Estratégias e táticas: construindo uma rede colaborativa de pesquisa
A pesquisa valeu-se de alguns dispositivos comprometidos com a sua dimensão política e com a visibilidade dos atores sociais, ao desvelar as tramas que os jovens constroem em circuitos autônomos e não prescritivos e buscar potencializar redes colaborativas.
Alguns dos dispositivos desenvolvidos ao longo da experiência cartográfica foram: (a) realização de grupos de diálogo, buscando tematizar as práticas culturais e a identidade social dos grupos/sujeitos participantes, a política cultural do município e o papel da Universidade, além da relação dos jovens com a cidade; (b) realização de oficinas de vídeo-arte que problematizaram e potencializaram o olhar sobre os fluxos e percursos da cidade, resultando nos vídeos “TRACEjando por Feira de Santana: pulsões criativas” e “H2F e Kin KenSei: uma poética das margens”[5]; (c) organização de uma mostra cultural[6] que envolveu a equipe de pesquisa junto com os jovens para a realização do Segundo Encontro Nacional de Grafitti em Feira de Santana (25 a 27 de setembro, 2014); (d) realização de Rodas de Conversa, por meio do intercâmbio entre os coletivos juvenis e pesquisadores convidados, dialogando com temas como: racismo, extermínio de jovens, apropriação criativa da cidade e a ressignificação do espaço urbano; (e) exposição fotográfica, com o acervo produzido pelos pesquisadores.
Fazendo um balanço, avaliamos tanto a dimensão estética quanto a dimensão política potencializadas pela pesquisa, assim como os seus limites. O mapeamento dos grupos possibilitou a identificação sócio-política e geográfica dos circuitos juvenis e a sua relação com os fluxos e dinâmicas da cidade, revelando as contradições entre a relação centro-periferia e as hierarquias de poder associadas à cultura hegemônica e cultura periférica. As oficinas criaram um tempo-espaço de trocas de experiências entre pesquisadores e pesquisados, num equilíbrio de poder que se constituiu como um saber-fazer compartilhado. Os grupos de diálogo revelaram momentos ricos para debater com os jovens o seu olhar sobre a cidade, a relação com a Universidade e as iniciativas gestadas por indivíduos ou grupos no cenário cultural da cidade.
As Rodas de Conversa[7] foram experiências de trocas e dissolução de fronteiras sociais, espaciais e simbólicas. A partir do diálogo com jovens lideranças de movimentos sociais e coletivos culturais as distâncias foram gradativamente reduzidas, na medida em que o respeito e a escuta permearam as relações. Permanecem, porém, algumas tensões entre as demandas sociais, sobretudo de grupos mais vulneráveis – muitas vezes criminalizados pela pobreza – e os discursos e práticas institucionais (acadêmicos, governamentais, jurídicos), revelando as forças contraditórias em jogo. O papel da esfera pública (polícia, instituições de ensino, secretarias de governos), em suas especificidades e singularidades e a atuação dos movimentos sociais estão permanentemente confrontados um pelo o outro, por suas diferenças, sejam políticas ou metodológicas. Tal balanço nos coloca diante do papel que a Universidade deve protagonizar no fortalecimento de redes colaborativas de pesquisa, que promovam discursividades não hegemônicas.
Considerações finais
A partir das produções no campo da pesquisa pudemos revelar que em Feira de Santana – BA diversos coletivos e grupos culturais juvenis vivenciam sua capacidade de expressão, potência criativa, sobretudo artística, e mobilizam formas de intervir, interpretar e construir sentidos sobre a cidade, sobre a cultura e o ser jovem. Essas questões acabam sendo o mote de boa parte dos grupos e coletivos juvenis que existem, em sua maioria, na periferia da cidade. Esses jovens passam a se envolver e tensionar o poder público em torno de questões como, por exemplo, a gestão dos espaços públicos ou a reivindicação por mais equipamentos culturais.
Afirmamos o sentido político da arte como uma “micropolítica das margens”, uma poética de luta e resistência numa sociedade fortemente desigual, e também o aflorar de identidades e sociabilidades juvenis construídas pelo afeto, pela liberdade, pelo respeito ao outro e pelo desejo de autorrealização. Uma juventude, enfim, que pela arte, singulariza-se, desafiando os modelos hegemônicos e prescritivos de existência (Ferreira, 2010, p. 118).
Assumimos o necessário compromisso ético com as diferentes vozes e a abertura para transversalizá-las, seja debatendo a criminalização do jovem de periferia e o racismo institucional, o genocídio do jovem negro, os territórios de exclusão ou a produção criativa que vem das margens.
Aprendemos com o movimento espontâneo, mas também organizado e criativo, de como os grupos promovem seus encontros nos espaços institucionais (a exemplo da escola, da universidade, dos centros de cultura, museus etc.) ou não formais, compartilhando suas produções e saberes e nos revelando o papel de educadores sensíveis, ampliando as experiências estéticas e a emergência de novas sensibilidades na formação de plateia e no encontro com o outro, quando a arte convoca o espectador como autor/ator. E, por fim, aprendemos com as suas linguagens artísticas e com os seus discursos que é necessário abrirmos os espaços canônicos e trazermos os transbordamentos da vida, que muitas vezes não cabem em currículos acadêmicos e/ou escolares.
[5] O primeiro, fruto de experimentações livres dos grupos participantes da oficina, sob a direção da Videomaker Ceci Alves e o segundo, resultado de um trabalho co-produzido pelo Diretor e Roteirista Diego Hasse e o grupo de pesquisa Trace, consistiu em um recorte de experiências e narrativas de dois grupos participantes da pesquisa (Apoio CNPq-MCTI/CNPq/MEC/CAPES Nº 18/2012).
[6] O referido evento para sua organização contou com os seguintes atores: Grupo de Pesquisa Trajetórias Culturas e Educação (TRACE), Coletivo Juvenil H2F, Colégio Estadual José Ferreira Pinto e o Museu de Arte Contemporânea Raimundo de Oliveira. E com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão da UEFS (PROEX), Departamento de Educação, CNPq, FAPESB e Prefeitura Municipal de Feira de Santana.
[7] A primeira teve como tema o diálogo entre arte, cultura e política, realizada no bairro Fraternidade em março de 2015; a segunda Roda teve como tema a apropriação criativa da cidade, realizada na Universidade em agosto de 2015 e com a participação de alguns artistas (Charles, Coelho, Kbça Grafite, Léo EZ) e do professor Paulo Carrano (UFF) e a terceira Roda de Conversa ocorreu no espaço da Universidade, em maio de 2016, intitulada Juventude Plural em territórios de exclusão, com a participação de Movimentos Sociais (Levante da Juventude; Movimento Nacional de Moradores de Rua; Pastoral da Juventude), Coletivos Juvenis e operadores de políticas públicas (Conselho Estadual de Juventude)
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Resumo
O artigo trata de uma pesquisa-intervenção que tem como foco os circuitos de consumo e produção cultural juvenil em Feira de Santana-BA. Discute-se a cartografia como dispositivo teórico-metodológico que privilegia a implicação do pesquisador no território pesquisado. Acompanhar processos e capturar as expressões artísticas (hip hop, grafite, poesia etc.) singulares, agenciadas pelos coletivos juvenis, é ir ao encontro de uma narrativa mais horizontal, que considera as intersubjetividades na relação pesquisador-pesquisado. Consideramos as dimensões éticas, estéticas e formativas que atravessam as experiências dos jovens no contexto urbano e em suas margens e o papel político por eles ocupado ao provocarem rupturas com a cultura hegemônica. Ao se apropriarem da cidade por meio de redes criativas e solidárias, sinalizam a busca por direitos e reconhecimento. A pesquisa colaborativa nos convocou a pensar na necessária abertura dos espaços canônicos ao transbordamento da vida e da arte.
Palavras-chave: culturas juvenis, cartografia, pesquisa colaborativa.
Data de recebimento: 23/07/2016
Data de aprovação: 30/01/2017