Entre cuidados e perigos: higiene e maternidade em dinâmicas racializadas
Como abordamos acima, há um movimento passível de ser constatado, no qual a figura materna, em termos do seu papel na reprodução física e social dos corpos e coletividades, torna-se lócus das políticas de superação da pobreza. No caso do Programa de Cisternas, o acionamento do lugar das mães implica que, no desenrolar da sua implementação, as mulheres sejam as principais envolvidas nas etapas pedagógicas, isto é, nos chamados cursos de capacitação. A maior participação de mulheres nesses cursos não se dá apenas por elas serem privilegiadas na intervenção estatal, mas também pelo fato de os homens trabalharem mais com atividades fora de casa do que as mulheres, o que diminui a possibilidade de participarem nessas atividades, que geralmente duram o dia todo. Porém, acredito que por esses cursos versarem sobre o uso e a gestão da água no cotidiano, atribuição essa que recai mais fortemente sobre as mulheres, elas são mais impelidas a neles participar, ao invés dos homens.
Os cursos são etapas necessárias e obrigatórias ao recebimento da cisterna e, como me disseram os gestores, são “uma escola”, isto é, cumprem uma certa função de “formação e mobilização” característica desse modelo de gestão de políticas públicas de superação da pobreza, marcado pela participação. Durando em média dois dias, essas atividades abordam assuntos diversos e variam muito de acordo com o lugar onde ocorrem e a entidade que as oferecem. Contudo, possuem um núcleo mais duro e fixo, que trata do “gerenciamento dos recursos hídricos” ou “GRH”, na palavra dos técnicos.
O “GRH”, nome dado ao curso, é requisito para obtenção da cisterna de 16 mil litros, que é voltada apenas para o consumo doméstico do núcleo familiar, ao menos em princípio. A justificativa dos especialistas nessa área para tal é que 16 mil litros é a quantidade de água necessária para uma família de sete pessoas beber e cozinhar pelos oito meses que, em média, correspondem à estiagem no semiárido brasileiro. Sendo assim, é recomendado expressamente no “GRH” que a água da cisterna seja utilizada apenas para os fins prescritos: “beber, cozinhar e, no máximo, escovar os dentes”, disse Anderson, “facilitador” de um dos cursos que acompanhei e que descreveremos aqui.
Ao calcular os 16 mil litros como suficientes, pressupunha-se que as famílias teriam no máximo sete integrantes, compostos por um casal heterossexual e cinco filhos, e que a água seria utilizada somente por um núcleo familiar, algo que em Liberdade não acontece na prática.
Quando mencionou esse número-base para o tamanho das famílias nucleadas, Anderson provocou uma discussão entre as presentes. Ele perguntou ao público quantos filhos em média as mulheres tinham em Liberdade. Ao responderem, uma senhora disse que isso podia variar muito e o fez acenando na direção de Esmeraldina7, única mulher assumidamente quilombola no curso, acrescentando: “tem gente que tem pra mais de dez filhos, lá [referindo-se aos quilombolas] tem gente com muito filho”. Esmeraldina, um tanto constrangida, respondeu a seguir que “sim, no pé daquela serra (fazendo referência ao lugar geográfico compreendido como o quilombo), tem bem mulher com mais de dezesseis filhos”. Sem citar nominalmente, ela fala da esposa de um sobrinho seu, conhecida na comunidade por ter muitos filhos e que acabara de dar à luz naquele mês.
Essa situação aparentemente corriqueira, contudo, guarda sentidos muito densos sobre as dinâmicas morais envolvidas na maternidade e na relação com as crianças. Conversas sobre filhos, momento, número ideal e desejo ou não de tê-los eram constantes na interação com minhas interlocutoras. Por um lado, havia uma pressão para tê-los, algo muito comum em localidades para além de Liberdade, que se repercutia até mesmo sobre alguém de fora como eu, ao se espantarem pelo fato de não ser mãe, quando, para as pessoas de lá, já deveria sê-lo. “Quem tem um, não tem nenhum e quem tem dois, tem um” era um ditado que ouvi diversas vezes em tom bem-humorado entre as mulheres. Assim como entre os homens, esse assunto rendia piadas entre elas, ainda que o ditado contenha um ar de cobrança em relação àquelas que optam por ter apenas um ou dois filhos.
O assunto dos filhos não era algo somente relativo ao universo das mulheres. Dentro dos limites do meu contato socialmente permitido com homens da comunidade, presenciei algumas ocasiões em que estes falavam de filhos e da paternidade. A maioria delas foram brincadeiras sobre uma possível infidelidade de suas companheiras ou de terem filhos não reconhecidos por eles. Uma situação específica me chamou a atenção. Quando estava com uma técnica que executava as cisternas na comunidade, ela perguntou a um dos pedreiros, o mais velho, se ele tinha “menino”. Ele disse que sua mulher tinha 12 “registrados”, fora os que estavam “pelo mundo”, o que arrancou risos dos demais presentes. Essa situação ilustra as dinâmicas desiguais que regem o exercício da maternidade e da paternidade, nas quais homens podem não saber quantos filhos têm, enquanto as mulheres são alvo constante do controle comunitário e estatal sobre seus corpos e desejos.
De todo modo, havia um cálculo moral em torno da quantidade de descendentes e da circunstância a partir das quais a maternidade deveria ser exercida. Fora do casamento, por exemplo, era algo vergonhoso, bem como ter menos de dois filhos ou filhos em excesso, como a sobrinha de Esmeraldina, não era bem visto. Essas prescrições, contudo, variavam muito em termos geracionais. Se nos anos 1980, ter dezesseis descendentes poderia ser visto como algo normal, ou ao menos socialmente aceito como tal na localidade, para minhas interlocutoras com idade entre 20 a 30 anos, isso seria impensável e elas comentavam o desejo de ter entre 2 ou 3 filhos. Para suas mães e avós, estas com mais de 50 ou 60 anos, a maioria delas mães de mais de 5 filhos, a quantidade desejada pelas jovens é considerada insuficiente.
Eulália (Lila), a irmã mais nova de 16 irmãos, e hoje com 46 anos, era quem mais gostava de comentar esse assunto, talvez por passar frequentemente por situações nas quais é cobrada e perguntada sobre se teria mais filhos ou não (ela possui 3). Por ser a filha mais nova, estava muito mais próxima em termos geracionais de suas sobrinhas mais velhas do que de sua irmã Berenice, 20 anos mais velha que ela. Em uma de nossas conversas, ela conta um pouco das razões de não ter mais “menino”:
Eulália: Custódia daí em cima, que é a mulher do meu sobrinho. Todo ano um filho […]. Salário maternidade é bom […], é bom, mas não dá pro menino crescer e rapar a barba comendo aquele salário. A pessoa tem que pensar isso aí […], por isso que a pessoa tem que parar. Porque se não parar, for tendo só filho, só filho, só filho, depois fica a tulhona de filho […] que a pessoa não tem o dinheiro pra comprar um calçado […]. Que nem uma Lia da venda, do mercadinho, disse assim: ‘Oxente, Eulália, tu não vai ter mais menino, não?’; Eu digo: ‘Não, eu não vou querer mais não’; ‘Por quê? Os outros tudo têm mais do que tu e tu não tem’; eu digo: ‘Não, eu não vou querer não. Sabe por quê? Porque é pouca terra pra muito herdeiro’ […]. É mesmo, não é? Porque, oh, uma terrinha desse tamanho aqui, se tiver um rebanho de filho, vai ficar brigando […]. A pessoa tem que pensar nisso aí.
Falávamos sobre as políticas sociais vindas nos últimos anos para a comunidade e Lila mencionou o salário maternidade, quantia paga àquelas que se ausentam do trabalho pelo nascimento do filho ou adoção. Ao falar da importância desse salário, ela menciona mais uma vez a mulher do seu sobrinho, a quem Esmeraldina (irmã de Lila) já se referira sem citar e que é sempre um ponto de comparação negativo, a partir do qual as mulheres avaliam o exercício da maternidade. Em outros momentos, para além dessa entrevista gravada, ela comentou as pressões que sofreu para “ter mais menino”, algo que ela não desejava, levando em conta que suas atribuições significavam não só pensar nos recursos materiais para o desenvolvimento deles (terra, dinheiro, comida), mas também dar conta das suas preocupações, desejos e anseios.
A fala de Lila, por sua vez, articula-se ao que se passou no curso, da senhora apontar para Esmeraldina ao designar onde “tem gente com muito filho”. Além das dinâmicas acusatórias relativas à comunidade, Lila estava ciente e refletia sobre o imaginário social que recaía sobre ela, mulher negra, sertaneja e pobre que, em um senso comum preconceituoso e racista, aparece como quem tem mais filho do que pode criar, ou que os tem para receber o Bolsa Família e demais esmolas, como esse discurso se refere às políticas e direitos sociais de combate à pobreza.
Essas acusações, contudo, mostram que as justificativas e moralidades em torno da maternidade e do número de descendentes não incidem do mesmo modo para todas as mulheres, ainda que residentes de uma mesma comunidade rural. Ao apontar para Esmeraldina, a única pessoa assumidamente “quilombola” presente no curso, aquela senhora sinalizava para um grupo social sobre o qual recai mais fortemente a acusação de ter filhos demais. Como trabalhos acerca das hierarquias reprodutivas têm demonstrado (Mattar; Diniz, 2012), há uma produção de legitimidades desiguais acerca da maternidade que colocam em questão marcadores sociais da diferença, tais como raça, classe, idade e parceria sexual.
A expectativa de que as mulheres gerem descendentes não é uma realidade para todas, ainda mais tendo em vista que algumas delas são consideradas incapazes para isso, tal como as práticas de Estado relativas à esterilização compulsória de mulheres negras e periféricas sinalizam8. Além disso, como notou Fernandes (2017), podemos dizer que a maternidade vista em seu lado ruim aponta para fronteiras e jogos de produção de sexualidades femininas erradas que aparecem, no discurso popular e estatal, como fonte de diversos problemas sociais, como a violência policial, o tráfico de drogas e a pobreza.
Em Liberdade, o número de filhos se articulava a um outro dispositivo moral sobre as mães: a avaliação constante sobre a higiene e o cuidado com as crianças. Higiene aqui está sendo tomada como um termo amplo, referindo-se a um cuidado sobre si e os seus — as práticas de asseio do corpo, sua limpeza, o estado e conservação das roupas, etc. — e também à dimensão pública que esses hábitos implicam, isto é, uma forma de construir-se na relação com os outros. Na situação a que nos referimos acima, a sobrinha de Esmeraldina, aquela que tem “menino demais”, é conhecida também por seus filhos nem sempre estarem dentro dos padrões de asseio e as mulheres, frequentemente, ao não permitirem que seus filhos saiam de casa sujos, diziam que não queriam que eles se parecessem com os dela.
A água, na sua interação com os corpos, conectava-se, portanto, ao exercício prescrito do cuidado e da maternidade, pois a higiene das crianças era constantemente um referente a partir do qual se julgava uma boa mãe. Vestir-se com dignidade, com roupas em bom estado de conservação e principalmente limpas era algo muito valorizado no universo em questão. Apresentar um corpo asseado constitui uma forma de colocar-se publicamente, de ser visto aos olhos dos outros. As crianças, a depender da idade, já eram responsabilizadas por esses atos, contudo, as menores, como não se limpavam e nem se banhavam sozinhas, ficavam a cargo de suas mães e também de suas avós. Certa vez, estava indo à venda na companhia de duas adolescentes e da filha pequena de Joana, filha de Esmeraldina e minha anfitriã na comunidade. Estávamos quase saindo do terreno, mas Joana fez questão de que voltássemos para que sua filha mudasse de roupa e penteasse o seu cabelo: “Se a menina sai assim, vão até pensar que não tem mãe”, ela disse.
Esses cuidados, perigos, cobranças e prescrições em torno das mães e das crianças não podem ser compreendidos sem levarmos em conta, também, as dinâmicas racializadas pelas quais eles se davam. Como mencionado acima, as mulheres negras dessa comunidade eram sobre quem mais incidia a acusação de ter filhos demais. Ao colocar em eco essa censura com a problemática da violência contra jovens negros periféricos, vemos como não se trata de um problema localizado, mas de um componente estrutural de responsabilização dessas mulheres pela sua pobreza e pela violência decorrente (a exemplo de proposições nefastas de políticos defendendo a esterilização como pré-requisito para acessar o Bolsa Família9).
Mais uma vez, a apreciação sobre as crianças aciona esse lado ruim da maternidade do qual fala Fernandes (2017) e que se conecta com a produção diferencial de possibilidades do exercício do bom cuidado que leva à boa educação. As mães que têm “uma tulha de filhos ou são desleixadas”, mães essas cujos corpos se definem na intersecção entre classe, raça e geração, são aquelas que mais frequentemente são acusadas de não saber lidar e cujos filhos são censurados por brigar demais, como me disse Ângela, sobrinha de Esmeraldina e também quilombola, ao contar quando sua filha fora chamada de “imundiça” por uma colega de escola:
Ângela: Porque quando acontece uma bateçãozinha de boca, o nome que nós leva, nós leva o nome de imundiça. Imundiça que eu sei é um gato, um cachorro que vive brigando, são os animais, é um galo de raça e aqui ninguém é galo de raça. Imundiça é cachorro.
