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“Sem um pingo de cor”: experiências de crianças e adolescentes com a Doença Falciforme na Paraíba

Introdução

Este artigo aborda a temática da experiência de crianças e adolescentes com a doença falciforme, a partir da perspectiva das ciências sociais, sendo resultado de uma pesquisa de mestrado em sociologia1. A relevância desta temática está associada à sua complexidade, enquanto uma condição que encerra diferentes esferas sociais e políticas, assim como modos de vida e formas de enfrentamento da doença. Por isso, nossa intenção é realizar uma reflexão a partir das perspectivas de crianças e adolescentes que vivem com a Doença Falciforme (DF).

De início, cabe esclarecer que a doença falciforme, como designaremos aqui, está composta por diferentes tipos de alterações ligadas às chamadas hemoglobionopatias ou, simplesmente, “alteração no sangue” como nos dizem nossos interlocutores, mais conhecida pela anemia e olhos amarelados das pessoas. É uma doença genética e hereditária, de modo que os pais repassam aos seus filhos a mutação que altera o formato das células vermelhas do sangue, provocando distúrbios orgânicos de diferentes ordens, desde a anemia à obstrução dos vasos sanguíneos e consequentes “crises” de dores e Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC), úlceras nas pernas e priapismo.

As inquietações para o estudo estavam associadas às compreensões elaboradas pelas crianças e adolescentes sobre a condição de pessoas com uma doença e como lidavam com essa situação. Assim, surgiu a alteridade sobre as relações entre modos de vida e doença falciforme, enquanto doença historicamente marcada por acometer em sua maioria pessoas negras, seja em termos de incidências (casos novos) ou prevalência (casos novos e antigos) como informação da biomedicina, seja a partir de seus cuidadores, pais ou responsáveis, em sua grande maioria representada pelo gênero feminino, as mulheres que cuidam.

Nossa reflexão se fundamenta no pensamento da antropologia e da sociologia da saúde e da criança. Enquanto a antropologia da saúde contribui com uma reflexão sobre o lugar do corpo, saúde e doença nos processos e relações sociais, políticas e biotecnologias nas sociedades contemporâneas, a sociologia da criança busca compreendê-las como agentes sociais, investigando a sociedade a partir da visão das mesmas para entender “não apenas sobre infância, mas sobre o conjunto da sociedade globalmente considerada” (Sarmento, 2005, p. 363).

A sociologia da infância parte da reflexão epistemológica de que as crianças, “assim como os adultos, são participantes ativos na construção social da infância e na reprodução interpretativa2 de sua cultura compartilhada” (Corsaro, 2011, p. 19). Neste estudo, esse conceito permitiu interpretar as experiências das crianças (Pires, 2010), considerando que a reprodução interpretativa “inclui a ideia de que as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudanças culturais” (Corsaro, 2011, p. 31-32). Por isso, nos alinhamos com os estudos que reconhecem a capacidade de agir das crianças, ao tratá-las como sujeitos que têm sua percepção e visão de mundo e que, embora aprendam com os adultos acerca das normas, regras, comportamentos e outras exigências da vida social, isso não as torna meras reprodutoras.

A experiência da enfermidade, segundo Alves (1993), não é um mero estado de acometimento físico/biológico, mas remete a um complexo de valores, práticas, instituições e padrões de relacionamento, a partir dos quais “indivíduos e grupos sociais respondem a um dado episódio de doença” (Alves, 1993, p. 263). Nessa perspectiva, as narrativas e desenhos, concebidos pelas crianças e adolescentes, dão inteligibilidade às vivências e aos modos de vida dos interlocutores, tendo como referência a enfermidade. Trata-se, em especial, de entender a complexidade relacionada ao adoecer, às políticas de saúde, às experiências de infância/adolescência, envolvendo diferenças de classe, idade e etnia; em suma, às políticas da vida, como nos diz Fassin (2012).

As informações que fundamentam essas reflexões são resultado de pesquisa de campo realizada com pais/responsáveis, crianças e adolescentes com DF do estado da Paraíba, Brasil, com inserção no campo no período de abril a julho de 2019. Cabe enfatizar que, apesar de não estar no recorte inicial do estudo, o trabalho de campo propiciou a interlocução também com adolescentes, respeitando o critério de classe de idade (entre 12 e 18 anos, segundo Estatuto da Criança e do Adolescente3) e a autoafirmação racial. As crianças e adolescentes interlocutoras da pesquisa tinham entre três e quinze anos de idade.

Aqui, além da metodologia, trazemos a experiência sobre a doença falciforme na perspectiva das crianças e adolescentes, valorizando as relações que apontam entre a doença e o sangue, as situações de agravamento e internações, assim como a socialização escolar enquanto uma vivência marcante nessa fase da vida.

Metodologia

Este artigo pauta elementos reflexivos a partir da pesquisa de campo, na perspectiva metodológica de Beau e Weber (2007), realizada em quatro cidades da Paraíba, Brasil: João Pessoa; Campina Grande; Areia e Santa Rita. Para chegar às famílias que participaram da pesquisa, a mediação foi feita pela Associação Paraibana de Portadores de Anemias Hereditárias (ASPPAH)4, instituição à qual estão associadas.

A ASPPAH é uma organização não governamental, criada em 2001 por famílias e pessoas com a doença falciforme, traço falciforme, talassemia e outras hemoglobinopatias. A instituição vem atuando em todo estado da Paraíba com a missão de prestar apoio social, compartilhar informações sobre cuidados entre os associados e garantir o acesso aos serviços de saúde para pessoas com hemoglobinopatias hereditárias, nas quais se inclui a doença falciforme.

A ASPPAH tem atuado como representante da sociedade civil em Conselhos Municipais de Saúde (Campina Grande, atualmente) e no Comitê Estadual de Saúde da População Negra, além de promover eventos dedicados à divulgação e conscientização sobre a anemia falciforme.

A investigação consistiu em um primeiro momento de contato com as famílias e responsáveis de crianças e adolescentes, quando a pesquisa foi apresentada. Esse primeiro momento foi importante para a criação de relações de confiança com os pais e a contextualização da experiência da doença. Em seguida, foram utilizadas duas técnicas de interlocução: entrevistas semiestruturadas (Boni; Quaresma, 2005), no diálogo com os adolescentes, e a elaboração de desenhos pelas crianças. Entretanto, uma das adolescentes se propôs espontaneamente a desenhar. A elaboração de desenhos foi adotada como estratégia de aproximação e forma de interação com as mesmas. No entanto, considerando a interação desencadeada, os desenhos se tornaram uma forma de expressão das experiências de crianças e adolescentes, de modo que, ao finalizar, convidamos as crianças para descrever o que tinham desenhado, dando sua própria interpretação sobre a situação ilustrada5. Esses momentos possibilitaram a realização de observações e conversas informais durante a produção dos desenhos.

As entrevistas e a técnica de pesquisa do desenho possibilitaram acessar informações acerca das experiências das crianças e adolescentes com a doença, expressa em termos de certas categorias temáticas, tais como: a doença; os limites da infância – escola; saúde pública e privada. Os encontros foram realizados na residência das famílias participantes, cinco ao total, de diferentes classes sociais e renda. Destas, duas utilizam a rede privada de saúde e ambas residem na capital paraibana, enquanto as demais utilizam a rede pública de saúde6 e residem nas outras cidades do estado. A composição familiar em sua maioria está centrada nos pais, mães e filhos, em apenas uma delas o adolescente está sob a responsabilidade da tia. Uma família é originária de outro estado, enquanto as demais são do estado da Paraíba. Na pesquisa, os pais/responsáveis trouxeram o contexto relacionado ao processo de “descobrimento” da doença e seus enfrentamentos junto aos sistemas de saúde; já as crianças e adolescentes desenharam suas experiências com a doença, como dito anteriormente. Todos serão representados no texto por nomes fictícios (de cantoras e cantores de rapper negras(os) do Brasil)7.

1 – Esta pesquisa integra a dissertação de Bruna T. Pimentel, intitulada Colorindo conversas e desenhando histórias: experiências de crianças e adolescentes com doença falciforme na Paraíba, submetida ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFPB), sob orientação da Profª Drª Ednalva Maciel Neves e coorientação da Profª Drª Flávia Ferreira Pires. Defendida em 28 de março de 2020.
2 – Corsaro (2011) usa o termo reprodução interpretativa, a partir de uma abordagem psicológica.
3 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
4 – Mais informações são encontradas em: <https://asppah.wordpress.com/anemia-falciforme/>.
5 – Sobre a utilização do desenho no trabalho de campo etnográfico, ver Azevedo (2016), Pires (2007) e Sarmento (2011).
6 – Estamos nos referindo ao Sistema Único de Saúde (SUS) e suas redes privada e pública.
7 – A escolha por nomear as crianças com nome de rappers brasileiros atende ao anseio de representar a questão racial tão presente no contexto da DF, vai ao encontro da luta antirracista que se explica também pela luta ao combate do racismo institucional. Além disso, optar pelos nomes fictícios tem como objetivo atender a uma exigência ética de preservação da identidade dos colaboradores.
Bruna Tavares Pimentel bruna.t.pimentel@hotmail.com

Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais, mestra pelo programa de pós-graduação em Sociologia (PPGS) e pós-graduanda em Gênero e Diversidade na Escola, todos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil.

Ednalva Maciel Neves ednmneves@gmail.com

Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/ICH/UFRGS, Brasil, Professora dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, Brasil. Pesquisadora do Grupessc/UFPB e do Mandacaru/UFAL, Brasil, integrante da Rede Antropologia e Saúde.

Flávia Ferreira Pires ffp23279@gmail.com

Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Mestre, Doutora e Pós-doutora pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Pós-doutora pela Universidade de Sheffield, Inglaterra, e UFMG; Pesquisadora do CNPq, Líder do CRIAS, Professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil.