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Discutindo projetos de vida com crianças e adolescentes em vulnerabilidade social

Considerações finais

Dentre as características dos projetos de vida das/os participantes, notou-se a desconexão entre o futuro desejado e as ações necessárias no tempo presente. Essa descontinuidade evidencia que seus projetos se dão sem referências próximas que permitam vislumbrar as escolhas como realizáveis, próximas do universo ocupacional e educacional do meio social ao qual pertencem. A escolha por profissões de destaque nos meios de comunicação (modelo, jogador de futebol) refletem uma ideia de sucesso calcada na reafirmação de estereótipos de ascensão econômica e reconhecimento público.

As oficinas educativas em saúde proporcionaram situações de interação e diálogo, as/os participantes foram estimuladas/os a refletir sobre os temas propostos, a manifestar suas opiniões, partilhar, aprofundar e modificar suas percepções, representações e pontos de vista. As oficinas como estratégia de desenvolvimento de projetos entre adolescentes mostraram-se potentes recursos na construção da autoestima, por meio de atividades que trabalharam o autoconhecimento. Esse é um caminho que se mostrou frutífero para o desenvolvimento do autocuidado, podendo esse esvaziar-se de sentido se não tiver como base a autoestima.

Os projetos de vida, por sua vez, se mostraram potentes instrumentos na construção do autoconhecimento, na autopercepção dos afetos e desejos e para (re)pensar a própria história, permitindo projetar um futuro mais digno, que extrapole o ciclo intergeracional da pobreza.

Embora seja necessária a compreensão das oficinas como fato isolado no contexto em que foram realizadas, para entender a dimensão de seu alcance, não se pode desprezar que as possibilidades de mudança partem das possibilidades de reflexão. Nesse sentido, a oportunidade que as crianças e adolescentes tiveram de refletir sobre outras práticas de cuidado, consigo e com as pessoas ao redor, assim como possibilidades de futuro, se apresentaram como um convite à própria reflexão, que pode se dar de modo compartilhado. Nos momentos de reflexão, surgiram percepções de recursos ausentes que, por sua vez, levaram a questionamentos sobre sua causalidade. A postura de estranhamento da própria realidade mostrou-se como um primeiro passo para cogitar a possibilidade de vivência diferente daquela a que estão habituadas/os.

Alguns desafios práticos se colocaram para a realização das oficinas, entre os quais se destaca a própria ausência de fluência na leitura e escrita por parte de algumas/alguns participantes e as situações de violência do território. A ocorrência de assassinato de conhecidos, toque de recolher, disputa entre gangues, ou mesmo situações de violência doméstica e familiar interferiam diretamente na disponibilidade delas/deles para a participação nas oficinas.

Por fim, faz-se importante pontuar o desafio e, portanto, as limitações da proposta de trabalhar projetos de vida em um contexto em que a racionalização do futuro é prática ausente, esvaziada, sobretudo pelas baixas variabilidades de possibilidades plausíveis. O desafio se apresenta tanto quanto seu potencial transformador.

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Resumo

Objetivou-se analisar um trabalho sobre projetos de vida com crianças e adolescentes de uma região periférica de Belo Horizonte, Brasil, que se deu por oficinas de educação em saúde ocorridas em uma instituição filantrópica durante 10 meses. Foram abordados temas como autoconhecimento, autoestima, relações familiares e vínculos afetivos, cuidados com o corpo, cidadania, desigualdades, violências. A análise foi empreendida por meio de questionário diagnóstico aplicado a participantes, atividades realizadas pelo grupo e caderno de campo. Os meninos demonstraram predileção por carreiras de menor qualificação e as meninas por profissões de Ensino Superior. Observou-se a ausência de articulação entre os projetos mencionados e as ações concretas para empreendê-los. A escola não foi mencionada positivamente como um espaço para o alcance dos objetivos. As oficinas de educação em saúde focadas na promoção de projetos de vida se mostraram estratégias potentes para a construção do autoconhecimento, oportunizando a projeção do futuro desejado.

Palavras-chave: projetos de vida, crianças e adolescentes, vulnerabilidade social, educação em saúde.

Discutiendo proyectos de vida con ninõs y adolescentes en vulnerabilidad social

Resumen

El objetivo fue analizar un trabajo sobre proyectos de vida con niños y adolescentes de una región periférica de Belo Horizonte, Brasil, que se realizó a través de talleres de educación en salud, ocurridos en una institución filantrópica durante 10 meses. Se abordaron temas como autoconocimiento, autoestima, relaciones familiares y vínculos afectivos, cuidado del cuerpo, ciudadanía, desigualdad, violencia. El análisis se realizó mediante un cuestionario de diagnóstico aplicado a los participantes, las actividades realizadas por el grupo y un cuaderno de campo. Los niños demostraron una predilección por las carreras menos calificadas mientras que las mujeres, por profesiones de educación superior. Hubo ausencia de articulación entre los proyectos mencionados y las acciones concretas para llevar a cabo dichos proyectos. La escuela no fue mencionada positivamente como un espacio para promover el logro de sus objetivos. Los talleres de educación en salud centrados en la promoción de proyectos de vida demostraron ser estrategias poderosas para desarrollar el autoconocimiento, brindando oportunidades para la proyección del futuro deseado.

Palabras clave: proyectos de vida, niños y adolescentes, vulnerabilidad social, educación en salud.

Discussing life projects with children and adolescents in social vulnerability

Abstract
The objective was to analyse a work on life projects conducted with children and adolescents in the outskirts of Belo Horizonte, Brazil, which was performed through health education workshops. The meetings occurred in a philanthropic institution for 10 months. Topics such as self-knowledge, self-esteem, family relationships and affective bonds, body care, citizenship, inequality and violence were addressed. The analysis was carried out through a diagnosis questionnaire applied to participants, activities performed by the group and field notes. Boys showed a higher interest in less qualified careers, and girls in higher education professions. There was a lack of articulation between the groups’ mentioned projects and concrete actions to conduct those projects. The school was not positively mentioned as a space to promote their goals’ achievement. The health education workshops focused on life projects’ promotion proved to be powerful strategies to the self-knowledge, providing opportunities of projections of the desired future.

Keywords life projects, children and adolescents, social vulnerability, health education.

Data de recebimento/Fecha de recepción: 16/07/2020
Data de aprovação/Fecha de aprobación: 16/02/2021

Cláudia Gersen Alvarenga gersenclaudia@hotmail.com

Bióloga pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil e Mestra em Ciências da Saúde pelo Instituto René Rachou (Fiocruz Minas), Brasil. Pesquisadora na área de Saúde Coletiva, com ênfase em educação em saúde, adolescentes, escola, sexualidade e masculinidades.

Laís Barbosa Patrocino laisbp89bh@gmail.com

Cientista Social e Mestra em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil, e Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto René Rachou (Fiocruz Minas), Brasil.
Pesquisadora nos campos da educação em saúde, sexualidade e violência contra meninas e mulheres, especificamente a divulgação não autorizada da intimidade.

Lucas Barbi lucbarbi@gmail.com

Pesquisador na área de Saúde Coletiva, na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde com ênfase na avalição de serviços e intervenções participativas em saúde. Cientista Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil, Mestre e Doutorando em Saúde Coletiva pelo Instituto René Rachou (Fiocruz Minas), Brasil.