A fala de Ângela expõe como os xingamentos e insultos de que são alvo acionam um léxico que conecta raça, sujeira e animalização. Como ela mesma diz, “imundiça”, que remete a algo sujo, imundo, é um desígnio para animais, galos, cachorros e não para seres humanos. A animalização como um dispositivo de dominação é tema abordado por Fanon (1968), que mostra como esse mecanismo opera pela destituição da humanidade do outro (o negro, o indígena, o colonizado), no sentido de subjulgá-lo e aniquilar suas possibilidades de resistência.
Para as crianças, as dinâmicas que conectavam racialização e inferiorização eram também muito presentes. Em um dia, estava com Beatriz, filha de uma vizinha de Esmeraldina, e tentava ajudá-la com sua tarefa de casa. Beatriz perguntou algumas coisas pessoais, se eu era casada ou tinha filhos. Depois de sanar suas curiosidades, me chamou a atenção o fato de ela, sem me conhecer muito, dizer que, quando era criança, sua pele era branca como a minha e que fora o descuido de sua mãe, ao deixá-la muito tempo no sol, que a fizera ter a pele negra. O duro relato de Beatriz, para além de explicitar o racismo presente na socialização de crianças ainda tão novas, nos revela a responsabilidade que ela julga ter sua mãe na mudança de sua cor e, levando em conta que ela era fruto da relação com um homem casado, coloca em relevo mais uma vez as continuidades existentes entre a responsabilização das mães e sua conjugalidade, classe e raça.
Ainda, é importante registrar como havia uma ligação forte entre sujeira e brutalidade dos comportamentos, como a fala de Ângela explicita. Em diversos momentos, até mesmo entre pessoas da mesma família, havia uma conexão entre crianças que não estavam dentro dos padrões de asseio e aquelas que eram normalmente censuradas por serem arteiras, provocadoras ou, nas palavras de lá, “perigosas” ou “viradas”. Parece curioso, nesse caso, como a palavra perigo aparece conectada à infância, o que contrasta com algumas das suas simbologias mais comuns, como inocência e pureza. Nas situações em que os meninos e meninas eram chamados de “perigosos(as)”, eles estavam justamente desafiando as ordens dos adultos e esse termo parecia atribuir uma intencionalidade à sua desobediência. Já uma criança virada tem origem em uma expressão popular maior, que é virado num mói de coentro que, dependendo do uso, pode designar alguém esperto ou que está progredindo na vida, mas no caso das crianças, designa alguém muito agitado.
A forma como as crianças se apresentavam publicamente, seja por meio das suas roupas, cabelos, asseio, seja pela forma como se comportavam, influenciava na apreciação coletiva, comunitária ou societária sobre determinadas mulheres. Do mesmo modo, as relações e situações familiares em que as diferentes crianças estavam inseridas eram referentes que supostamente as tornavam mais ou menos briguentas, arruaceiras, mal-comportadas. Como no caso de Beatriz que, pela situação conjugal de sua mãe, era alvo de desconfianças por parte de certas pessoas, que a julgavam ser criada de modo muito “largado”, isto é, sem a supervisão constante de um adulto. Nesse sentido, podemos intuir que o trabalho materno realizado nos corpos, isto é, na sua higiene e limpeza, combinava-se e articulava-se a um outro, aquele relativo à formação e à educação. Uma criança limpa e bem-educada constituía assim um referente que conectava aspectos éticos e morais, valores e condutas, a dimensões corporificadas, como a limpeza e a higiene.
8 – O caso das adolescentes em situação de rua em Porto Alegre que tiveram métodos contraceptivos administrados sem consentimento aparece como mais um dos eventos no qual o controle e a interferência do Estado sobre os corpos femininos atinge sua manifestação mais nefasta Ver: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2018/07/26/iniciativa-do-mp-do-rs-para-implantar-contraceptivo-em-adolescentes-de-abrigos-e-alvo-de-criticas-em-porto-alegre.ghtml (Acesso em 02 ago. 2019). A isso, soma-se o terrível caso, no interior de São Paulo, de uma mulher esterilizada compulsoriamente por determinação da Justiça: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/12/politica/1528827824_974196.html (Acesso em 02 ago. 2019).
9 – Ver: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/bolsonaro-defendeu-esterilizacao-de-pobres-para-combater-miseria-e-crime.shtml (Acesso em 05 set. 2020).