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Escuta e diálogo: crianças e jovens na formação de minipúblicos potentes para a construção de políticas inclusivas

Conclusão

Um dos questionamentos mais severos nos argumentos participativistas e deliberacionistas está relacionado ao problema da escala. Mesmo considerando as facilidades que surgiram com as novas tecnologias interligadas por redes on-line, ainda assim é inegável que o problema da escala permanece como obstáculo ao agir na esfera pública e nos obriga a buscar por soluções para responder sobre onde, quando, por que e de que modo os indivíduos poderiam cumprir a sua tarefa ou apenas o seu desejo de refletir, trocar e agir na política.

Para Dryzek (2000), as deliberações da vida real não incluem a maioria dos afetados, seja por restringir os direitos à participação, seja por desrespeitar a autonomia discursiva e as diferenças, seja pela simples inexistência de arenas deliberativas. O autor sugere que uma boa forma de estimular a participação dos indivíduos nas deliberações seria incrementar a competição de discursos na esfera pública, incluindo o que seria o fluxo discursivo virtual. Independentes de um procedimentalismo, essas redes discursivas democráticas, não verticalizadas, baseadas em princípios de igualdade e reciprocidade, colocariam a deliberação em outro patamar, pois não implicariam custos para a participação e não requereriam do Estado o investimento em fóruns, assembleias e similares.

O problema, no entanto, é que essa competição discursiva na esfera pública virtual5 está impregnada e, de certo modo, até o momento, dominada por grupos que têm por objetivo predar as instituições democráticas. O que aconteceu com a esfera pública virtual, na última década, foi uma invasão do conservadorismo, que retroalimenta e alimenta o cotidiano de milhões de pessoas com notícias falsas, discursos antipolíticos e de ódio. Portanto, quando falamos do fluxo discursivo na esfera pública, temos que compreender que há embates, disputas, desrespeito, injustiças, separações.

O problema vai além do que poderia ser apenas embates e disputas discursivas, pois, de fato, a poluição da esfera pública com ideologias e práticas conservadoras gera um impacto bastante negativo e preocupante nas escolhas dos cidadãos, especialmente nos processos eleitorais, quando o público vai às urnas decidir sobre a representação política.

Além disso, expõe as arestas do debate geracional e de autoridade em todas as suas tristes reentrâncias. Por exemplo, é sabido que, tradicionalmente, no ocidente, crianças e adolescentes têm pouco ou nenhum direito à fala quando o assunto envolve decisões. São sujeitos considerados não capazes de discernir e, por isso, são tutelados. Aqui há um erro grosseiro de entendimento do que seria ou poderia ser o agir político democrático, pois restringe o procedimento terminativo da política que diz respeito ao decisionismo que tomou conta da política institucionalizada. Ora, mas o fazer político deveria ou poderia envolver uma série de etapas preliminares, que envolvem conhecer os concernentes, ouvi-los e propiciar formas de trocas de opinião. São etapas relativas ao tempo da deliberação que não necessariamente precisam culminar em decisão.

Nesse sentido, é de suma relevância a conversação entre poder público e sociedade civil na busca por ampliar e fomentar as pequenas arenas de debate, de trocas, de escuta. Os minipúblicos podem ser esse espaço em que a economia deliberativa atende não ao apelo dos custos operacionais, de tempo e de escala, seja para o Estado, seja para o cidadão, mas atende ao propósito de colocar os cidadãos concernentes em uma arena face a face, mesmo que seja numa sala de conversa mediada por tecnologias em rede.

Neste artigo trouxemos um exemplo de prática de fomento às trocas por meio do incentivo à participação em uma arena que viabiliza atos de fala e de escuta, atos de troca, voltadas para um público que notadamente não tem voz quando o assunto envolve política e decisões políticas que vão ter impacto na vida cotidiana, como os espaços escolares, os equipamentos culturais, entre outros. Viabilizar essas trocas envolvendo crianças, adolescentes e jovens, mesmo que ainda em caráter experimental, controlado por meio de parceria entre a academia e o poder público, tem um caráter de inovação social de grande relevância. Além disso, permite que a política – assim como os seus procedimentos, incluindo a representação – seja ocupada e construída a partir da pluralidade dos diversos atores. O fazer democrático dependerá da construção de espaços de diálogo que abrigam as diferentes falas e demandas dos indivíduos, e não espaços confessionais constituídos por especialistas que ditam o que pode, deve, cabe e, em última instância, o que seria a verdade.

