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Narrativas (auto)biográficas de jovens lideranças: pedagogias emergentes na participação em grêmios estudantis

Considerações finais

Numa sociedade obcecada por rankings, a função social da escola parece ser reduzida a resultados em exames nacionais e internacionais, desconsiderando, muitas vezes, que a vida, em todas as suas formas, é experienciada no tempo presente. Outrossim, enfraquecem-se as experiências educacionais ao não se valorizar a escuta sensível das sabedorias herdadas por meio das histórias de vida dos sujeitos que compõem a escola.

Nesse sentido, a escolha metodológica deste trabalho pela escuta sensível de narrativas (auto)biográficas de jovens participantes de grêmios estudantis, espaço educativo não-formal dentro da ambiência escolar, foi uma opção epistêmica e metodológica para produzir e analisar dados, hermeneuticamente, a partir de processos de biografização e heterobiografização.

Inicialmente, constatamos que as narrativas dos jovens confirmam o que alerta Dinello (2007, p. 313): “a escola e seu conteúdo se sobrepõe aos procedimentos e se perde a possibilidade de implementar um processo em que o protagonismo pode ser assumido por quem aprende”. Como educadores e pesquisadores, caberia-nos também questionar se estamos confundindo educar com escolarizar. E, se escolarizando, não estaríamos limitando os conhecimentos àquilo que cabe dentro das disciplinas ou matérias escolares, compartimentando saberes que pouco se comunicam com a realidade para além dos muros da escola, ainda restritos a um paradigma instrucionista (Pacheco, 2019, p. 33), herança da primeira revolução industrial.

Nesse sentido, cabe relembrar que, ao analisar as narrativas (auto)biográficas dos jovens, este artigo teve como objetivo captar as pedagogias que emergem e se anunciam por meio das experiências de participação em grêmios estudantis. O movimento de (entre)tecer a escrita deste artigo, portanto, visibiliza e evidencia as narrativas (auto)biográficas orais e escritas de jovens que assumem posições de liderança em escolas.

Esse movimento possibilitou visualizar pedagogias emergentes nos processos de participação e de ambiências coletivas, bem como reconhecer múltiplas pedagogias, das quais destacamos, neste exercício de hermenêutica prática, uma tríade que estabelece redes de apoio, amparo e cuidado entre os sujeitos das comunidades de aprendizagens chamadas de grêmio estudantil. Ao longo do texto, as pedagogias foram sendo tecidas e aqui são reapresentadas de forma resumida e condensada:

Pedagogia da confiança: compreendida a confiança nos sentidos de: (i) ser honrado pela outorga da confiança alheia enquanto assunção de um lugar de representação e responsabilidade coletiva; (ii) ao ser “com-fiado” para assumir tais responsabilidades coletivas, isso produz no sujeito um ato de fé em si e na comunidade; (iii) tecer os fios da(s) vida(s) com o outro, em convivência, em colaboração e em comunidade.

Pedagogia do gesto: compreendido o gesto nos sentidos de: (i) ação intencional e deliberada para construção das condições de possibilidade para a transformação da gestão escolar, por meio de seus atores e da instituição grêmio estudantil; (II) prática intencional e deliberada de promover e gerar transformações na vida das juventudes; (iii) realizar gestos coletivos; (iv) fazer germinar novas formas de vida ao aprenderem a dizer sua palavra.

Pedagogia de ascese: compreendida a ascese nos sentidos de: (i) aprimoramento pessoal, através de processos de biografização e heterobiografização; (ii) convivências em ambiências coletivas, que produzem aprendizagens sociais, de vida, de comunhão e de transformação pessoal pela atuação em defesa da escola.

Tais pedagogias, frutos de um exercício de hermenêutica prática a partir da narrativa dos jovens, expressam sabedorias apreendidas com outros jovens, tecidas em um cotidiano de tomada de decisões, compartilhando conhecimentos entre seus pares. Ao mesmo tempo, a convivência com educadores, gestores e familiares, especialmente nas ambiências em que o diálogo e a escuta fluem, é valorizada e considerada importante ao dar-lhes suporte e desafiá-los a participar, ativamente, da produção do conhecimento e de outros mundos possíveis.

Cabe ainda ressaltar que as pedagogias, aqui apresentadas, não podem ser consideradas ou analisadas de forma estanque, como categorias isoladas. Muito pelo contrário. A tríade apresentada se constitui em uma sistematização de reflexões, a partir de processos de biografização e heterobiografização, que transversalizam e extrapolam qualquer tentativa de categorização simplista.

Nesse sentido, as narrativas desses jovens participantes reforçam quais experiências de participação foram fundamentais para o aprimoramento pessoal (ascese), mas isso só foi possível pelos diversos gestos de ações coletivas e participativas e pela confiança outorgada por seus pares, educadores, gestores. Podemos concluir, portanto, que o grêmio estudantil pode ser um espaço educativo e de transformação social por proporcionar convivências entre pares e agregar adultos que fazem parte da comunidade, da escola e das famílias, dialogicamente.

