Conceição Firmina Seixas Silva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-0586-1275
Giselle Arteiro Nielsen Azevedo
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-6707-466X
Heloisa Dias Bezerra
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-5199-5330
DOI: https://doi.org/10.54948/desidades.v0i31.46034
Introdução
Este artigo analisa a temática da participação de crianças e jovens na sociedade a partir da reflexão sobre dois importantes conceitos – a representação política e a noção de minipúblicos como potencialidade e viabilidade da ação desses indivíduos no mundo. Essa reflexão foi produzida por meio da leitura de três pesquisadoras situadas em diferentes campos disciplinares – Ciência Política, Psicologia Social e Arquitetura. Ao assumir o desafio da perspectiva interdisciplinar, entendemos que as questões que atravessam a infância e a juventude – que são de diversas ordens – dizem respeito a todos os campos de estudos.
Inicialmente faremos uma breve discussão em torno de algumas questões instigantes sobre representação e participação política, problematizando, a partir de conceitos aportados ao debate por especialistas que convencionamos chamar de deliberacionistas, um campo das teorias sobre democracia que não privilegia o processo decisório final, embora o considere importantíssimo e do qual deveriam participar não apenas os representantes eleitos para os poderes instituídos (executivo e legislativo).
Em seguida, discutiremos o processo de fala e escuta de crianças e jovens a partir de uma perspectiva da politização do campo geracional. Isto é, como o processo de representação desses sujeitos acontece na nossa sociedade – se de modo a possibilitar sua fala e a escuta ou se seus desejos, demandas e considerações são traduzidos no espaço público por adultos, gestores e especialistas que supõem saber o que crianças e jovens são e necessitam, desconsiderando completamente a importante contribuição desses indivíduos para o mundo.
Por fim, apresentaremos um repertório de práticas com exemplos que nos possibilitam compreender o habitar cotidiano das crianças na cidade, na escola e no espaço público. Nesse caso, optamos por privilegiar articulações entre atores oriundos da pesquisa acadêmica com o poder público municipal, como a parceria entre a universidade e a Prefeitura do Rio de Janeiro, Brasil.
Conforme apontado pela maior parte dos autores deliberacionistas, os atores institucionalizados deveriam ter como objetivo criar espaços para que essas práticas pudessem ocorrer cotidianamente, pois, desse modo, estariam apontando caminhos para uma política mais inclusiva, tanto no seu estágio de trocas, conversas, ou seja, no turno da deliberação, quanto no momento posterior, caso haja, relativo a decisões e escolhas que impliquem ganhos e perdas para todos os envolvidos.
Breve introdução sobre representação, participação e os incrementos apontados pelo deliberacionismo
Desde o século XVIII, a representação política eleita tem sido incentivada como elo prioritário entre os indivíduos e o pensar e agir político nas democracias ocidentais, tendo como marco o célebre discurso de Edmund Burke, em 1774, aos eleitores de Bristol.
A democracia representativa ainda é compreendida como o sistema político que mais favorece o desenvolvimento de uma vida em comunidade mais pacífica. Todavia, de fato, há muito tem se mostrado como um sistema em que as desigualdades têm solapado os direitos de milhões de pessoas. Do ponto de vista das teorias sobre a(s) democracia(s), sem menosprezar os textos anteriores, foi a partir da década de 1970 que ganharam destaque alguns contrapontos fulcrais à perspectiva da representação, não no sentido de eliminá-la, mas na intenção de problematizar e sugerir alternativas para a reinclusão da política na vida cotidiana.
Carole Pateman (1970) propôs uma teoria participativa da democracia reivindicando como essencial a presença dos indivíduos na cena política, o que contribuiria para a educação política, para integração dos sujeitos na comunidade (no sentido de ver o outro e o bem comum) e principalmente para o controle da própria representação. Decerto Pateman supunha movimentos sociais fortes, avassaladores, que pudessem pressionar e romper o imobilismo da representação democrática que se tornou hegemônica em todo o espectro partidário.
Experiências participativistas têm recebido questionamentos quanto à sua capacidade de aprofundar a democracia, pois, de certo modo, localizam a cena política como um espaço muito dependente do fortalecimento dos partidos políticos, sindicatos e outros movimentos institucionalizados e, principalmente, problematiza pouco o decisionismo político, ou seja, a decisão política resultante da atividade da representação política pressionada mais ou menos pela participação popular.
Avritzer (2008), Coelho et al. (2010) e Miguel (2017) mapearam aspectos relevantes desse debate, com abordagens tanto do ponto de vista teórico quanto empírico. A polissemia inerente aos termos participativismo e deliberacionismo pode ter ajudado a rotular o participativismo como modos de agir com menos efetividade – originalmente inspirado em Rousseau [1762]/(2000)1 e Stuart Mill [1861]/(1985) – ao passo que o deliberacionismo passou a ser entendido como modos de agir mais condizentes com os objetivos de aprofundamento da qualidade da democracia.
Os desenhos institucionais também aparecem como elementos que devem ser avaliados quanto à maior ou menor dependência da representação, pois, de fato, quanto menos espaço há para o debate aprofundado, ou seja, quanto mais participação sem deliberação, maiores são as possibilidades de esvaziamento do agir político. Cabe destacar, ainda, que o participativismo é apontado como mais passível a uma elitização do debate político, sendo este, talvez, o elemento de maior atrito entre teóricos participativistas e deliberacionistas.
A virada conceitual e mais focada na busca por alternativas para a inserção da sociedade nos processos decisórios é colocada em evidência pelos deliberacionistas, ou seja, um debate amplificado por pesquisadores que propõem que as decisões cotidianas de interesse coletivo devem ser precedidas por debates e entendimentos em busca de soluções para o bem comum. Alguns autores ganharam destaque nessa nova propositura teórica, tais como Jürgen Habermas ([1962]/1984a, 1984b, 1987, 1997), Nancy Fraser (1992), Joshua Cohen (1989), Jane Mansbridge (1995, 1999, 2007), James Bohman (1996), James Bohman e William Rehg (1997), John Dryzek (2000), Chantal Mouffe (2000), Iris Marion Young (2001), Amy Gutmann e Dennis Thompson (2004), Bruce Ackerman e James S. Fishkin (2004), Michael Warner (2005), entre outros.
A teoria democrática deliberacionista tem muitas vertentes e entendimentos acerca de modelos para garantir a interferência da sociedade nos processos decisórios. Entre as possibilidades debatidas entre os deliberacionistas, escolhemos trazer para este artigo a noção de minipúblicos deliberativos, concepção proposta por Archon Fung (2003), que imaginou espaços ou arranjos participativos em que os cidadãos pudessem apresentar publicamente seus argumentos sobre um tema de interesse a uma dada comunidade e ali pudessem atuar como sujeitos concernentes àquela problemática.
Como toda teoria ainda com grandes disputas, o debate sobre públicos concernentes e minipúblicos encontra rebatimentos críticos, como, por exemplo, na ideia de contrapúblicos (subalternos, performativos, entre outros), que já havia sido proposta por Fraser (1992). De fato, os conceitos público concernente, minipúblico e público participativo trazem como premissa o debate face a face na esfera pública, seja no espaço público ou em um arranjo organizado pelo poder público, sempre com vistas a um entendimento acerca de um problema ou solução, não necessariamente chegando a um consenso, mas interagindo de modo coordenado sem perder de vista que os sujeitos participantes são interessados. Além disso, o conceito de contrapúblico sugere uma perspectiva mais associada a embates, disputas, como, por exemplo, processos discursivos e performativos de construção de identidade.
O sentido do incremento democrático tem muito a ganhar quando busca criar e consolidar espaços para o caminhar do/no coletivo. Efetivamente, a busca por termos justos de cooperação política em uma sociedade democrática coloca os indivíduos em situações corriqueiras e excepcionais ao mesmo tempo, pois, de certo modo, somos treinados para a competição não cooperativa. É por isso que alguns argumentos deliberacionistas vão apontar que não basta estabelecer regras, procedimentos, é preciso cultivar em longo termo o compartilhamento de compromissos, as trocas de razões, a reciprocidade igualitária, a livre troca de opiniões que alimenta um fluxo discursivo necessário para os processos partilhados visando a construção de bens não particularistas.