5 – Estamos chamando de esfera pública virtual apenas para demonstrar uma abordagem relativa ao que ocorre na internet. Afinal, a esfera pública é a mesma, independentemente se o fluxo informacional está sendo viabilizado em redes conectadas por equipamentos ou se está ocorrendo em um ambiente que facilita a presença in loco e junta dos participantes.

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Resumo

Neste artigo analisamos, em uma perspectiva interdisciplinar, aspectos teóricos dos conceitos de representação, participação e deliberação, objetivando pôr em questionamento a participação em arenas que viabilizem atos de fala e de escuta, atos de troca, tais como os minipúblicos. No caso, elegemos como exemplar as iniciativas voltadas para crianças e jovens por tratar-se de um público cuja voz é notadamente silenciada quando o assunto envolve política e as decisões políticas que vão ter impacto na vida cotidiana, como nos espaços escolares e nos equipamentos culturais. Para ilustrar a análise, apresentamos uma experiência fomentada pela Prefeitura do Rio de Janeiro que objetiva abrir espaço de fala, escuta e troca para crianças com vistas a obter subsídios para a implantação de ações e políticas públicas relacionadas às necessidades locais para redução de vulnerabilidades em territórios periféricos.

Palavras-chave: crianças e jovens, minipúblicos, deliberação pública, participação política.

Escucha y dialogo: niños y jóvenes en la formación de minipúblicos potentes para la construcción de políticas inclusivas

Resumen

En este artículo analizamos desde una perspectiva interdisciplinar aspectos teóricos de los conceptos de representación, participación y deliberación, con el objetivo de poner en cuestionamiento la participación en arenas que viabilicen actos de habla y de escucha, actos de intercambio, tales como los minipúblicos. En ese sentido, elegimos como ejemplar las iniciativas para niños y jóvenes por tratarse de un público cuya voz es silenciada con notoriedad cuando el tema implica política y las decisiones políticas que tendrán aspecto en la vida cotidiana, como los espacios escolares y los equipamientos culturales. Para ilustrar el análisis, presentamos una experiencia fomentada por el gobierno de la ciudad de Río de Janeiro, que objetiva abrir espacio de habla, escucha e intercambio para niños, con vistas a obtener subsidios para la implementación de acciones y políticas públicas relacionadas con las necesidades locales de reducción de vulnerabilidades en territorios periféricos.

Palabras clave: niños y jóvenes, minipublicos, deliberación pública, participación política.

Listening and dialogue: children and young people in the formation of powerful minipublics for the construction of inclusive policies

Abstract

In this paper we analyze, from an interdisciplinary perspective, theoretical aspects of the concepts of representation, participation and deliberation in order to discuss participation in arenas that enable speech and listening acts, exchange acts, such as minipublics. In this case, we chose as an example initiatives directed towards children and youth, since they are a public whose voice is notably silenced on questions involving politics and political decisions that have an impact on daily life, such as at schools and cultural equipment. To illustrate the analysis, we present an experience promoted by the city of Rio de Janeiro that aims to open space for children to speak, listen, and exchange experiences in order to guide decisions concerning public policies related to local needs and the reduction of vulnerabilities in peripheral territories.

Keywords: children and youth, minipublics, public deliberation, political participation.

Data de recebimento: 31/08/2021
Data de aprovação: 27/09/2021

Conceição Firmina Seixas Silva conceicaofseixas@gmail.com

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Doutora em Psicologia (IP-UFRJ), Brasil, e Professora Adjunta Faculdade de Educação-UERJ/ Departamentos de Estudos da Infância-DEDI; Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Infância, Adolescência e Juventude (NIAJ-UFRJ), Brasil.

Giselle Arteiro Nielsen Azevedo gisellearteiro@fau.ufrj.br

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Arquiteta, Doutora em Engenharia de Produção (COPPE-UFRJ) e Professora Associada FAU-UFRJ e PROARQ-FAU-UFRJ; Coordenadora do Grupo Ambiente-Educação (GAE) - PROARQ-FAU-UFRJ; Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Infância, Adolescência e Juventude (NIAJ-UFRJ), Brasil.

Heloisa Dias Bezerra heloisa.bezerra@unirio.br

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil. Doutora em Ciência Política (IUPERJ), Brasil, e Professora Associada FCS-UNIRIO; Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Infância, Adolescência e Juventude (NIAJ-UFRJ), Brasil.