Foto: Marlene Barros

Mãe social: a construção de um paradigma de cuidado materno nos espaços de acolhimento institucional

Esse artigo pretende discutir o trabalho de mães sociais, profissionais que atuam como cuidadoras nos espaços de abrigos e devem proporcionar um ambiente familiar para crianças e adolescentes. O nome mãe social, que mistura maternidade e seus sentidos privados à uma dimensão pública, junto com o fato de receberem salários para exercerem cuidados maternos, indica a hibridez em sua função. Se, por um lado, a expressão evoca, em primeiro plano, a figura da mãe, de família, por outro tira-a, em certo sentido, da esfera doméstica. É mãe, mas de muita gente, de pessoas de diferentes origens, sem laços prévios. E cumpre uma função que é social, a de cuidar e proteger aqueles que se encontram em uma situação especial por sua condição.

A ideia de pesquisar sobre o tema mãe social surgiu em 2007, ano do início da parceria entre as equipes de estágio da Psicoterapia de Casal e Família e da Psicologia Comunitária, ambas ligadas ao Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Universidade Veiga de Almeida, para atuação no Projeto Aluno Residente, em um CIEP1 na cidade do Rio de Janeiro, no qual havia abrigos com mãe social.

Antes de entrar em contato com a mãe social dessa residência, esperávamos nos deparar com outro tipo de realidade. Na verdade, imaginávamos sua figura como a de uma mulher sem vínculos familiares, que permanecia o tempo todo dentro do CIEP, com outras obrigações além daquela de cuidadora de crianças e adolescentes. Pensávamos que seria uma pessoa apenas com uma preocupação maior com esses jovens, e não alguém que estivesse no lugar de mães destes.

Contudo, para nosso estranhamento, nos deparamos com uma mulher que fazia daquela residência, além de um local de trabalho, o seu próprio lar, já que havia perdido o seu em uma grande enchente, além de estar levando consigo marido, filhos e até um neto. Assim, ela era alguém que ficava na casa mais tempo do que imaginávamos, cozinhando, limpando e exercendo outras tarefas domésticas – a encarnação de um estereótipo de maternidade, distinto inclusive do mais tradicional visto no cotidiano. Cada espaço da casa parecia estar marcado não só com as histórias das crianças, mas também com a própria história2.

Essas características das casas das mães sociais tinham o intuito de fazer com que os jovens se sentissem em casa. Esses lares, chamados de casa-lar pelas Aldeias SOS3 e de residência pelo PAR (Projeto Aluno Residente), foram todos arquitetados baseando-se em características de casas de camadas médias, com o objetivo de reforçar ainda mais a ideia de família e oferecer um espaço diferenciado para as crianças e adolescentes abrigados. Assim, nessas casas encontramos salas arrumadas com sofás, mesas e até mesmo porta-retratos, marcando momentos e lembranças presentes naquele local; a cozinha, com armários, geladeiras e mesa onde todos fazem as refeições juntos; os quartos, um para os meninos e outro para as meninas, marcados por características consideradas no senso comum como sendo de cada sexo: o azul, com carrinhos, para os meninos, e o rosa, com bichinhos de pelúcia, para as meninas. Encontramos até mesmo cachorros, que transitavam pela instituição, adotados por algumas das mães sociais, e que recebiam também cuidados das crianças e dos adolescentes.

Esses encontros, que produziram em nós diversas inquietações, tiveram como produtos a construção de uma monografia de conclusão do curso de Psicologia e a elaboração da dissertação de mestrado de uma das autoras. Como parte das pesquisas produzidas, este trabalho pretende se debruçar sobre as tensões que a figura da mãe social gera, por integrar proteção e controle, sob supervisão do Estado, refletindo em que medida esse exercício facilita a garantia de direitos de crianças e adolescentes em abrigos. Para tanto, primeiramente iremos contextualizar a criação da profissão, para depois colocar em análise as tensões que permeiam o controle e a proteção que atravessam a vida das crianças e adolescentes institucionalizados.

1 Centro Integrado de Ensino Público

2 A lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009, traz algumas alterações bastante consideráveis sobre os cuidados com a infância, dando fim legal às mães sociais. No entanto, a pesquisa realizada ocorreu exatamente no momento dessa transição, de início de aplicação dos novos princípios legais, sendo que a maior parte do campo se deu antes da implementação da lei. Assim, foi possível trabalhar ainda com as mães sociais, figuras que aos poucos vão deixando de existir, apesar da resistência de instituições que insistem neste formato, já sem cobertura legal.

3 Ongs Internacionais que acolhem crianças e adolescentes entre 0 a 18 anos, as Aldeias SOS eram a instituição mais conhecida por trabalhar com mães sociais.

Daniela Ramos de Oliveira danirusso2003@yahoo.com.br

Psicóloga, Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil.

Anna Paula Uziel uzielap@gmail.com

Psicóloga, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora associada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil.