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Narrativas (auto)biográficas de jovens lideranças: pedagogias emergentes na participação em grêmios estudantis

Das disposições metodológicas: as narrativas (auto)biográficas

Do ponto de vista metodológico, operamos com as narrativas (auto)biográficas enquanto abordagem qualitativa e a partir de um movimento de pesquisa-formação (Passeggi, 2010; 2015; Passeggi; Nascimento; Oliveira, 2016; Delory-Momberger, 2014; Josso, 2010). Trata-se de uma atividade de biografização que “aparece assim como uma hermenêutica prática, um quadro de estruturação e significação da experiência por intermédio do qual o indivíduo atribui-se uma figura no tempo, ou seja, uma história que ele reporta a um si mesmo” (Delory-Momberger, 2014, p. 27), ao passo que também se leva em consideração o processo de heterobiografização, compreendido como o aprendizado que pode ocorrer ao se escutar as experiências de vida do outro.

Isto é, no âmbito deste artigo, apresentamos as atividades de biografização e heterobiografização por meio do en(tre)laçamento das narrativas (auto)biográficas dos jovens gremistas que participaram da pesquisa, enquanto um exercício hermenêutico prático, por parte dos investigadores e também dos estudantes participantes da pesquisa.

Os dados foram produzidos por meio de entrevistas-diálogo2 (Morin, 1996), objetivando um movimento aberto e sensível, acolhedor e respeitoso com a trajetória de quem (se) narra e vigilante às múltiplas possibilidades do movimento de contar-se ao outro por parte de quem escuta sensivelmente (Barbier, 1993; 2007).

Afinal, é nesse movimento dialógico de narrar e escutar, durante o processo de coleta de dados, que pode ocorrer o movimento de (re)olhar para si, convertido em dispositivo e objeto de reflexão e autorreflexão, portanto, também formativo. Segundo Machado (2005, p. 25):

[…] ao narrar, ao compor novamente a trama de suas vidas, o narrador revê a si mesmo e o mundo do qual participa. Ele se reconhece, se respeita. Etimologicamente, a palavra respeito vem do latim res-pectare (Cunha, 2001, p. 678), ou seja, re-espectar, rever. Ou seja, ao narrar-se os entrevistados entrelaçam suas histórias, como artistas, de uma maneira singular que lhes propicia um tempo e um espaço de re-olhar para si mesmo, reconhecendo-se.

A metodologia desta investigação está embasada, portanto, em uma abordagem epistêmica de que a narrativa de alguém sempre é afetada pela subjetividade de ambos, de quem narra e de quem o escuta, pois, como afirma Machado (2005, p. 35): “Aquele que escuta o narrador, em contrapartida, participa da vida dele, experimenta-a, numa escuta participativa. Além disso, aquele que ouve histórias narradas experimenta um ritmo, uma feitura artesanal”.

Operacionalmente, o convite para participar da pesquisa foi realizado a todos os integrantes dos grêmios estudantis da cidade de Mogi das Cruzes. Trinta jovens (30) se disponibilizaram a participar da investigação, produzindo narrativas orais e/ou escritas. Do ponto de vista da configuração do grupo de jovens participante, dezesseis (16) deles se identificam com o gênero masculino e quatorze (14) com o feminino, tendo entre 14 e 17 anos.

Para fins de identificação, os jovens autores das narrativas (auto)biográficas utilizadas neste artigo estão identificados com as iniciais dos seus nomes, idade e gênero. Ressaltamos ainda que a investigação que dá suporte a este artigo foi aprovada em Comitê de Ética de Pesquisa com seres humanos3. Além disso, todos os entrevistados assinaram um documento de assentimento, e os responsáveis consentiram que eles fizessem parte da investigação.

En(tre)laçando narrativas dos jovens gremistas: escuta e anúncio de aprendizagens em ambiências coletivas

O grêmio tem lados positivos e negativos. Um dos pontos positivos é que você aprende a trabalhar em equipe, amar as pessoas, apesar dos defeitos delas. Os pontos negativos é que nós temos que aprender a separar a vida pessoal da vida de gremista, vamos ter que abrir mão de algumas coisas para estar junto com o grêmio (G. B. L., 15 anos, gênero feminino).

Eu falava o tempo todo que eu odiava a escola, que eu queria sair da escola… na verdade, foram atitudes infantis que eu tive [e olha para o chão demoradamente], não cheguei a conversar com meu pai nem nada, não resolvia nada no diálogo. Eu lembro que um dia a gente estava lá, antes de ela me dar o papelzinho da suspensão, ela chegou em mim e falou assim: por que que ao invés de você mudar de escola você não muda a escola (L. M., 15 anos, gênero masculino)?

Ser gremista pode ser uma experiência de integração de aspectos positivos e negativos da vida em educação. Ao estudar o discurso educacional, especialmente por meio de narrativas (auto)biográficas de docentes, Machado (2005) afirma que se pode encontrar na escola discursos de “traços predominantemente novelescos” (p. 135), nos quais o narrador se biografiza, dicotomizando “a dinâmica do seu viver entre bom e mau, vítima e algoz” (p. 146). Para romper com os romantismos e os fatalismos na educação, portanto, se faz necessária uma pedagogia de ascese4 que exige uma “vontade de ir além de si, de viver em imanente desejo do tornar-se mais, permitindo-se viver, desanestesiadamente, sentindo os sabores das (con)vivências com mais intensidade, sejam elas prazerosas ou sofridas” (p. 39).

E, nesse processo de aprimoramento pessoal, toda a diferença pode ser feita ao encontrar um educador que confie no educando. Isso é evidenciado pela fala transcrita acima, de L. M. Nesse caso, o gremista narrador explicita o convite confiante feito pela diretora: “por que ao invés de mudar de escola você não muda a escola?”.

Ao rememorar sua história, o discente L. M. se biografiza, ou seja, entrelaça a intriga que compõe a sua vida (Ricoeur, 2010, p. 93), evidenciando a acolhida da gestora-educadora em forma de um convite: transformar a ameaça de um castigo-condenação de desterritorialização, pela mudança de escola, em energia capaz de mudar o seu arranjo territorial educativo. Trata-se de uma repreensão amorosa e convidativa, confiante e mobilizadora. Há, portanto, uma pedagogia da ascese que se anuncia como um possível caminho de transformação pessoal pela atuação coletiva do educando, no sentido de “ser mais”, um conceito chave para a concepção de ser humano em Freire (1987), como busca e luta pela humanização, possibilidade dos seres humanos transformarem o mundo e a si mesmos.

Além disso, ao se biografar, entrelaçando as tramas que compõem suas vidas, os jovens refletem e ressignificam suas trajetórias formativas em um processo de ascese, como quando a M. F. narra a respeito daquilo que denominou como sua “parte mais egocêntrica” antes de seu envolvimento com o grêmio estudantil, que deu lugar ao pensamento de grupo, de conjunto, de comunidade:

Todo mundo tem aquela parte mais egocêntrica, de querer se aparecer mais, de estar certo, mas daí, quando você fala isso em voz alta, você percebe que não é, dá até vergonha, porque você percebe que não é aquilo, que é muito mais bonito, muito mais verdadeiro, quando é em conjunto. Podem criar uma solução juntos, com visões diferentes (M. F., 17 anos, gênero feminino).

Acolher a diferença, aliás, parece ser, a esses líderes gremistas, algo importante e desejável. Percebem que é na diferença que se cresce e que a escuta é um aprendizado essencial que abre portas para outros tantos aprendizados. Além disso, demonstram clareza de que o que é ensinado na escola, para além dos conteúdos, serve para sua formação humana, afinal “ensinar é uma especificidade humana”, como destaca Freire (1996, p. 102).

Cada professor ensina um pouco. Cada um passa um pouco, então a gente junta isso tudo para formar nosso caráter, quem a gente é hoje. Para a gente questionar alguma coisa a gente tem que escutar. A gente tem que correr atrás para pegar mais informação. A escuta está valendo em tudo (G. C., 16 anos, gênero masculino, grifos nossos).

Ensinar e formar, questionar e escutar, mais do que verbos grifados na narrativa de G. C., revelam formas de conceber o papel social da instituição escolar e de compreender a relação pedagógica entre seus atores, na perspectiva dos processos de humanização. Ao ressaltar que “para a gente questionar alguma coisa a gente tem que escutar”, o narrador gremista incorpora em suas palavras uma compreensão prática de que, fazemo-nos gente5 e nos humanizamos com o outro, quando, em diálogo, escutamos. É em Freire (1996) que a relação ensinar-escutar merece destaque: “ensinar exige saber escutar”, ou seja:

[…] se o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele (p. 127-128).

Por sua vez, a jovem M. F. ressalta, em sua narrativa, o fato de que, em algumas circunstâncias, sua participação é reduzida a um papel meramente figurativo: “Mas quando a gente chegou lá, só estava a diretora falando. Os alunos só assinando a presença. Daí a gente começou a se articular com eles e abrindo estes pontos que têm dentro da escola. Porque não é só culpa da gestão”.

Entretanto, apesar de, muitas vezes, a participação dos gremistas ser oprimida por um discurso adultocêntrico, alguns participantes da pesquisa relatam encontrar alternativas de mobilização, especialmente ao atribuir às práticas do grêmio estudantil uma dimensão coletiva, que não se restringe: “[…] simplesmente ao ajudar. É participar e se engajar com questões acadêmicas, humanitárias, políticas e com a formação de um jovem para o mundo” (F. O. A., 15 anos, gênero masculino).

O sentido de participação, aqui mirado, está em sintonia e em diálogo com a perspectiva de uma disposição ético-estético-afetiva (Bedin, 2006), que se configura nos elos e na presença das vozes dos atores, na teia da escola. Uma escola que, apesar de todas as suas mazelas, é recheada de possibilidades de engajamento em prol de uma formação multidimensional: acadêmico, política e humanitária.

De maneira especial, destacamos a grande quantidade de alusões a essa última dimensão nas biografizações dos participantes da pesquisa. Há recorrentes alusões a ações criativas e coletivas impregnadas de solidariedade, de generosidade, de cuidado, de corresponsabilidade. Ou seja, os aspectos negativos da ambiência escolar e da sociedade são reconhecidos ao passo que os atributos positivos da rotina educacional são percebidos, em si mesmos e na coletividade, através de ações das agremiações estudantis:

Esse que eu acho que é o objetivo do grêmio. Mostrar para os alunos que eles têm caminho onde não tem nada. Mostrar para os alunos algo que eles pensam que é impossível, mas é possível. Aprendi uma coisa com a minha diretora que eu acho muito criativo: a gente está vendo um defeito na escola, por exemplo, aquela parede descascada. O pensamento deve ser: nossa, eu podia dar um jeito. Mas eu não vou tampar a visão e fazer de conta que não estou vendo aqui, porque eu estou vendo. Então eu posso mobilizar pessoas para correr atrás (M. F.).

Em suma, apesar da existência de um conjunto de problemas evidenciados no cotidiano da escola pelos jovens participantes da investigação, há ali, ao mesmo tempo, um potencial revigorante de transformação, por meio de uma “pedagogia da ternura que faz circular pela capilaridade escolar” (Bedin, 2006, p. 207).

As narrativas (auto)biográficas dos gremistas são reveladoras de que, pela dinâmica integradora de uma experiência educativa cotidiana compartilhada, muitas vezes, ativa emoções e afetividades, constituindo cimento de coletividade, de agregação. Assim, o que parece conferir o viver na escola é o gosto de ser vivida, que funda e constitui a força vital de agregação (Maffesoli, 1996, p. 121).

2 – Mesmo que as entrevistas tivessem uma intencionalidade e fossem orientadas por um roteiro de questões, no desenvolvimento dos encontros e do estar-junto com os jovens, elas se caracterizaram como “entrevistas-diálogos” (Morin, 1996). “Em alguns casos felizes, a entrevista se converte em diálogo. Este diálogo é mais que uma conversação mundana, é uma busca em comum” (Morin, 1996, p. 218).
3 – Cabe ressaltar que a pesquisa obteve aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa – CEP – Brasil, parecer nº 2.398.633.
4 – Do grego ασκησις: aprimoramento da mente, da alma. Exercício, prática, treino. Um modo, um estilo de vida (Liddell; Scott, s/d, p. 124).
5 – Ver o verbete “gente/gentificação” (Fernandes, 2018) no Dicionário Paulo Freire, ou mesmo em sua variação “gentidade”, invocada por Ana Freire na contracapa do livro Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire.
Alexsandro dos Santos Machado alexsandro.santosmachado@ufrpe.br

Doutor em Educação, Professor Adjunto do Curso de Pedagogia – Educação à distância da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil. Integra a Comunidade Reinventando a Educação e o Núcleo De Estudos e Gestão do Cuidado (CNPq).

Irene Reis dos Santos irene@coreduc.org

Investiga, no nível do mestrado, sobre os sentidos da participação da juventude – Universidad de la Empresa – UDE, Uruguai. Presidente da Comunidade Reinventando a Educação. Integra o Núcleo de Estudos e Gestão do Cuidado (CNPq).

Rafael Arenhaldt rafael.arenhaldt@ufrgs.br

Doutor em Educação, Professor Adjunto da Faculdade de Educação e Professor Permanente de PPGENSAU/FAMED da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Brasil. Integra a Comunidade Reinventando a Educação e o Núcleo de Estudos Educação e Gestão do Cuidado (UFRGS/CNPq).