Gutmann e Thompson (2004) apontam a necessidade de se reconhecer que procedimentos e condições podem gerar resultados injustos. Assim, criticam os procedimentalistas puros, que, de certo modo, assumem como justificativa para determinados resultados o simples fato de este estar de acordo com seus princípios substantivos. Para esses autores, os princípios devem ser moralmente provisórios, agregando à deliberação o que chamam de reciprocidade, ou seja, troca de razões que podem racionalmente implicar acatar as razões que os outros oferecem nesse mesmo propósito, fazendo com que todos os afetados possam ser levados a reconhecer outro ponto de vista sobre um assunto ou problema. Cohen (2009) sugere um modelo ideal de deliberacionismo, normativo e não procedimentalistas, ancorado em algumas regras básicas: (i) livre: sem constrangimentos; deliberação legitima as decisões; (ii) troca de razões: todos podem argumentar; as escolhas são coletivas; (iii) partes são iguais: formação da agenda compartilhada; regras não garantem distinções; (iv) consenso racionalmente motivado: regra da maioria; compromisso por razões persuasivas.
Fraser (1992) propõe o conceito de públicos subalternos ou contrapúblicos2 questionando a capacidade de os meios institucionalizados darem voz aos grupos tradicionalmente excluídos – geralmente constituídos por mulheres, negros, homossexuais, trabalhadores –, os quais, ainda que excluídos, participam da formação do debate, fazendo circular contradiscursos nas esferas paralelas.
Nessa direção, Young (2001) aponta para a necessidade de se pensar em uma democracia comunicativa performática baseada nos dissensos, nas multiplicidades de grupos e camadas sociais, nos pluralismos narrativos que devem compor a cena política em suas dimensões afetivas, emocionais, biográficas, corpóreas. A autora aponta para os efeitos paralisantes da busca por consensos amplos, reforçando a ideia de que o deliberacionismo deve incorporar conflitos, protestos, para além do diálogo e da persuasão.
Tavares (2012) reconstrói um pouco desse debate ao apontar que o deliberacionismo puro também pode gerar imobilismo justamente se cair na tentação de afastamento das práticas ativistas consideradas mais radicais.
No Brasil, o debate sobre deliberação pública tem encontrado solo fértil nos movimentos sociais, populares e comunitários, que, desde a década de 1970, clamam por maior participação dos indivíduos nos processos deliberativos, principalmente dos sujeitos excluídos das esferas de decisão pública (DOIMO, 1995; GOHN, 1997; MAIA et al., 2021; HOROCHOVSKI et al., 2019), e também nos movimentos que trazem a perspectiva geracional para o debate, considerando a condição de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, incluindo o direito de participação.
Os anos 2000 foram marcados por uma acentuada demanda para o protagonismo e participação da juventude nos seus mais diversos modos de expressão e formação de minipúblicos situados além das esferas convencionais de participação desses indivíduos, como o movimento estudantil e partidos políticos. Por meio de coletivos organizados em torno de movimentos de expressão artística, de questões raciais, ambientais, de gênero e de outras demandas, os jovens vêm tensionando o modus operandi da política – assim como o que poderia ser tomado como público –, a linguagem e forma de ação consideradas legítimas e, principalmente, os sujeitos autorizados a dela participar a fim de construir uma forma de engajamento condizente com seus anseios (SILVA; CASTRO, 2013).
Nesse processo, um dos aspectos mais questionados da política formalizada tem sido o da representação devido ao fato de, muitas vezes, não possibilitar a visibilidade das demandas e reivindicação de indivíduos situados à margem dos processos decisórios, alocados nessa situação por razão de uma conjunção de desigualdades – social, racial, de gênero, geracional, entre outras –, responsáveis pela reprodução de uma desigualdade política.
2 – Originalmente debatendo o conceito de esfera pública proposto por Habermas, em 1962.