No âmbito metodológico, verificamos que o exercício da investigação, por meio de narrativas (auto)reflexivas, oral e escritas, de jovens estudantes gremistas, viabilizou encontros e interações dialógicas. Essa escolha, além de coerente com a abordagem epistêmica que fundamenta a análise hermenêutica de seu conteúdo, possibilitou a produção de dados como uma prática de escuta sensível adequada ao exercício reflexivo dos processos de biografização e heterobiografização dos jovens. E aos pesquisadores, possibilitou um movimento reflexivo e de sistematização da experiência investigativa.

Portanto, o que tecemos até aqui é um “em-se-fazendo”, um processo inacabado, uma contribuição e um convite para o “pensar-junto”, para um “estar-junto” sob e sobre pedagogias emergentes nos processos de participação juvenil.

Para concluir, reiteramos que este trabalho indica a necessidade de novas investigações sobre a complexa temática das juventudes, educação e participação, utilizando narrativas (auto)biográficas. A propósito, a palavra complexus pode ser compreendida como “o que é tecido junto, de constituições heterogêneas inseparavelmente associadas” (Morin, 2007, p. 13). Ou seja, não simplesmente reforçamos que seguiremos trabalhando com a temática, mas, ao afirmar que consideramos o tema complexus, indicamos um modo de fazer, uma abordagem epistêmica e metodológica, nesses sombrios tempos, de reinventar a educação (Morin; Díaz, 2016) e produzir ciência tecendo junto, com-fiando que a dialogicidade e a amorosidade são dimensões fundantes para tecer a vida.

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Resumo

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa sobre a participação de jovens de grêmio estudantil de escolas de Mogi das Cruzes, São Paulo, Brasil. Tem como objetivo analisar narrativas (auto)biográficas desses gremistas, captando pedagogias que emergem neste processo de implicação de si com o outro, em convivência. Perguntamos: o que pensam sobre a sua participação? Quais são os obstáculos e como conseguem superá-los? Qual é a importância do fomento ao grêmio estudantil para o desenvolvimento dessas juventudes? Metodologicamente, fizemos entrevistas-diálogo, gerando narrativas (auto)biográficas orais e escritas. Os dados foram analisados por meio de uma hermenêutica prática, a partir dos processos de biografização e heterobiografização dos entrevistados. Por fim, apresentamos reflexões sobre as pedagogias múltiplas e emergentes que estabelecem redes de apoio e amparo entre os sujeitos das comunidades de aprendizagens evidenciadas nas pedagogias da confiança, do gesto e da ascese.

Palavras-chave: narrativas (auto)biográficas, juventudes, pedagogias emergentes, grêmio estudantil.

Data de recebimento: 15/02/2020
Data de aprovação: 28/06/2020

Abstract

(Auto)biographical narratives of youth leaderships: emerging pedagogies in the participation of student councils

This paper shows the results of students’ participation in student council in schools from the city of Mogi das Cruzes, São Paulo, Brazil. Our purpose was to analyze the (auto)biographical narratives of the guild members, capturing pedagogies emerging from this process of implication of oneself with others, in interaction. We asked: What do they think about their participation? What are the barriers to their participation, and how do they manage to overcome them? How important is the promotion of the student council for the development of these young people? Our methodology was based on dialog-interviews, leading to oral and written (auto)biographical narratives. Data were analyzed through practical hermeneutics based on the processes of biographization and heterobiographization of respondents. We conclude by presenting reflections on the multiple, emerging pedagogies which establish networks of support and assistance among subjects in learning communities, as indicated by the pedagogies of trust, gesture and asceticism.

Keywords: (auto)biographic narratives, youth, emerging pedagogies, student council.

Alexsandro dos Santos Machado alexsandro.santosmachado@ufrpe.br

Doutor em Educação, Professor Adjunto do Curso de Pedagogia – Educação à distância da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil. Integra a Comunidade Reinventando a Educação e o Núcleo De Estudos e Gestão do Cuidado (CNPq).

Irene Reis dos Santos irene@coreduc.org

Investiga, no nível do mestrado, sobre os sentidos da participação da juventude – Universidad de la Empresa – UDE, Uruguai. Presidente da Comunidade Reinventando a Educação. Integra o Núcleo de Estudos e Gestão do Cuidado (CNPq).

Rafael Arenhaldt rafael.arenhaldt@ufrgs.br

Doutor em Educação, Professor Adjunto da Faculdade de Educação e Professor Permanente de PPGENSAU/FAMED da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Brasil. Integra a Comunidade Reinventando a Educação e o Núcleo de Estudos Educação e Gestão do Cuidado (UFRGS/CNPq).