com relação ao quê e a como ensinar (ou não ensinar). Dessa maneira, as desigualdades sociais que as crianças e os jovens trazem ao espaço educativo são fortalecidas, e esse espaço deixa de compensar o acesso desigual a certos recursos e conhecimentos.
Palavras-chave: acesso às TIC, condições socioeconômicas, educação e TIC, imigrantes digitais, nativos digitais
Data de Recebimento: 25/02/2016
Data de Aceite: 28/04/2016